JUNG,
Carl Gustav. Chegando ao inconsciente. In: JUNG, Carl Gustav (et al.). O
homem e seus símbolos
[1964]. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008, p. 128-131.
Curando a
dissociação
Nosso
intelecto criou um novo mundo que domina a natureza e ainda a povoou de
máquinas monstruosas. Essas máquinas são tão incontestavelmente úteis que nem
podemos imaginar a possibilidade de nos descartarmos delas e de escapar à
subserviência a que nos obrigam. O homem não resiste às solicitações
aventurosas de sua mente científica e inventiva, nem cessa de se parabenizar
pelas suas esplêndidas conquistas. Ao mesmo tempo, sua genialidade revela uma
misteriosa tendência a inventar coisas cada vez mais perigosas, que representam
instrumentos cada vez mais eficazes de suicídio coletivo.
Em
vista da crescente e súbita avalanche de nascimentos, o homem já começou a
buscar meios e modos de controlar a explosão demográfica. Mas a natureza pode
vir a antecipar essa tarefa, voltando contra ele as suas próprias criações. A
bomba de hidrogênio, por exemplo, seria um freio seguro para o aumento de
população. A despeito de nossa orgulhosa pretensão de dominar a natureza, ainda
somos suas vítimas, pois não aprendemos nem a nos dominar. Atraímos o desastre
de maneira lenta, mas que nos parece fatal.
Já
não existem deuses cuja ajuda podemos invocar. As grandes religiões padecem de
uma crescente anemia, pois as divindades prestimosas já fugiram dos bosques,
dos rios, das montanhas e dos animais, e os homens-deuses desapareceram no mais
profundo do nosso inconsciente. Iludimo-nos julgando que lá no inconsciente
levam uma vida humilhante entre as relíquias do nosso passado. Nossas vidas são
agora dominadas por uma deusa, a Razão, que é a nossa ilusão maior e mais
trágica. É com a ajuda dela que acreditamos ter “conquistado a natureza”.
Essa
expressão é um simples slogan, pois
essa pretensa conquista nos oprime com o fenômeno natural da superpopulação e
ainda acrescenta aos nossos problemas uma total incapacidade psicológica de
realizarmos os acordos políticos que se fazem necessários. Continuamos a achar natural
que homens briguem e lutem com o objetivo de afirmar cada um a sua
superioridade sobre o outro. Como pensar, então, em “conquista da natureza”.
Como
toda mudança deve, forçosamente, começar em alguma parte, será o indivíduo
isoladamente que terá de tentar e experimentar levá-la adiante. Essa mudança só
pode principiar, realmente, em um só indivíduo, que poderá ser qualquer um de
nós. Ninguém tem o direito de ficar olhando à sua volta, à espera de que alguma
outra pessoa faça aquilo que ele mesmo não está disposto a fazer.
Mas
como ninguém parece saber o que fazer, talvez valha a pena que cada um de nós
se pergunte se, por acaso, o seu inconsciente conhece alguma coisa que possa
ser útil a todos nós. A mente consciente, decididamente, parece incapaz de nos
ajudar. O homem hoje dá-se conta dolorosamente de que nem as suas grandes
religiões nem as suas várias filosofias parecem capazes de lhe fornecer aquelas
idéias enérgicas e dinâmicas que lhe dariam a segurança necessária para
enfrentar as atuais condições do mundo.
Sei
bem o que haveriam de dizer os budistas: as coisas andariam bem se as pessoas
seguissem “a nobre trilha óctupla” do Dharma
(lei, doutrina) e compreendessem verdadeiramente o self (ou si mesmo). Já os
cristãos afirmam que, se as pessoas tivessem fé em Deus, teríamos um mundo
melhor. Os racionalistas insistem que se as pessoas fossem inteligentes e
ponderadas, todos os nossos problemas seriam controlados. A verdadeira
dificuldade é que nenhum desses pensamentos trata de resolver os problemas
pessoalmente.
Os
cristãos muitas vezes perguntam por que Deus não se dirige a eles, como se
acredita que fazia em tempos passados. Quando ouço esse tipo de questionamento
lembro-me sempre do rabi a quem perguntaram por que ninguém mais hoje em dia vê
Deus, quando no passado Ele aparecia às pessoas com tanta freqüência. Resposta
do rabi: “É que hoje em dia já não mais existe gente capaz de curvar-se o
bastante”.
