quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Repetições

1- Lá fora tem muitas galinhas. Elas ficam ciscando o dia todo as sementinhas de grama que nascem em meio ao barro sujo da praça.
Os sacos de lixo eventualmente caem no chão e fazem espalhar pela rua os segredos mais íntimos (e já em putrefação) de toda a vizinhança, assim que os cachorros enfiam neles seus dentes famintos.
O papel higiênico cagado pela donzela mais bonita da rua estará lá delicadamente exposto ao sol pela manhã.

2- Conforme os dias iam passando o gesto de olhar rapidamente para o sapo morto, na intenção de evitar pisá-lo, ia ganhando novos interesses. Por exemplo, como era possível que os cachorros da rua e os velhos que varrem para longe de suas calçadas as sujeiras todas, deixassem ali, no mesmo lugar, por dias e dias o sapo morto.
Depois notei que, de fato, jamais houve necessidade alguma de que os velhos e os cachorros interrompessem suas diversões cotidianas com a preocupação de remover o sapo da vista dos passantes. Aconteceu que, naturalmente, ao longo do tempo, as rodas de um ou outro carro acabavam passando, apesar do espaço todo da rua, bem por cima do espaço ocupado pelo sapo. Agora ele está lá, esmagado e preto. Ainda mantém a forma de sapo, mas está colado ao chão, como se fosse um desenho de um sapo, e aos poucos vai se tornando parte do asfalto.

3- O despertador explodiu como uma bomba às 7:26 da manhã. Meu corpo obedece a um reflexo rápido e inexplicável e minha mão interrompe prontamente a musiquinha desastrosa que todos os dias exige o retorno à realidade duvidosa do mundo. Permaneço na cama me perguntando com qual velocidade os minutos estão passando enquanto me decido se devo ou não me levantar. Pego novamente o despertador depositado com ódio ao lado da cama. São 7:40. É sempre assim. Saio da cama. Alguma coisa está errada, eu percebo e não tenho como negar, agora já estou habituado a reconhecer os sinais. É preciso evitar que o mal se espalhe.

sábado, 10 de agosto de 2013

Situações

1- Às vezes parece que falta muito pouco, mas justamente esse pouco é insuperável.

2- Os assentos especiais para grávidas, velhos, e deficientes nos bancos e nos ônibus, são indícios que revelam o que é a vida moderna. Obviamente que a partir do momento em que se vive em uma grande cidade é preciso obrigar as pessoas a serem gentis.
Mas isso nem é uma questão de gentileza, na verdade. Na verdade é inevitável que seja assim. Ninguém é capaz de dizer bom dia a todos com quem se pode cruzar pelas ruas e dentro dos supermercados. Os atendentes dos caixas dos supermercados, por sua vez, precisam ser obrigados a olha na cara o cliente e sorrindo, dizer-lhe bom dia. O padrão de atendimento é capaz de tornar mais agradável a manhã dos clientes dos supermercados quando um gerente de loja tem a função de garantir a manutenção da simpatia artificial que rompe com a inclinação natural do homem urbano à indiferença.

3- Eu ia subindo sozinho aquela rua inacreditavelmente íngreme pela qual resolvi me conduzir no meio da noite.
A dor começou leve e depois foi logo aumentando sem nenhuma consideração ao meu arrependimento e aos meus apelos silenciosos a entidades imaginárias genéricas, de que iria com certeza, daqui em diante, me comportar melhor. Sentia meu estômago sendo rasgado novamente. Pela boca já iam me escapando arrotos que me davam, pelo sabor que tinham, a certeza de que se havia azedado dentro da minha barriga todo o peixe com fritas e arroz e suco engolidos no almoço.

