terça-feira, 31 de agosto de 2010
charles baudelaire
[A negação de São Pedro]
Qu’est-ce que Dieu fait donc de ce flot d’anathèmes
Qui monte tous les jours vers ses cher Séraphins?
Comme um tyran gorgé de viande et de vins,
Il s’endort au doux bruit de nos affreux blasphèmes.
[O que faz Deus dessa onda infame de heresias
Que se ergue a cada instante até seus Serafins?
Como um tirano afeito aos vinhos e aos festins,
Dorme ele ao som de nossas ímpias litanias.]
Les sanglots des martyrs et des suppliciés
Sont une symphonie enivrante sans doute,
Puisque, malgré le sang que leur volupté coûte,
Les cieux ne s’en sont point encore rassasiés!
[Os soluços dos mártires e supliciados
São qual uma cantata embriagadora e augusta,
Pois, apesar da dor que a volúpia lhes custa,
Jamais deles os céus sentiram-se saciados!]
-- Ah! Jésus souviens-toi du Jardin des Olives!
Dans ta simplicité tu priais à genoux
Celui qui dans son ciel riait au bruit des clous
Que d’ignobles bourreaux plantaient dant dans les chairs vives.
[-- Recorda-te, Jesus, no Horto das Oliveiras,
Oravas, ajoelhado e humilde, os olhos cavos,
Àquele que no céu sorria ao soar dos cravos
Que te enterravam carne adentro mãos grosseiras.]
Lorsque tu vis cracher sur ta divinité
La crapule du corps de garde et des cuisines,
Et lorsque tu sentis s’enforcer les épines
Dans ton crâne où vivait l’immense Humanité;
[Quando viste escarrar em tua divindade
A imunda corja dos soldados e meirinhos,
E sentiste afligir a ponta dos espinhos
Teu crânio onde vivia a imensa Humanidade;]
Quand de ton corps brisé la pesanteur horrible
Allongeait tes deux bras distendus, que son sang
Et sa sueur coulaient de ton front pâlissant,
Quand tu fus devant tous posé comme une cible,
[E quando teu corpo exausto o horrível peso
Os teus dois braços alongava no madeiro,
O suor e o sangue a ungir-se a fronte por inteiro,
Quando ante todos te tornaste alvo indefeso,]
Rêvais-tu de ces jours si brilliants et si beaux
Où tu vins pour remplir l’éternelle promesse,
Où tu foulais, monte sur une doute ânesse,
Des chemins tout jonchés de fluers et de rameaux,
[Pensavas tu nos dias cheios de esplendores
Em que surgias anunciando o reino eterno
E percorrias, sobre um asno fiel e terno,
Caminhos que eram só de ramos e de flores,]
Où, le coeur tout gonflé d’espoir et de vaillance,
Tu fouettais tous ces vils marchands à tour de bras,
Où tu fus maître enfin? Le remords n’a-t-il pás
Pénétré dans ton flanc plus avant que la lance?
[Em que, a alma pródiga de audácia e de esperança,
Aos vendilhões do templo açoitavas o dorso,
Em que tu foste o mestre enfim? Dize: o remorso
Teu flanco não rasgou mais fundo do que a lança?]
-- Certes, je sortirai, quant à moi, satisfait
D’un monde où l’action n’est pás la soeur du revé;
Puissé-je user du glaive et périr par le glaive!
Saint Pierre a renié Jesus… il a bien fait!
[-- Quanto a mim, isto é certo, eu saio satisfeito
Deste mundo onde o sonho e a ação vivem a sós;
Possa eu usar a espada e a espada ser-me o algoz!
São Pedro renegou Jesus... Pois foi bem-feito!]
Obs: a tradução para o português é de Ivan Junqueira.
domingo, 29 de agosto de 2010
Impressões - 05 - Quanto?
A Função dos Óculos
sábado, 28 de agosto de 2010
sexta-feira, 27 de agosto de 2010
ferréz
Não somos movimento, não somos os novos, não somos nada, nem pobres, porque pobre, segundo os poetas da rua, é quem não tem as coisas.