Resposta
absolutamente certa. Estamos tão fascinados e envolvidos por nossa consciência
subjetiva que nos esquecemos do fato milenar de que Deus nos fala sobretudo
através de sonhos e visões. O budista despreza o mundo das fantasias
inconscientes considerando-as ilusões inúteis; o cristão coloca sua Igreja e
sua Bíblia entre ele próprio e seu inconsciente; e o racionalista ainda nem
admite que sua consciência não é o total de sua psique. Esse tipo de ignorância
continua a existir apesar de o inconsciente ser, há mais de setenta anos, um
conceito científico básico e indispensável a qualquer investigação psicológica
séria.
Não
podemos mais nos permitir uma atitude de “Deus Todo-Poderoso”, elegendo-nos
juízes dos méritos ou das desvantagens dos fenômenos naturais. Não baseamos nossos
conhecimentos de botânica na ultrapassada classificação de plantas úteis e
inúteis, ou os de zoologia na ingênua distinção entre animais inofensivos e
perigosos. Mas, complacentemente, continuamos a admitir que consciência é razão
e inconsciência é contra-senso. Em qualquer outra ciência tal critério faria
rir, tal a sua improcedência. Os micróbios, por exemplo, são razoáveis ou
absurdos?
Seja
o que for o inconsciente, sabe-se que é um fenômeno natural que produz símbolos
provadamente relevantes. Não podemos esperar que alguém que nunca tenha olhado
através de um microscópio seja uma autoridade em micróbios. Do mesmo modo, quem
não fez um estudo sério a respeito dos símbolos naturais não pode ser
considerado juiz competente do assunto. Mas a depreciação geral da alma humana
é de tal extensão que nem as grandes religiões, nem as várias filosofias, nem o
racionalismo científico se dispõem a um estudo mais profundo.
Apesar
de a Igreja Católica admitir a ocorrência dos somnia a Deo missa (sonhos enviados por Deus), a maioria dos seus
pensadores não faz um esforço sério para compreender os sonhos. Duvido que
exista um tratado ou uma doutrina protestante que se rebaixe a ponto de aceitar
a possibilidade de a vox Dei ser
percebida em algum sonho. Mas se o teólogo acredita mesmo na existência de
Deus, com que autoridade pode afirmar que Deus é incapaz de nos falar por meio
dos sonhos?
Passei
mais de meio século investigando os símbolos naturais e cheguei à conclusão de que
tanto os sonhos quanto seus símbolos não são fenômenos inconseqüentes ou
desprovidos de sentido. Ao contrário, os sonhos fornecem as mais interessantes
revelações a quem quiser se dar ao trabalho de entender a sua simbologia. O
resultado, é bem verdade, pouco tem a ver com os problemas cotidianos como
vender ou comprar. Mas o sentido da vida não está de todo explicado pela nossa
atividade econômica, nem os anseios mais íntimos do coração humano são
atendidos por uma conta bancária.
Nesse
período da história humana, em que toda a energia disponível é dedicada ao
estudo e à investigação da natureza, dedica-se pouquíssima atenção à essência
do homem – a sua psique – enquanto multiplicam-se as pesquisas sobre as suas
funções conscientes. No entanto, as regiões verdadeiramente complexas e desconhecidas
da mente, onde são produzidos os símbolos, ainda continuam virtualmente
inexploradas. E é incrível que, apesar de recebermos quase todas as noites
sinais enviados por essas regiões, pareça tão tedioso decifrá-los, e que poucas
pessoas se tenham preocupado com o assunto. O mais importante instrumento do
homem, a sua psique, recebe pouca atenção e é muitas vezes tratado com
desconfiança e desprezo. “É apenas psicológico” é uma expressão que significa,
habitualmente: “Não é nada”.
De
onde exatamente virá esse imenso preconceito? Estivemos sempre tão
manifestamente ocupados com o que pensamos que nos esquecemos por completo de
indagar o que pensará a nosso respeito a psique inconsciente. As idéias de Sigmund
Freud vieram acentuar, em muitas pessoas, o desdém existente com relação à
psique. Antes dele rejeitava-se e ignorava-se sua existência; agora, a psique
tornou-se uma espécie de depósito onde se despeja tudo o que a moral refuta.
Esse
ponto de vista moderno é, certamente, unilateral e injusto. Nosso conhecimento
atual do inconsciente revela que ele é um fenômeno natural e, tal como a
própria natureza, pelo menos neutro.
Nele encontramos todos os aspectos da natureza humana – a luz e a sombra, o
belo e o feio, o bom e o mau, a profundidade e a tolice. O estudo do simbolismo
individual e do coletivo é tarefa gigantesca e que ainda não foi vencida. Mas
ao menos já existe um trabalho inicial. Os primeiros resultados são
encorajadores e parecem oferecer resposta às muitas perguntas – até então sem
nenhuma réplica – que se faz à humanidade de hoje.