Sobretudo é um filme educativo. Exagera aspectos do cotidiano para evidenciar diferenças do passado. A História é tratada como um conjunto de anedotas.
Como discussão que serve de pretexto para a exposição incessante do pitoresco está colocada, também do ponto de vista da curiosidade, as relações entre ricos e pobres, entre os hábitos de uma casa burguesa e as tarefas a serem realizadas pelos criados. Enfatiza-se os maus tratos à criada Griet pela esposa de Vermeer e, como contraponto a isso, destaca-se uma sensibilidade particular na percepção artística de Griet, que causa olhares de surpresa à esposa e à mãe da esposa de Vermeer, quando mesmo sendo uma simples criada, se preocupa com as possíveis alterações na luminosidade que poderia causar a limpeza das janelas do estúdio de Vermeer.
Griet, apesar de sua simplicidade, entende a arte de Vermeer. Esta contradição é reforçada pela completa ignorância artística da esposa. A percepção artística de Griet é explicada, em partes por gravuras desenhadas por seu pai, que ela carrega consigo como amuleto. Mas Griet também tem uma disposição inata para o entendimento da arte. Este atributo é evidenciado pela cena em que Vermeer explica a ela sobre a combinação das cores, fazendo-a olhar para as nuvens no céu, no que ela imediatamente compreende o ensinamento do artista sobre a complexidade da combinação das cores. À medida que se define a oposição entre Griet e a esposa, a percepção artística torna-se o elemento principal da oposição como fator que motiva a disputa pelo afeto de Vermeer. O surgimento de atração entre Vermeer e Griet é óbvio por questões da indústria cultural, os atores que os interpretam são Colin Firth e Scarlett Johanson. No que diz respeito às questões internas do filme, essa atração é fora de propósito e fica deslocada na discussão a respeito da sexualidade de Griet, que pelo modo como é colocada, dificilmente permite uma interpretação razoável. Griet é de família puritana, e desde o começo é marcada a diferença em relação à família católica de Vermeer, onde ela foi trabalhar ao sair da casa de seus pais. O choque quanto a essa diferença é, marcadamente sexual, expresso pelo abandono gradual de seus recatos puritanos que, por um lado, cedem aos apelos artísticos de Vermeer ao usá-la como modelo, e por outro, pela realização sexual concreta com o filho do açougueiro.
quinta-feira, 18 de julho de 2013
sexta-feira, 12 de julho de 2013
peter sloterdijk
Trechos retirados de
Crítica
da razão cínica [1983]. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.
1.4.5 – Sentimento vital à meia-luz
O fato de o Esclarecimento
desmentir a si mesmo é um resultado da história mais recente, que triturou
todas as belas ilusões de um “outro racional”. Irremediavelmente, o
Esclarecimento precisa enlouquecer junto ao princípio da esquerda, na medida em
que esse princípio é na realidade representado por sistemas despóticos. É
constitutivo do Esclarecimento preferir o princípio da liberdade ao princípio
da igualdade. Ele não pode se colocar cegamente diante do fato de que o
socialismo, ao qual pertencem as suas simpatias, quase ter perdido a sua
inocência, exatamente como aquilo contra o que ele se dirigia originariamente.
O “socialismo realmente existente”, tal como o vemos hoje [início da década de 1980], torna de certa forma
supérflua a questão acerca de esquerda e direita. Pois ele se distingue com
certeza do capitalismo em formas passíveis de serem reconhecidas, que podem ter
suas vantagens e desvantagens. Mas compartilha com o capitalismo, assim como
toda e qualquer ordem político-econômica, a escrita à mão da dura realidade,
que nunca pode ser por si mesma de direita ou de esquerda, mas, mesmo sendo
feita por nós, é sempre como é. Só a moral pode assumir uma posição à direita
ou à esquerda das realidades. A realidade, até onde nos diz respeito, nos é
bem-vinda ou odiosa, suportável ou insuportável. E, em face do dado, a consciência
tem apenas a escolha de conhecê-lo ou não. É isso que, de maneira
suficientemente primitiva, deixa clara a crítica da razão cínica. Não primitiva
continua sendo a perspectiva de compreender, a partir daqui, o sentido da
desmoralização atual. Só a moral é suscetível à desmoralização, só em relação a
ilusões é possível esperar o despertar. A questão é saber se nós não nos
aproximamos da verdade na desmoralização.
Nós adentramos de fato o
espaço do crepúsculo de uma desorientação existencial peculiar. O sentimento
vital da inteligência atual é o sentimento de pessoas que não conseguem
apreender a moral da não moral, porque, então, tudo se tornaria “simples
demais”. Quanto a isso, nenhum homem, a partir de seu interior, sabe como é que
tudo deve prosseguir.
Na meia-luz cínica de um
Esclarecimento incrédulo, emerge um sentimento peculiar de atemporalidade:
nervoso, perplexo, empreendedor e desanimado, preso no puro espaço
intermediário, alienado da história, despejado da alegria do futuro. O amanhã
assume o caráter duplo de uma insignificância e de uma catástrofe provável;
entre uma coisa e outra, transcorre uma pequena esperança de travessia. O
passado se transforma ou em uma criança mimada academicamente, ou é privatizado
juntamente com a cultura e a história e concentrado no mercado de pulgas em
meio às miniaturas curiosas de tudo o que um dia existiu. Em meio a tudo isso,
o que há de mais interessante são os currículos de antigamente e os reis
desaparecidos – dentre estes em particular os faraós, com cuja vida, eterna
como uma morte confortável, nós podemos nos identificar.