Cala a boca, negro e pobre aqui não tem vez! Cala a boca!
Cala a boca uma porra, agora a gente fala, agora a gente canta, e na moral agora a gente escreve.
Quem inventou o barato não separou entre literatura boa/feita com caneta de ouro e literatura ruim/escrita com carvão, a regra é só uma, mostrar as caras. Não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto.
A própria linguagem margeando e não os da margem, marginalizando e não os marginalizados, rocha na areia do capitalismo.
O sonho não é seguir o padrão, não é ser o empregado que virou patrão, não, isso não, aqui ninguém quer humilhar, pagar migalhas nem pensar, nós sabemos a dor por recebê-las.
Somos o contra sua opinião, não viveremos ou morreremos se não tivermos o selo da aceitação, na verdade tudo vai continuar, muitos querendo ou não.
Um dia a chama capitalista fez mal a nossos avós, agora faz mal a nossos pais e no futuro vai fazer a nossos filhos, o ideal é mudar a fita, quebrar o ciclo da mentira dos ‘direitos iguais’, da farsa do ‘todos são livres’, a gente sabe que não é assim, vivemos isso nas ruas, sob os olhares dos novos capitães do mato, policiais que são pagos para nos lembrar que somos classificados por três letras classes: C, D, E.
Literatura de rua com sentido, sim, com um princípio, sim, e com um ideal, sim, trazer melhoras para o povo que constrói esse país mas não recebe sua parte.
O jogo é objetivo, compre, ostente, e tenha minutos de felicidade, seja igual ao melhor, use o que ele usa.
Mas nós não precisamos disso, isso traz morte, dor, cadeia, mães sem filhos, lágrimas demais no rio de sangue da periferia.
Somos mais, somos aquele que faz a cultura, falem que não somos marginais, nos tirem o pouco que sobrou, até o nome, já não escolhemos o sobrenome, deixamos para os donos da casa-grande escolher por nós, deixamos eles marcarem nossas peles, por que teríamos espaço para um movimento literário? Sabe duma coisa, o mais louco é que não precisamos de sua legitimação, porque não batemos na porta para alguém abrir, nós arrombamos a porta e entramos.
Sua negação não é novidade, você não entendeu? Não é o quanto vendemos, é o que falamos, não é por onde, nem como publicamos, é que sobrevivemos.
Estamos na rua, loco, estamos na favela, no campo, no bar, nos viadutos, e somos marginais mas antes somos literatura, e isso vocês podem negar, podem fechar os olhos, virar as costas, mas, como já disse, continuaremos aqui, assim como o muro social invisível que divide este país.
[...]
Jogando contra a massificação que domina e aliena cada vez mais os assim chamados por eles de ‘excluídos sociais’ e para nos certificar de que o povo da periferia/favela/gueto tenha sua colocação na história, e que não fique mais quinhentos anos jogado no limbo cultural de um país que tem nojo de sua própria cultura, a literatura marginal se faz presente para representar a cultura de um povo, composto de minorias, mas em seu todo uma maioria.
E temos muito a proteger e a mostrar, temos nosso próprio vocabulário que é muito precioso, principalmente num país colonizado até os dias de hoje, onde a maioria não tem representatividade cultural e social, na real, nego, o povo num tem nem o básico pra comer, e mesmo assim, meu tio, a gente faz por onde ter us barato pra agüentar mais um dia.
Mas estamos na área, e já somos vários, estamos lutando pelo espaço para que no futuro os autores do gueto sejam também lembrados e eternizados, mostramos as várias faces da caneta que se faz presente na favela, e pra representar o grito do verdadeiro povo brasileiro, nada mais que os autênticos, é como a pergunta do menino numa certa palestra:
-- Como é essa literatura marginal publicada em livros?
Ela é honrada, ela é autêntica e nem por morarmos perto do lixo fazemos parte dele, merecemos o melhor, pois já sofremos demais.
[...]
