quarta-feira, 31 de março de 2010

Nun Fucking

Pirilau trabalhava na roça. Certo dia, no meio da tarde, ficou sussa deitado à sombra da mangueira após o almoço. Seus colegas de trabalho estavam dormindo de verdade, mas Pirilau dormia com um olho só, pois não era bobo. Numa dessas ouviu o velhinho, porteiro do convento reclamando. Chorava de desgosto porque as freirinhas eram muito jovens, e por isso, enchiam o saco todo o tempo. Por essa razão, o velhinho porteiro nunca conseguia arrumar trabalhadores para cuidar do jardim, porque, mais cedo ou mais tarde eles acabavam desistindo, de tanto que eram importunados por demandas de meninas freiras.
Apesar de compreender bem o argumento, Pirilau achou que não haveria problemas para ele. Para conseguir o trabalho, planejou fingir-se de retardado e mudo, pois, de outro modo, atrairia a desconfiança do porteiro, que apesar de tudo era cuidadoso quanto à honra das freirinhas.
Então conseguiu o emprego e começou a cultivar o jardim. Como era de seu hábito, tirava cochilos com um olho só entre uma enxadada e outra. Então, deitado debaixo da parreira ouviu duas freirinhas se aproximando. Percebeu, com o olho aberto, que eram bonitas.
"Voce sabia", disse uma delas à outra, "que nada é tão bom para uma moça quanto divertir-se com um rapaz...um rapaz como o jardineiro ali deitado", e apontou o Pirilau para que a amiga soubesse do que falava. Mas a outra era muito tímida, "ain...mas será?", "é claro que sim!", respondeu a mais atrevida, "você não sabe que Deus criou o homem e a mulher para serem felizes juntos?", "hummm...", fez a outra, ainda olhando o Pirilau, que já estava em alerta para o que poderia acontecer. "Além disso", continuou a atrevida, "o jardineiro é tão retardado, que vai fazer tudo o que quisermos! E por ser mudo, não contará a ninguém!", "Ooohh!".
Então, a mais atrevida pegou Pirilau pela mão e o levou para o celeiro. "Vou eu primeiro, e se for bom depois é sua vez."
Durante algum tempo a primeira freirinha brincou com Pirilau, até que se esgotou. Depois foi o mesmo com a segunda, que perdeu a timidez...
Quando elas voltaram a seus aposentos, Pirilau levantou-se feliz, agradecendo a Deus por sua sorte.
Mal as freirinhas sabiam, no entanto, que duas de suas colegas viram das janelas de seus quartos o acontecido. "Vamos contar à Madre Superiora!", a outra pensou um pouco e respondeu, "Por quê contar se podemos aproveitar também?"
Então, de duas em duas, todas as freirinhas conheceram Pirilau, que apesar de feliz, já estava se esgotando. Finalmente, como não poderia deixar de ser, chegou a vez da própria Madre Superiora, que gostou de Pirilau ainda mais que as freiras mais jovens, a ponto de procurá-lo com muito mais frequência. Então, Pirilau não aguentou mais, "Senhora Madre Superiora, todos sabem que um galo já é o bastante para dez galinhas, mas que dez homens não podem satisfazer uma única mulher. Eu, sozinho, tenho que cuidar de vinte! Não é possível!", disse entre soluços.
"Vinte!", espantou-se a Madre Superiora percebendo que suas freirinhas eram tão espertas quanto ela. Depois saiu gritando, eufórica pelo fato de que o jardineiro tivesse recuperado a fala. "Um milagre! um Milagre!"

Adaptação da adaptação de um dos contos do Decameron de Boccaccio, por Pier Paolo Pasolini, em filme de mesmo nome.

terça-feira, 30 de março de 2010

raymond carver

Um conto alheio. Um breve vislumbre de um futuro possível e, talvez, próximo.

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"O bebê estava deitado no berço ao lado da cama, usando um gorro branco e macacão. O berço tinha sido pintado recentemente e enfeitado com fitas azul-claro e forrado com colcha também azul. As três irmãzinhas e também a mãe, que tinha acabado de levantar da cama e ainda não estava totalmente acordada, bem como a avó, estavam em volta do bebê, observando seu olhar e a mãozinha, que às vezes levava à boca. Ele ainda não sorria, mas, de vez em quando apertava os olhinhos e mexia a língua entre os lábios, quando uma das meninas mexia em seu queixo.

O pai estava na cozinha e podia ouvi-las brincando com o bebê.