Contra o princípio-esperança,
apresenta-se o princípio da vida aqui e agora. No caminho para o trabalho
cantarola-se “não espere por tempos melhores” ou “há dias em que eu queria ser
meu cachorro”. Nos bares corporativos, à noite, o olhar passa por pôsteres, nos
quais se encontra escrito: O futuro foi
cancelado por motivo da falta de interesse. Ao lado, tem-se: Nós somos as pessoas das quais nossos pais
sempre nos advertiram. O sentimento temporal tardio e cínico é o sentimento
da trip e do cotidiano cinzento,
estendido entre um realismo aborrecido e sonhos diurnos incrédulos, presente e
ausente, cool ou enrolado, com os pés
no chão ou muito doido, de maneira totalmente aleatória. Com maior razão,
espera-se por algo que corresponderia ao sentimento de dias melhores, espera-se
que algo precise acontecer. E não poucos gostariam de acrescentar: não importa
o quê. Sente-se de maneira catastrofal e catastrofílica, sente-se de modo
agridoce e privado, quando ainda se consegue se manter livre da proximidade do
que há de mais terrível. No entanto, bons exemplos não são fáceis de serem
imitados, porque cada caso é outro caso, em particular o próprio. As pessoas
ainda se presenteiam com livros e, quando o Papa vem para a Alemanha, se
espantam um pouco que ainda haja efetivamente um Papa. Fazem seu trabalho e
dizem para si mesmas que seria melhor se enfiar de cabeça no trabalho. Vive-se
de um dia para o outro, de férias em férias, de jornais televisivos para
jornais televisivos, de um problema para outro, de um orgasmo para outro, em
turbulências privadas e em histórias de médio prazo, contraído, relaxado. Por
alguns, a gente se sente “tocado”. Na maioria das vezes, porém, tudo é
indiferente.
Os jornais escrevem que é
preciso se dispor para lutar novamente mais pela sobrevivência, que é preciso
apertar ainda mais o cinto, abafar as requisições; e os ecologistas dizem o
mesmo. Sociedade de direito, [uma balela]. A gente faz doações em minutos de
fraqueza para a Eritreia ou para um navio que segue para o Vietnã, mas não
viajamos para lá. A gente gostaria ainda de ver muitos lugares do mundo e, em
geral, “viver um monte de coisas”. A gente se pergunta o que fazer em seguida e
como as coisas podem continuar assim. No folhetim do tempo, os críticos
culturais discutem o modo correto de ser pessimista. Um imigrante do Leste diz
para outro: já há muito vejo as coisas tão negras quanto tu as vês. Apesar de
tudo isso e de tudo aquilo. Onde chegaríamos se todos se desesperassem? E o
outro diz: o tempo do “apesar disso” passou.
Uns tentam há mais tempo
concluir sua psicanálise, enquanto os outros se perguntam há muito tempo se
podem por ainda mais tempo se responsabilizar perante si mesmos por não fazerem
psicanálise alguma; mas também se precisa pensar no fato de que fazer
psicanálise custa caro e avaliar quanto o seguro de saúde paga; e se depois
disso ainda se pode agir como se acreditava no meio da miséria que se deveria
poder; por outro lado, não se estava certo antes se se queria continuar como se
estava até aqui. Ah, sim, se evidenciou, além disso, que cozinhar bem não é
nenhuma traição e que essa história estúpida em relação ao consumo e ao dirigir
carros não é de maneira alguma tal como se pensa...
Em um tal tempo dos segredos
abertos, onde uma pequena economia bacana entalha o pensamento, onde a assim
chamada sociedade se dissolve em cem mil cordões de planejamento e improvisação
que ignoram uns aos outros, mas que estão ligados uns aos outros por meio de absurdidades
de todo tipo – em tal tempo, não pode fazer mal ao Esclarecimento, ou ao que
restou dele, meditar sobre suas bases. Para tais meditações, existem há muito
tempo exemplos impressionantes. “A esfera pública” foi durante muito tempo um
dos temas mais vigorosos do Esclarecimento, renovado, sobretudo em relação com
a palavra “experiência”, e, mais ainda, com a expressão “contextos vitais”, e
soava tão agradável ao ser escrita porque se tinha aí a sensação de que, em
algum lugar, a vida formaria contextos. E um contexto é naturalmente algo assim
como uma promessa de sentido.
Entrementes, contudo, a
temporada de caça intelectual ao “contexto vital” caiu em desuso, porque ela
representa um ser no mínimo tão raro quanto o Wolpertinger, o coelho que vive na
Baviera com o chifre de veado e que os bávaros brincalhões costumavam caçar,
quando os veranistas prussianos se mostravam espertos demais e mereciam uma
lição. Mas desde o momento em que os prussianos passaram a ficar de fora e a
formar por trás de seus dispositivos de autodisparo o seu próprio “conforto
vital”, a caça ao Wolpertinger, o Esclarecimento especial para prussianos
espertos, foi deixado para trás do mesmo modo que o Esclarecimento em geral e o
Esclarecimento para não prussianos.
segunda-feira, 8 de julho de 2013
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