A maior satisfação está em agredir os inimigos novamente, e em trazer o sorriso na boca da dona Maria ao ver o livro que o filho trouxe para casa.
[...]
Muitas são as perguntas, e pouco o espaço para respostas. Um exemplo para guardar é o de Kafka. A crítica convencionou que aquela era uma literatura menor. Ou seja, literatura feita pela minoria dos judeus de Praga, numa língua maior, o alemão.
A Literatura Marginal, sempre é bom frisar, é uma literatura feita por minorias, sejam elas raciais ou socioeconômicas. Literatura feita à margem dos núcleos centrais do saber e da grande cultura nacional, isto é, de grande poder aquisitivo. Mas alguns dizem que sua principal característica é a linguagem, é o jeito como falamos, como contamos a história, bom, isso fica para os estudiosos, o que a gente faz é tentar explicar, mas a gente fica na tentativa, pois aqui não reina nem o começo da verdade absoluta.
Hoje não somos uma literatura menor, nem nos deixemos tachar assim, somos uma literatura maior, feita por maiorias, numa linguagem maior, pois temos as raízes e as mantemos.
[...]
Cansei de ouvir:
-- Mas o que cês tão fazendo é separar a literatura, a do gueto e a do centro.
E nunca cansarei de responder:
-- O barato já ta separado há muito tempo, só que do lado de cá ninguém deu um gritão, ninguém chegou com a nossa parte, foi feito todo um mundo de teses e estudos do lado de lá, e do cá mal terminamos o dito ensino básico.
Sabe o que é mais louco? Neste país você tem que sofrer boicote de tudo que é lado, mas nunca pode fazer o seu, o seu é errado, por mais que você tenha sofrido você tem que fazer por todos, principalmente pela classe que quase conseguiu te matar, fazendo você nascer na favela e te dando a miséria como herança.
Afinal, um dia o povo ia ter que se valorizar, então é nóis nas linhas da cultura, chegando devagar, sem querer agredir ninguém, mas também não aceitando desaforo nem compactuando com hipocrisia alheia. Bom, vamos deixar de ladainha e na bola de meia tocar o barco.
Boa leitura, e muita paz se você merecê-la, senão, bem-vindo à guerra”.
Trechos de “Terrorismo literário”, de Ferréz, presente na coletânea Literatura marginal: talentos da escrita periférica.
domingo, 22 de agosto de 2010
It was a very good year
quando eu tive 17 anos. ah! que maravilha. a praça no domingo ficava cheia e os sorrisos das menininhas só não eram mais doces que o sorvete de morango da sorveteria da esquina.
quando eu tive 21 anos. ah! que maravilha. eu, na porta, esperando ela descer e me ignorar. mal sabia ela que seu cabelo me acenava e me jogava um beijo com cheiro de champanha.
quando eu tive 35 anos. ah! que maravilha. elas já me perseguiam porque já tínhamos interesses em comum. e a calmaria daqueles anos nos subtraía as preocupações.
quando eu tiver 64 anos. ah! que maravilha. sei que seremos só nós a lamentar o que não fizemos. mas não importa, amor. somente feche os olhos e voltaremos a ter nossos sorvetes, nossa juventude e nossas tardes junto ao rio. a água já vai subir e já não seremos mais.
sábado, 21 de agosto de 2010
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
terça-feira, 17 de agosto de 2010
Tradução: "A sociedade industrial e o seu futuro", Theodore Kaczinsky, parte 1
2. O sistema tecnológico industrial pode sobreviver ou não. Caso sobreviva, pode, eventualmente, proporcionar um nível baixo de sofrimento psicológico e físico, mas apenas após passar por um longo e muito doloroso período de ajustamento, com o custo de reduzir permanentemente a vida dos seres humanos e muitos outros animais à produtos forjados e meras engrenagens na máquina social. Além disso, caso o sistema sobreviva, as consequências serão inevitáveis: não há maneira de reformar ou ajustar o sistema de forma a prevenir um esvaziamento da dignidade e autonomia humanas.