-- De quem você gosta mais, nenê? -- perguntou Phyllis, apertando-lhe suavemente o queixo.

-- Ele gosta de todos nós -- Phyllis disse --, mas acho que ele prefere o papai, porque ele também é homem.

A avó sentou-se na beirada da cama e disse:

-- Olhe seus bracinhos. Tão gordinhos. E os dedinhos... iguaizinhos ao da mamãe.

-- Ele não é uma fofura? -- perguntou a mãe. -- Tão saudável meu garotinho. -- E, curvando-se, beijou a testa do bebê e puxou a manta sobre seus bracinhos. -- Nós também o amamos muito.

-- Mas com quem ele é parecido, com quem? -- gritou Alice e todas se aproximaram mais do berço, para ver com que o bebê se parecia.

-- Os olhos dele são bonitos -- disse Carol.

-- Todos os bebês têm olhos bonitos -- retrucou Phyllis.

-- Ele tem os lábios do avô -- observou a avó. -- Olhe bem o desenho dos lábios.

-- Não sei -- disse a mãe. -- Realmente, não sei.

-- O nariz, o nariz -- disse Alice.

-- O que tem o nariz dele? -- a mãe perguntou.

-- Parece com o nariz de alguém -- a menina respondeu.

-- Não, não sei -- dise a mãe. -- Acho que não.

-- Esses lábios... -- a avó murmurrou. -- Estes dedinhos... -- disse, descobrindo as mãozinhas e acariciando os pequenos dedos.

-- Com quem o bebê é parecido?

-- Ele não se parece com ninguém -- Phyllis disse. E todas se aproximaram ainda mais.

-- Já sei, eu já sei -- disse Carol. -- Ele parece com o papai. -- E todas olharam mais atentamente para o bebê.

-- E com quem o papai se parece? -- perguntou Phyllis.

-- É. Com quem o papai parece? -- Alice repetiu e todas olharam ao mesmo tempo em direção à cozinha, onde o pai estava sentado à mesa, de costas para elas.

-- Com ninguém -- disse Phyllis começando a chorar.

-- Psiu -- fez a avó, voltando-se para olhar o bebê.

-- O papai não se parece com ninguém -- disse Alice.

-- Mas ele tem que parecer com alguém -- disse Phyllis, passando uma das fitas na frente de seus olhos. E todos, exceto a avó, olharam para o pai, sentado à mesa.

Ele se virara na cadeira e seu rosto estava pálido e sem expressão."


Carver, Raymond. "O pai" In Fique quieta, por favor [tradução de Maria Helena Torres]. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

livre associação - the glossa

enfie sua lingua onde vc quiser! =P









segunda-feira, 29 de março de 2010

Hit the Road


...and don´t comeback no more, no more, no more!

Um post em incentivo a Arte Caótica Destruidora do Amor Puro e Sincero das Montanhas.

sábado, 27 de março de 2010

Peixebolagato

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Mother Fucka!

quarta-feira, 24 de março de 2010

(ainda) mais sobre sangue e perversão doentia

A menina pensava: "Mamãe poderia voltar. Se ela estivesse aqui as coisas ficariam bem. Ela costuraria meu vestido e acalmaria o papai. Papai..."

Enquanto o pai dormia no sofá, seu ronco expandindo um som desagradável e exalando uma aura de conhaque, vômito e perversões, a menina continuava refletindo as possibilidades de uma vida diferente. Em seu vestido, além de rasgos, crescia agora uma mancha de sangue, começava na gola e expandia-se. Não havia gritos, apenas lágrimas, obstinação e silêncio. Havia aprendido o manejo da linha e da agulha com a mãe, mas não pensava em consertar o vestido. Tentava costurar o que restava de sua inocência: a agulha e a linha uniam seus lábios, esperança de conter as investidas paternas.

Para sua tristeza, a menina sabia apenas uma parcela da podridão do mundo. "Papai vai me deixar em paz, não me obrigará mais a fazer o que não quero". O pai logo acordaria para ensinar para a filha mais um pouco sobre o pior dos mundos.

sábado, 20 de março de 2010

Mindcrime: História Divagante e certa Discussão com a Teoria Arthuriana.

