quinta-feira, 18 de julho de 2013

Moça com brinco de pérola, 2003 (dirigido por Peter Webber)

Sobretudo é um filme educativo. Exagera aspectos do cotidiano para evidenciar diferenças do passado. A História é tratada como um conjunto de anedotas.
Como discussão que serve de pretexto para a exposição incessante do pitoresco está colocada, também do ponto de vista da curiosidade, as relações entre ricos e pobres, entre os hábitos de uma casa burguesa e as tarefas a serem realizadas pelos criados. Enfatiza-se os maus tratos à criada Griet pela esposa de Vermeer e, como contraponto a isso, destaca-se uma sensibilidade particular na percepção artística de Griet, que causa olhares de surpresa à esposa e à mãe da esposa de Vermeer, quando mesmo sendo uma simples criada, se preocupa com as possíveis alterações na luminosidade que poderia causar a limpeza das janelas do estúdio de Vermeer.

Griet, apesar de sua simplicidade, entende a arte de Vermeer. Esta contradição é reforçada pela completa ignorância artística da esposa. A percepção artística de Griet é explicada, em partes por gravuras desenhadas por seu pai, que ela carrega consigo como amuleto. Mas Griet também tem uma disposição inata para o entendimento da arte. Este atributo é evidenciado pela cena em que Vermeer explica a ela sobre a combinação das cores, fazendo-a olhar para as nuvens no céu, no que ela imediatamente compreende o ensinamento do artista sobre a complexidade da combinação das cores. À medida que se define a oposição entre Griet e a esposa, a percepção artística torna-se o elemento principal da oposição como fator que motiva a disputa pelo afeto de Vermeer. O surgimento de atração entre Vermeer e Griet é óbvio por questões da indústria cultural, os atores que os interpretam são Colin Firth e Scarlett Johanson. No que diz respeito às questões internas do filme, essa atração é fora de propósito e fica deslocada na discussão a respeito da sexualidade de Griet, que pelo modo como é colocada, dificilmente permite uma interpretação razoável. Griet é de família puritana, e desde o começo é marcada a diferença em relação à família católica de Vermeer, onde ela foi trabalhar ao sair da casa de seus pais. O choque quanto a essa diferença é, marcadamente sexual, expresso pelo abandono gradual de seus recatos puritanos que, por um lado, cedem aos apelos artísticos de Vermeer ao usá-la como modelo, e por outro, pela realização sexual concreta com o filho do açougueiro.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

peter sloterdijk


Trechos retirados de
Crítica da razão cínica [1983]. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.

1.4.5 – Sentimento vital à meia-luz

O fato de o Esclarecimento desmentir a si mesmo é um resultado da história mais recente, que triturou todas as belas ilusões de um “outro racional”. Irremediavelmente, o Esclarecimento precisa enlouquecer junto ao princípio da esquerda, na medida em que esse princípio é na realidade representado por sistemas despóticos. É constitutivo do Esclarecimento preferir o princípio da liberdade ao princípio da igualdade. Ele não pode se colocar cegamente diante do fato de que o socialismo, ao qual pertencem as suas simpatias, quase ter perdido a sua inocência, exatamente como aquilo contra o que ele se dirigia originariamente. O “socialismo realmente existente”, tal como o vemos hoje [início da década de 1980], torna de certa forma supérflua a questão acerca de esquerda e direita. Pois ele se distingue com certeza do capitalismo em formas passíveis de serem reconhecidas, que podem ter suas vantagens e desvantagens. Mas compartilha com o capitalismo, assim como toda e qualquer ordem político-econômica, a escrita à mão da dura realidade, que nunca pode ser por si mesma de direita ou de esquerda, mas, mesmo sendo feita por nós, é sempre como é. Só a moral pode assumir uma posição à direita ou à esquerda das realidades. A realidade, até onde nos diz respeito, nos é bem-vinda ou odiosa, suportável ou insuportável. E, em face do dado, a consciência tem apenas a escolha de conhecê-lo ou não. É isso que, de maneira suficientemente primitiva, deixa clara a crítica da razão cínica. Não primitiva continua sendo a perspectiva de compreender, a partir daqui, o sentido da desmoralização atual. Só a moral é suscetível à desmoralização, só em relação a ilusões é possível esperar o despertar. A questão é saber se nós não nos aproximamos da verdade na desmoralização.

Nós adentramos de fato o espaço do crepúsculo de uma desorientação existencial peculiar. O sentimento vital da inteligência atual é o sentimento de pessoas que não conseguem apreender a moral da não moral, porque, então, tudo se tornaria “simples demais”. Quanto a isso, nenhum homem, a partir de seu interior, sabe como é que tudo deve prosseguir.

Na meia-luz cínica de um Esclarecimento incrédulo, emerge um sentimento peculiar de atemporalidade: nervoso, perplexo, empreendedor e desanimado, preso no puro espaço intermediário, alienado da história, despejado da alegria do futuro. O amanhã assume o caráter duplo de uma insignificância e de uma catástrofe provável; entre uma coisa e outra, transcorre uma pequena esperança de travessia. O passado se transforma ou em uma criança mimada academicamente, ou é privatizado juntamente com a cultura e a história e concentrado no mercado de pulgas em meio às miniaturas curiosas de tudo o que um dia existiu. Em meio a tudo isso, o que há de mais interessante são os currículos de antigamente e os reis desaparecidos – dentre estes em particular os faraós, com cuja vida, eterna como uma morte confortável, nós podemos nos identificar.