3. Caso o sistema colapse, as consequências ainda assim serão muito dolorosas. Porém, quanto mais o sistema cresce, mais desastrosos os resultados do seu colapso serão, então, se o colapso é desejado, que aconteça o mais rápido possível.
4. Nós, portanto, advogamos a revolução contra o sistema industrial. Esta revolução pode ou não fazer uso da violência: pode ser repentina ou pode ser um processo gradual estendendo-se por algumas décadas. Não podemos fazer previsões sobre isso. Mas podemos descrever em linhas gerais as medidas que aqueles que odeiam o sistema industrial deveriam tomar para preparar o caminho para a revolução contra essa forma de sociedade. Esta não será uma revolução política. Seu objetivo será a derrubada das bases econômicas e tecnológicas da atual sociedade, não necessariamente dos governos.
5. Neste artigo damos atenção à apenas alguns dos desenvolvimentos negativos que cresceram com o sistema tecnológico-industrial. Outros problemas nós mencionamos apenas brevemente ou simplesmente ignoramos. Isto não significa que consideremos esses problemas sem importância. Por razões práticas restringimos nossa discussão para assuntos que receberam pouca atenção pública ou sobre os quais temos algo novo a dizer. Por exemplo, como há movimentos ambientalistas e de proteção à vida selvagem bem desenvolvidos, escrevemos muito pouco sobre degradação ambiental e destruição da vida selvagem, o que não significa considerarmos esses assuntos sem importância".
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segunda-feira, 16 de agosto de 2010
domingo, 15 de agosto de 2010
Morte de merda
Naquele tempo não havia justiça, e Alfredo explorava os trabalhadores de suas terras como bem desejava.
Com o andar lento e dificuldades para respirar, o velho caminhava pelo bosque, até que parou diante do lago. Irma, uma camponesinha bonitinha e ingênua, como são todas as camponesinhas, chamou sua atenção.
- Que faz aí, menina?
-Ah! É que sempre andei descalça. Agora ganhei estes sapatos e meus pés doem. - respondeu sorrindo.
Irma estava com os pés dentro da água segurando o vestido para não molhá-lo. Alfredo estava salivando em excesso e com os olhos fixos em Irma.
-Vem aqui, menina. Preciso da sua ajuda.
Irma, sorrindo ingenuamente, saiu correndo em direção ao patrão. Irma agiu deste modo porque todas as camponesinhas são ingênuas e obedecem ao patrão como se sua ordem fosse lei.
Foram até o estábulo.
-Ordenhe aquela vaca, menina.
-Mas não é hora de ordenhar, patrão - de fato, eram umas três da tarde...
-Ordenhe mesmo assim!
Alfredo estava descontrolado, andava de uma lado para o outro, observando atentamente o trabalho de Irma. Os movimentos precisos das mãozinhas de Irma, que tão jovem, já aprendera perfeitamente o ofício da ordenha, mesmo fora de hora. Alfredo suava. Irma estava descalça e com a saia erguida até os joelhos. Alfredo descalçou os sapatos e afundou os pés - intencionalmente - num monte ainda fresco de esterco de vacas. Pensou na morte que teria e na vida que teve, explorando aqueles miseráveis camponeses para deixar, no final, tudo a um filho cretino.
Então chegou perto de Irma, abriu a braguilha e disse:
-Pega...
Sorrindo ingenuamente, Irma secou a mão no pelo da vaca, e pegou.
Depois de um ou dois minutos, Irma disse:
-Sr. Alfredo, não sabe que é impossívei ordenhar um touro? hihihi!
Alfredo riu como se fosse velhinho simpático e saiu. Voltou a andar em círculos e depois voltou à merda.
-Menina, você sabe qual é a pior coisas que existe?
Irma pensou um pouco e disse:
-É quando não chove.
-HAHAHA! Não! Isso não é a pior coisa.
Irma riu ingenuamente.
-A pior coisa é quando não sobe mais! - disse o patrão - Merda. Merda e leite, menina. Essas vacas - e deu um tapinha no dorso da vaca - estão cheias de merda e leite. Essa é a pior coisa: merda e leite dentro da minha cabeça.