Chegou em casa. Havia acabado de comprar o CD Operation: Mindcrime da banda Queensrÿche. Nunca tinha ouvido nada deles. Mas seus amigos haviam recomendado, então devia ser bom. Miguelzito, não sabia nem teria como saber, já que não era muito do tipo intelectual. Existia algo muito mais profundo nessa acquisição: sua compra refletia um resultado de diversos investimentos feitos nele pelos seus parentes e pela sociedade através de produtos materiais e intelectuais. O resultado disso, nas suas relações, é que ele tinha limites de escolhas com quem relacionar e a mercadoria adquirida acima representava isso, pois é a procura de pessoas com o mesmo interesse. E, mais do que isso, criar os interesses em si mesmo para se tornar o que os amigos esperam. Ou seja, uma pessoa que curte Queensrÿche. Porém não é só o que os amigos esperam, pois isso implica um pouco de passividade. Como se os amigos manipulassem Miguelzito. Na realidade, também havia um projeto de pessoa que ele tentava atingir.

Mas, como dizia, Miguelzito não sabia dessas coisas. E era até bom que não soubesse, pois isso permitiu que ele fosse feliz ao colocar o CD para tocar assim que entrou no seu quarto. Tirou o encarte da caixa e deitou na cama. Só olhou as imagens, não era tão bom de inglês, e o jogou de lado enquanto desgustava a música. E, logo, um extâse subiu em sua cabeça, se sentia entorpecido pelas notas que saiam das caixas de som. Banda fantástica, perfeita! Mal conseguia acreditar no que ouvia. Precisava de mais! O CD acabou e ele novamente apertou o botão play. Precisava ouvir novamente! E pela segunda vez experimentou o prazer. Nada mais importava para ele durante o tempo do album. Os vocais... As guitarras... O baixo.. A bateria... Fantásticos! Precisava de mais!

Se interessou pela banda, iria pedir aos amigos alguns CDs emprestados, queria ouvir mais. Precisava ouvir mais. Algo havia mudado em Miguelzito ao ouvir Operation: Mindcrime. Ele se tornava alguém diferente. E não porque ouviu, mas porque ouvirá mais Queensrÿche. E aqui o tempo é importante. Pois é o futuro que está moldando nosso amigo. Mas o Futuro não existe. Assim como o Passado, que agora é apenas uma memória. Mas a existência dessa memória torna tudo diferente. Projetos e ambições. E, em projetos e ambições, está refletido o futuro, ou pelo menos o que se espera dele. Está ali, mesmo que não se esteja atento a isso. E, Miguelzito com certeza não refletia em como o album que acabará de ouvir duas vezes iria influenciar sua vida no futuro. Assim como não pensava que o Universo em que ele vivia agora era diferente do Universo em que ele viveu quando chegou em casa, e que, nesse novo Universo ele era um novo Miguelzito, com uma nova experiência de vida.

Devido a ignorância de nosso amigo, ele não pode contemplar esse momento mágico com toda sua plenitude. Ele não exibia o estado de surpresa esperado de alguém que, a cada segundo, presencia o novo. Embora ele sentisse o extâse esperado desse alguém a cada música, a cada passagem do CD, desse alguém que está diante do magnifico.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Palavras - O problema da Cor Amarela (Ou o Acordo Coletivo)

Como você explicaria para uma pessoa que não vê cores o amarelo? E como você explicaria para uma pessoa que nunca comeu uma maçã o gosto dela? Não é explicável. O que existe é um acordo social, e vale ressaltar esse caráter coletivo, que determina uma característica, uma cor. Uma pessoa cega, ou daltônica, estaria limitada nesse acordo. Mesmo que elas entendessem a palavra, não compreenderiam seu significado na totalidade. Embora, se pensarmos um pouco mais, a compreensão da totalidade, a compreensão limite, ou a compreensão universal, talvez seja algo impossível. Em outras palavras, duas pessoas, expostas a uma mesma palavra não necessariamente terão a mesma percepção dela. Isso porque cada pessoa carrega experiências pessoais que são refletidas na sua interpretação de algo, mesmo que esse algo seja uma cor, uma experiência simples.