Contra o princípio-esperança, apresenta-se o princípio da vida aqui e agora. No caminho para o trabalho cantarola-se “não espere por tempos melhores” ou “há dias em que eu queria ser meu cachorro”. Nos bares corporativos, à noite, o olhar passa por pôsteres, nos quais se encontra escrito: O futuro foi cancelado por motivo da falta de interesse. Ao lado, tem-se: Nós somos as pessoas das quais nossos pais sempre nos advertiram. O sentimento temporal tardio e cínico é o sentimento da trip e do cotidiano cinzento, estendido entre um realismo aborrecido e sonhos diurnos incrédulos, presente e ausente, cool ou enrolado, com os pés no chão ou muito doido, de maneira totalmente aleatória. Com maior razão, espera-se por algo que corresponderia ao sentimento de dias melhores, espera-se que algo precise acontecer. E não poucos gostariam de acrescentar: não importa o quê. Sente-se de maneira catastrofal e catastrofílica, sente-se de modo agridoce e privado, quando ainda se consegue se manter livre da proximidade do que há de mais terrível. No entanto, bons exemplos não são fáceis de serem imitados, porque cada caso é outro caso, em particular o próprio. As pessoas ainda se presenteiam com livros e, quando o Papa vem para a Alemanha, se espantam um pouco que ainda haja efetivamente um Papa. Fazem seu trabalho e dizem para si mesmas que seria melhor se enfiar de cabeça no trabalho. Vive-se de um dia para o outro, de férias em férias, de jornais televisivos para jornais televisivos, de um problema para outro, de um orgasmo para outro, em turbulências privadas e em histórias de médio prazo, contraído, relaxado. Por alguns, a gente se sente “tocado”. Na maioria das vezes, porém, tudo é indiferente.

Os jornais escrevem que é preciso se dispor para lutar novamente mais pela sobrevivência, que é preciso apertar ainda mais o cinto, abafar as requisições; e os ecologistas dizem o mesmo. Sociedade de direito, [uma balela]. A gente faz doações em minutos de fraqueza para a Eritreia ou para um navio que segue para o Vietnã, mas não viajamos para lá. A gente gostaria ainda de ver muitos lugares do mundo e, em geral, “viver um monte de coisas”. A gente se pergunta o que fazer em seguida e como as coisas podem continuar assim. No folhetim do tempo, os críticos culturais discutem o modo correto de ser pessimista. Um imigrante do Leste diz para outro: já há muito vejo as coisas tão negras quanto tu as vês. Apesar de tudo isso e de tudo aquilo. Onde chegaríamos se todos se desesperassem? E o outro diz: o tempo do “apesar disso” passou.

Uns tentam há mais tempo concluir sua psicanálise, enquanto os outros se perguntam há muito tempo se podem por ainda mais tempo se responsabilizar perante si mesmos por não fazerem psicanálise alguma; mas também se precisa pensar no fato de que fazer psicanálise custa caro e avaliar quanto o seguro de saúde paga; e se depois disso ainda se pode agir como se acreditava no meio da miséria que se deveria poder; por outro lado, não se estava certo antes se se queria continuar como se estava até aqui. Ah, sim, se evidenciou, além disso, que cozinhar bem não é nenhuma traição e que essa história estúpida em relação ao consumo e ao dirigir carros não é de maneira alguma tal como se pensa...

Em um tal tempo dos segredos abertos, onde uma pequena economia bacana entalha o pensamento, onde a assim chamada sociedade se dissolve em cem mil cordões de planejamento e improvisação que ignoram uns aos outros, mas que estão ligados uns aos outros por meio de absurdidades de todo tipo – em tal tempo, não pode fazer mal ao Esclarecimento, ou ao que restou dele, meditar sobre suas bases. Para tais meditações, existem há muito tempo exemplos impressionantes. “A esfera pública” foi durante muito tempo um dos temas mais vigorosos do Esclarecimento, renovado, sobretudo em relação com a palavra “experiência”, e, mais ainda, com a expressão “contextos vitais”, e soava tão agradável ao ser escrita porque se tinha aí a sensação de que, em algum lugar, a vida formaria contextos. E um contexto é naturalmente algo assim como uma promessa de sentido.

Entrementes, contudo, a temporada de caça intelectual ao “contexto vital” caiu em desuso, porque ela representa um ser no mínimo tão raro quanto o Wolpertinger, o coelho que vive na Baviera com o chifre de veado e que os bávaros brincalhões costumavam caçar, quando os veranistas prussianos se mostravam espertos demais e mereciam uma lição. Mas desde o momento em que os prussianos passaram a ficar de fora e a formar por trás de seus dispositivos de autodisparo o seu próprio “conforto vital”, a caça ao Wolpertinger, o Esclarecimento especial para prussianos espertos, foi deixado para trás do mesmo modo que o Esclarecimento em geral e o Esclarecimento para não prussianos.

O que fazer então? [...] impertinência [insolência] [Frechheit].

segunda-feira, 8 de julho de 2013