Alfredo segurou a cabeça entre as mãos, como se quisesse estourá-la.
-Menina, volte para o campo. Seus irmãos camponeses estão fazendo festa, cantando, dançando. Quando a música parar diga que o patrão está morto.
-Está bem! - disse Irma com sorriso bonitinho, e saiu correndo para realizar o pedido do patrão.
Então aconteceu a festa dos camponeses. Imediatamente após a última nota do violino, Irma gritou:
-O patrão está morto!!!
O mestre camponês foi até o estábulo ajeitar as coisas. Resmungava furioso:
-Velho desgraçado! Fudeu todo o estábulo! Assustou as vacas! Roubou os camponeses durante a vida toda e não foi capaz de morrer como patrão! Nem parece o patrão!
Alfredo balançava de um lado para o outro conforme as vacas esbarravam em seu corpo sem vida, enforcado por uma corda que pendia do teto.
Descrição/Variação de uma sequência do filme 1900 de Bernardo Bertolucci
quinta-feira, 12 de agosto de 2010
domingos pellegrini jr.
Carlos Alberto e Maria Izabel (coração)
João e Márcia (coração e flecha)
Beto e Ana
Paulo e Cristina
Neste colégio de merda
aprendi coisa pra chuchu
estudei muita matemática
comi o primeiro cu
Paulo e Maria Izabel
Dona Clara filha duma puta
Suástica
Marcos e Maria Izabel
A foice e o martelo
Aqui no nosso colégio
a inteligência é profunda
os professores dão o rabo
as professoras dão a bunda
Escalação do time de 62 - invicto
Caralhos
A estrela de Israel
Bomba redonda com pavio
Revólver
Pedro e Paulo
Carlos, o Solitário
O homem divisa um sobrenome conhecido, lembra a cara do sujeito, era um loiro que sentava na primeira fileira; mas o nome não lembra.
Continua pelo pátio e os muros perguntam mudos: Voltou? O silêncio sem risadas, o pátio sem filas, a cantina fechada, ninguém, só o vento. O coral não está ensaiando, é o vento. Ninguém na quadra, essas pancadas de bola no chão são abacates caindo no vento; no meio do pátio continua o abacateiro. Ninguém nas salas, esses passos são do vento. E é o vento batendo portas.
O homem anda com as mãos nos bolsos, como se pudesse pendurar em si mesmo; até que de repente está correndo na quadra, está saltando alto para a cesta, arremessa a bola, aplaudem, ele volta correndo para a defesa, procura um rosto na assistência. mas está plantado no meio do silêncio, o vento confunde papéis na arquibancada.
Quando consegue entrar no prédio, o homem vai pelo corredor, escutando o próprio passo caminhar ao lado. As buzinas da rua chegam abafadas, as paredes são grossas de três palmos; o reboco, aqui e ali, com caralhos desenhados, bombas e suásticas. Mas o Reich ruiu, o livro de história tinha uma foto da Chancelaria em chamas, com aquela enorme suástica no topo. No entanto este colégio, dizia o professor de bengala, foi construído antes da Chancelaria de Hitler, e continua de pé. Os alunos então suspiravam em coro, de tédio; o colégio tinha um cheiro de eterno.
Antes do menino passar pelo colégio as paredes já tinham rachaduras, as portas rangiam, os passarinhos já tinham seus ninhos invisíveis e cagavam diariamente nos corredores. No entanto o homem respira e sente que o tempo fortaleceu o colégio. Abre os braços e respira fundo, mas há professoras olhando, inspetores estão vigiando, enfia desajeitado as mãos nos bolsos.
Entra na classe, devagar, como se fosse a primeira vez; vai até o janelão acortinado. Poderia abrir a vidraça, rever o casario, a caixa d'água e as fábricas no horizonte; mas um colégio em férias não abre janelas.
Sente uma presença atrás, um olhar latejando na nuca. Ninguém. Bobagem. Mas virou e olhou.