Para tentar perceber essa experiência simples, podemos pensar num problema de tradução. Imagine que, ao ler um texto em francês, surja a palavra jaune. Procurar sua definição num dicionário francês-francês resultaria: "Qui est d´une couleur placée dans le spectre entre le vert et l´orangé er dont la nature offre de nombreux examples (or, miel, citron)"; há outra definição que é interesante anotar: "race jaune: race humaine, en majeure partie asiatique, caractérisée par des yeux bridés et une peau d´un brun clair." No primeiro exemplo mencionado, tem uma tentativa de classificar a cor de maneira científica, que é o lugar que ela ocupa dentro do espectro envolvendo todas as cores. Mas, isso não diz muita coisa para a pessoa comum. Então, o dicionário se preocupa em oferecer exemplos da natureza, como o ouro e o mel. Ou seja, somos remetidos a experiências visuais de nossa vida, no caso, uma das características de determinados objetos que o classificam como de cor jaune. Mas, se os exemplos mencionados nunca tivessem sido vistos pela pessoa que lê a definição, ela não teria como saber de que cor se trata. No caso, uma tradução pode ser uma boa maneira de obter a resposta: amarelo. Nesse caso, você se remete a uma experiência intermediada pela sua língua. Embora isso pareça algo óbvio e simples, também existe o caráter político da palavra e, por isso, eu fiz questão de pegar a segunda definição. Nela, a cor amarela remete a cor de uma raça humana, no caso a maioria asiática. Ou seja, apesar de parecer simples, as palavras possuem um imaginário maior vinculado a elas do que o simples reflexo de elementos da natureza.

Voltando um pouco e retomando a questão do gosto. No caso de bebidas, como Vinhos ou Uísques, é comum ver resenhas que identificam os vários sabores presentes nelas, como o gosto de carvalho, baunilha, fumaça, frutas vermelhas,... É uma tentativa de, através de palavras, passar a experiência. Entretanto, mesmo sabendo os sabores existentes numa bebida, não sentimos ou apreciamos os mesmos. Pois, embora essas resenhas tenham implicitas nelas que todos os sabores estão presentes na bebida, sentir algo é apreciá-lo na sua individualidade. E, se sabores são ignorados, quer por falta de conhecimento, prática ou o que quer seja, eles não existem para essa pessoa ou para sua experiência. E, mesmo a tentativa de definir os sabores de uma bebida implica em remeter a outros sabores. Como, dizer que o gosto de carvalho está presente ali. Ou seja, a tentativa de definir o gosto de uma bebida, no caso, é a tentativa de relacioná-lo como diversos outros gostos. Mas, uma leitura dos gostos presentes não trazem, para a pessoa, a experiência do gosto de um Uísque. Assim como, voltando a cor, a leitura da palavra amarelo não tras toda a experiência dessa palavra para quem a ouve ou lê, principalmente se essa pessoa não estiver imersa no mesmo ambiente social que quem a produz E, é por isso que eu ousaria dizer que, um xingo em outra língua, é menos efetivo do que na própria. Pois, é necessário ter a experiência ofensiva da palavra para compreendê-la em sua profundidade.

Vemos então que é a compreensão das palavras requerem um acordo coletivo do que elas sejam e essa compreensão perpassa a experiência social. Poderíamos dizem que as palavras evoluem em sentido conforme passam a ser usadas em novas contextos, adquirindo novas experiências e novas maneiras de compreendê-la. Por isso, algumas palavras podem passar de um sentido pejorativo para um sentido positivo, assim como o contrário é possível. E até mesmo a incorporação de novos significados acontece. Palavras não são, então verdades, mas variáveis. Embora tragam em si um objeto real, a compreensão desse objeto passa pela experiência pessoal. E por isso, podemos arriscar a seguinte afirmação: numa situação limite de alteridade, uma palavra emitida só é perfeitamente compreensível para o receptor se ele e o interlocutor forem a mesma pessoa. As palavras tem em si o desafio então, o desafio que vem com o Acordo Coletivo: ou seja, a cultura, a sociedade, o costume, os grupos sociais criam a concordância em algo, e tentam limitar o máximo a sua interpretação e, assim, tornar a comunicação mais clara possível. Criar novos significados é a maneira de se rebelar contra esse autoritarismo.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Desespero