Nenhum giz na lousa
Vai até o fundo da classe, abre o armário e está lá o giz, como um cigarro, enfiado na dentadura do esqueleto. Frente a frente com o esqueleto, o homem fica um minuto revendo as faces, ouvindo vozes, até que tira o giz da boca do outro e fecha o armário.
Com o giz na mão, diante da lousa, não acha o que escrever. Podia ser um palavrão, mas não tem mais graça. Ou podia escrever que ninguém precisa saber raiz quadrada ou raiz cúbica, isso a vida deixou mais que provado, ou podia escrever que reprovou em inglês dois anos, perdeu dois anos com o tal inglês até que turou o diploma e nunca mais falou nem escreveu em inglês. Podia pedir que acabem com as filas no pátio, fila pra entrar na classe, fila na cantina, fila pra desfilar, fila na educação física. Fila até pra cagar; o colégio tinha só duas privadas naquele tempo; oitocentos alunos, cada um com seu respectivo cu e só duas privadas. Até que enfiaram em cada delas uma bomba de dois dedos de grossura, com metade de um cigarro acesso em cada uma; explodiram quase juntas, ficou parecendo coisa de controle remoto; e voou caco de privada até o teto. O diretor foi pessoalmente de classe em classe, deu ordem pra cada professor levar a turma até o pátio -- e em dois minutos estavam lá os oitocentos de pé, enfileirados por ordem de altura. Então o direitor passeou no meio das filas, uma por uma, olhando nos olhos de um por um -- mas nenhum se abalou que ele pudesse dizer: é este. Isto levou uns dez minutos. Aí ele deu ordem para os inspetores de manter os oitocentos em posição de sentido, e foi se trancar no gabinete mais uns vinte minutos, tempo de pensar num discurso. Aí voltou e fez o discurso, que levou ns quinze minutos ou duas horas, dependendo da fome de cada um, porque já tinha passado a hora da saída; e o sol bem a pino. No discurso ele falou da tradição do colégio; ele mesmo tinha estudado ali; e no seu tempo também existiram os bons e os maus; então comparou o colégio com a pátria e perguntou se eles queriam ver a pátria dominada por maus elementos, e levantou os braços conclamando a todos para responder bem alto, vocês querem ou não ver a pátria dominada por maus elementos?! ao que os oitocentos responderam resmungando nem sim nem não, estavam com fome, as pernas bambas e o saco já arrastando no chão. Mas vocês querem ou não ver a pátria dominada por maus elementos? Responda alto, juventude brasileira! Aí os oitocentos responderam nem sim nem não num urro feroz porque o negócio estava ficando divertido. Mas aí o diretor baixou a voz e caiu na lengalenga normal, do patriotismo, da responsabilidade, da compreensão, do patrimônio que é de todos e por todos deve ser zelado, e convidou o culpado a ter a hombridade de se acusar, e depois do silêncio convidou qualquer um a ter a responsabilidade de acusar o culpado, e depois de um silêncio maior, com os passarinhos debochando, ameaçou suspender os oitocentos por uma semana, ficou esperando a ameaça assentar no silêncio, aí repetiu que suspendia todos com dor no coração mas tinha que cumprir seu dever, em vista de que ninguém cumpria o dever de acusar os maus elementos. Fez uma voz dolorida, com os passarinhos piando de piedade, e lembrou que era tempo de provas; e aluno suspenso leva zero em prova, lembrou de mansinho, não tem justificativa para aluno suspenso. E a fome apertando. Aí ele passeou de novo entre as filas, olhando nos olhos de um por um; de vez em quando parava na frente de algum e encarava, igual general passando tropa em revista. Aí ele falou que estaria sempre no seu gabinete à disposição de quem soubesse informar o nome do culpado. Ou podiam ligar para a casa dele, número tal repetiu, número tal, a qualquer hora, não precisam se identificar, basta dizer o nome do culpado. Aí discursou de novo, explicando que não ia suspender os oitocentos porque era dar muita importância ao ato de um covarde, um desclassificado que deixava sua culpa recair sobre todos. E tornou a repetir o número do telefone, ao que muitos anotaram mentalmente e um ano depois ainda estavam telefonando às seis da manhã ou à meia-noite pra perguntar se já estavam acordados ou se já tinham ido dormir, ou perguntando se era dali que tinham encomendado um frango e um pinto, e se queriam o pinto com ou sem asa, porque pinto com asa no momento não tinham, porque se pinto tivesse asa mijava na cidade inteira. Depois de mais de hora em pé, com os pés juntos, a perna parece que não vai mais obedecer, mas o homem ainda falou mais um pouco, aí disse 'debandar', que era a palavra que os oitocentos estavam esperando, e mesmo depois de duas horas em pé a perna obedece, os oitocentos berraram -- Brasil! -- e saíram correndo. No outro dia começou a construção do mictório no pátio, com dez privadas desas de agachar, com duas solas pra botar os pés e um buraco rente o chão; não tem o que explodir.
Então o homem escreve na lousa
ATENÇÃO
eu sei quem explodiu
as privadas em 1963
E redescobre que escrever na lousa é igual comer pipoca, é só começar.
Aqui aprendi inglês
Inglaterra, I love you
Aprendi bater punheta
aprendi a comer cu
Descobre que a memória puxa pelas rimas:
Cabral em 1500
viu tanta índia pelada
que até mandou rezar missa
pra descontar os pecados
Depois falou pro Caminha
se peito fosse corneta
e xoxota campainha
já pensou a barulheira?
Ao que Caminha responde
Vou mandar carta, Cabral
Achamos por fim as índias
E viva Portugal
No frio, fechavam as janelas; olhava-se o mapa-múndi na parede. Equador, capital Quito. Superfície, tantos mil quilômetros quadrados, ou milhões, quem sabe, e população de tantos milhões de habitantes. E agora atenção para a última questão: Com quantos países da América Latina o Brasil faz divisa e quais são. E por favor digam qual a importância de saber que o Brasil faz divisa com Uruguai, Paraguai, Venezuela e mais sabe-se lá quantos países de merda, aí uma coisa que nunca ensinaram, que o Brasil faz divisa com um monte de países de merda, tudo fundo de fossa. Mas eles podem até dar uma aula sobre bosta e ensinar que é uma coisa perfumada que depois de um quatrilhão de anos pode até virar petróleo, e depois na prova perguntam o que é bosta? e você tem que responder com as mesmas palavras que bosta é uma coisa perfumada que depois de um quatrilhão de anos pode até virar petróleo, então o homem escreve com o toco do giz:
No oitavo dia da criação
Deus estava cansadão
deu um peido de repente
Assim criou-se a matemática
também a análise sintática
pra encher o saco da gente
O homem sai da sala, percorre devagar o corredor. No fim, diante da porta, pára e se volta lento, como num filme, num teatro. Lá, no outro extremo do corredor, está o menino.
Acende um cigarro, solta a primeira tragada comtra o peito, a fumaça penetra na camisa e fica se enovelando. O menino também puxa seu toco de cigarro e tosse com olhos vermelhos. O homem enxerga que o menino tem as calças encardidas nos joelhos.
O menino passa a bituca ao companheiro do lado: estão numa roda fumando o cigarro. A bituca toda até voltar ao menino, pura brasa, mas ele tenta uma última tragada e queima os lábios. O homem amassa o cigarro na parede e enfia no bolso.
Aí o homem vem andando, o menino ao seu encontro enquanto os outros meninos se esfumaçam. Um ao encontro do outro, até que se fundem; mas o homem sai sozinho pela clarabóia do mictório. Basta a agilidade de um menino pra escalar, com o pé na torneira, a meia-parede entre as privadas. Suspender a clarabóia de vidros pintados -- e o sol entra, o homem sai.