Sorenito bebia demais apesar de sua fé em Cristo. Ainda assim, Cristo, que é piedoso, perguntou-lhe:
- Filho, por quê bebes?
- Mano - respondeu o garotinho - sei lá...
- Tu é alcoólatra?
- Não sou alcoólatra! Sou um menino infeliz...
- Uuuuuuuuuh! nhó nhó! tá tristinho? uhauhauhauha!!! - zuou Cristo
- Mais respeito, mano! Sou filósofo e cristão, sei das coisas. Bebo minha pinga como quem toma um remédio contra o mal que há na alma humana! O bar é hospital dos solitários.
- Nhó!
- Porra, mano! - revoltou-se Sorenito - Vai ficar de gracejo? Não vê que preciso encontrar meu EU verdadeiro? Encontrá-lo-ei em você, Cristo.
- Já volto - respondeu Cristo e saiu pela porta, ou melhor, pela parede, porque Cristo atravessa a parede, que é o próprio Cristo, ou melhor, que é parte do próprio Cristo transformado em matéria, em parede.
Sorenito, em meio ao desespero pegou na geladeira uma garrafa de pinga com flocos de gelo e saiu - pela porta. Sentou-se na calçada e começou a beber, enquanto observava as pessoas passando, os cachorros passando, alguns poucos carros. "Pobres pessoas comuns", pensou.
De repente um caminhão passou tão rente à calçada, que esmagou as pernas do pequeno pensador. Entretanto, Sorenito percebeu que estava tão bêbado que era como se o caminhão tivesse passado por pernas que não eram suas. "Não sinto minhas pernas como minhas porque meu Eu se perdeu de mim", pensou no embalo da sabedoria alcóolica. Então comentou com o cachorro que se coçava a seu lado:
- Tô zuado, vou dormir.
- au! au!
Levantou-se e foi pra casa. Depois de muito tempo dormindo e refletindo em sonhos sobre seu desespero existencial, um estalo fez com que abrisse os olhos. Então caiu o teto bem em cima de sua cama quentinha e protegida. Apesar de tudo, morreu como se fosse um tomate fresco levando uma chinelada.

quarta-feira, 10 de março de 2010

notas dispersas

O desespero de Kierkegaard era cristão, sua fé, mesmo em crise, dava vazão à dor, com possibilidade reflexiva de alguma salvação; dor reflexiva, desespero teorizável.

Preciso de alguma fé para meu desespero (?)



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sábado, 6 de março de 2010

Mais sobre sangue e perversão doentia

1-Na fila do açougue, uma menina bonitinha, loirinha, cachinhos nos cabelos.
O açougueiro barbudo, barrigudo, com o cigarro no canto da boca sem dentes, cortava a carne com seu facão velho, cuja lâmina o tempo de uso escureceu.
A menina bonitinha, achando que ninguém percebia sua atitude, mantinha o olhar fixo na lâmina escura do açougueiro, que atendia ao pedido do primeiro cliente da fila. O açogueiro dilacerava com dificuldade os pedaços de bife da peça nervosa de carne. O sangue escuro escorria em gotas pela lâmina escura da faca e pingava bonito no avental branco-branco do açougueiro. A menina bonitinha saiu da fila, sentou-se no chão sujo e grudento de sangue velho de bois mortos, e fingiu que se masturbava. O olhar fixo no corte da faca vertendo gotas escuras.
[A menina bonitinha da foto chama-se Taylor Swift. Com isso, transformo a descrição em redundância - o que é discutível - e nego-lhes parte da liberdade de imaginação pelo uso da imagem.]

2- "enquanto a mulher não alcançar não só uma real independência diante do homem, mas também um novo modo de conceber a si mesma e a sua parte nas relações sexuais, a questão sexual permanecerá rica de aspectos doentios, [...]" - Antonio Gramsci


3- Pardais e explosão de cabeça

quinta-feira, 4 de março de 2010

parágrafos

Pedaços do teto refletidos no chão enquanto tentava olhar dentro de si mesmo. Os restos da luz de um dia passado eram o contraponto à penumbra do quarto no presente. Sem mais sons, arremessa o espelho: cacos espalhados. Reflexos de um mundo não desejado. Resignação: abaixa a cabeça, pedaços do teto refletidos enquanto encara o vazio.

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Depois de acordar, costumava apreciar o movimento suave das folhas das poucas árvores observáveis a partir da janela do meu quarto. Era uma época agradável, hoje percebo. As árvores permaneceram. Eu perdi as raízes. Estou seco. Peço esmolas e tento amainar minha sede afogando-me em aguardente e lembranças roídas.

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A imagem da Santa foi encontrada no rio perto do qual vivi minha infância. Interpretei isso como demonstração inequívoca de bom agouro. Pedi para meus dois filhos reunirem toda a família para visitarem-me no hospital, minha residência permanente nos últimos três meses. Todos espremidos em minha morada: olhei serenamente para esse conjunto de existências. Ordenei, sem demonstrar raiva ou nervosismo, que me matassem. Não esperava respostas, nem consolações, petrifiquei-me com um sorriso sincero no rosto.