Pula o muro, olha para os lados. Acena para o ônibus. Tira o cigarro do bolso e joga fora, ginasiano culpado. Salta, planta os pés no estribo e fica vendo o muro passar. Depois o ônibus desce a avenida como se tivesse furtado o passageiro, o passageiro senta como se tivesse acabado de roubar".
"A visita", de Domingos Pellegrini Jr., presente no livro Os meninos.
quarta-feira, 11 de agosto de 2010
Mindinho
terça-feira, 10 de agosto de 2010
segunda-feira, 9 de agosto de 2010
domingo, 8 de agosto de 2010
turista
Havia um vazio pleno maltratando o estômago, fazendo-me galopar, sorrir e gritar por uma rodovia qualquer enquanto deveria ter uma refeição. Impossível. Em algum momento do passado devo ter perdido o direito de alimentar-me mais de cinco vezes por semana, prefiro crer que o injusto sou eu, senão gostaria de explodir o mundo todo com a grande cambada de filhos da puta que arrotam seus privilégios na minha cara, bem sei, apesar de não os ver, bem sei... Mas sou injusto, sei disso, prefiro acreditar que há justiça e que eu, por algum desvio, não mereço o mundo dos justos. Preciso correr mais rápido para fixar essa ideia. Trinta quilômetros. Placa de divisa, fim da cidade x, início de y, lá vamos nós (nós? Ora, deixei até o Malhado, bom cão, para trás; mas tudo bem, melhor pensar no plural, afinal dificilmente outro alguém me dará trela, muito menos provável será a oportunidade para explicar minhas escolhas e como o Malhado era um bom cão; deve haver outro Malhado por aí, mundo cão).
Quarenta quilômetros. Constante perigo de automóveis. Temem até mesmo atropelar-me... Talvez os assaltarei quando vierem me socorrer (se vierem)? Talvez perderão tempo explicando para a polícia o que aconteceu (culpando-me)? Talvez simplesmente não se importem, mais um pobre andando por aí mesmo, comentam com os filhos, viu só, por isso que você deve obedecer aos seus pais, ser responsável, estudar e trabalhar. Retomo e corrijo, o perigo não é o automóvel, é quem os ocupa.
Quarenta e sete quilômetros. Mais uma cidade, que maravilha! E com viadutos não muito recentes, melhor acolhida para o turismo que pratico.
Sobre pardais, goteiras, sociedade do espetáculo e o fim do mundo
Andava impacientemente pela sala, fumava, passava a mão nos cabelos, esfregava os olhos, olhava meus escritos que estavam em cima da minha mesa de estudos. Além de papéis meu disco preferido de Bob Dylan. A panamérica de Zé Agrippino e a sociedade do espetáculo de Debord eram suporte pra minha xícara de café. O jornal do dia, espalhado sobre o sofá noticiava um ataque de pardais gigantes a uma igreja na Polônia. Andava impacientemente pela sala.
Meu corpo tremia e fui até o fogão esquentar mais água; enquanto fervia olhava pela janela. Sabia que lá fora, lá distante, uma cidade grande me agredia. Grandes prédios comerciais com escritórios de empresas multinacionais, viadutos cruzando o horizonte, publicidade de vinte metros. Isso me incomodava. As relações das pessoas entre elas mesmas e com a sociedade, com a mercadoria, com a cidade, com o mundo!, enfim, todas as relações estão fundadas nas imagens. Isso me incomodava. Ficava pensando em como fugir desse mundo, dessa vida, dessa realidade, desse tempo presente que tanto falseia. Não havia mais filosofia que me satisfizesse.
Caminhos não há.
O que a cidade me apresentava eu não queria. Nem as marcas e os produtos para a grande massa, nem o alternativo – que virou grande negócio. Nem tese, nem antítese.
Havia uma goteira dentro de casa. As gotas contavam o tempo e eu contava as gotas. Aos poucos começou a garoar dentro de casa. Eu já deitado, não deixei de pensar na coca-cola, nos programas de televisão e na copa do mundo. Os novos tempos consumiram minha existência.
Chovia dentro de casa.
"Ricardinho está fazendo Reforma Agrária via Buddy Poke!"