4- Um homem mais velho de cabelos grisalhos bem arrumados. Roupa social e um ar de quem, após longo tempo dedicado a ser reconhecido como responsável e competente, tornou-se também acostumado a dar ordens. Neste momento, no entanto, com a mesma disciplina que "o fez chegar onde chegou", ele ouve um almofadinha, pelo menos 20 anos mais jovem, que lhe explica a maneira correta de dar aos clientes a senha de atendimento comum ou preferencial. Será essa a função que executará daqui em diante. O salário será mais baixo, a autoridade será nenhuma, a prática profissional de anos de experiência é agora completamente inútil. Mas é preciso trabalhar e ocupar a cabeça.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Luris e as Duas Hospedeiras

           Conta-se que, certa vez, Luris viajava até Volmuria para eliminar um demônio que aterrorizava os habitantes dali. Nessa época, a cidade ainda não era o grande porto que viria a se tornar se não fosse pela intervenção do Senhor da Luz, era apenas um pequeno posto comercial.
No caminho, Luris passou por uma vila. Como era noite, ele já viajava a dias e via que em breve começaria a chover, ele resolveu pedir em uma casa se poderia passar a noite. Quem atendeu era uma mulher ranzinza com um olhar que parecia odiar a todos e até si mesma. Ao ver aquele homem estranho a sua porta não quis ajudá-lo.
- Mas eu aceito até dormir no seu estábulo. Só quero um teto para me proteger da chuva.
- Não tenho vaga e você assustaria os meus animais, que precisam estar bem relaxados para o trabalho duro de amanhã. Vá na casa da vizinha de baixo, ela talvez te aceite. – E fechou a porta na cara do estranho, sem saber que ele era o Grande Senhor.
Luris não se chateou. Para ele era um direito dos mortais de duvidarem das intenções daqueles que batem na sua porta. Ele seguiu a estada mais um pouco até chegar em outra casa. Bateu na porta e foi atendido por outra senhora:
- Se você realmente não se importa de dormir no estábulo, eu não tenho problemas. E eu acabei de fazer uma sopa, se quiser um pouco.
Luris aceitou grato a comida e o lugar para dormir. Naquela noite, se abrigou no estábulo e dormiu no feno. Acordou logo cedo, antes que todos, para seguir sua viagem. A mulher, sem saber que seu hóspede não se encontrava mais ali, foi lhe acordar, pois precisava retirar os animais para o trabalho no campo. Eis sua surpresa ao ver que, o feno onde nosso senhor dormiu, havia se tornado ouro. Ela mal pode acreditar nos seus olhos. Estava rica.
Mal fez essa descoberta, sua vizinha chegou para fofocar e lhe contou sobre o estranho que havia passado na sua casa tarde da noite e como ele teve a coragem de pedir um lugar para dormir. A hospedeira do senhor Luris lhe disse que esse mesmo homem veio e que ele devia ser o próprio Luris, pois o lugar em que ele dormiu havia virado de ouro. A primeira não acreditaria, se ela não tivesse visto o feno por ela mesmo.
A hospedeira então, pegou todo esse ouro e investiu na sua fazenda. Comprou animais, aumentou suas terras e sua plantação e começou a trabalhar que nem louca para dar conta dos seus novos bens. Enquanto isso, a mulher que havia recusado Luris se roía de inveja e falava mal da vizinha pelas costas. Estava indignada como ela era burra e havia transformado todo aquele ouro em mais trabalho. Ela, se tivesse toda essa riqueza, teria vivido uma vida de rainha.
Um mês se passou e Luris voltava pelo mesmo caminho após ter eliminado o demônio que atazanava Volmuria. As pessoas do local lhe ofereceram várias recompensas pelo seu feito, as quais ele agradecidamente refutou, exceto por umas pequenas doações que ele usaria para pagar o seu caminho de volta. E foi assim que, ele se encontrou novamente na vila do começo de nossa história, mas, dessa vez, ele foi até uma estalajem aonde pagou por comida e pretendia pagar por um quarto.
Estava sentado no seu canto, sem chamar atenção, pois ninguém sabia que ele era o Senhor da Luz, quando a primeira mulher o viu ali. Ela correu até ele, pois não queria que ele dormisse em outro lugar a não ser na sua casa.
- Ó senhor. Você por aqui de novo? Desculpe-me aquela noite, estava de mau humor e não fiz o bem como devia em ajudá-lo. Já tem um lugar para ficar?
- Pagarei por um quarto aqui hoje a noite.
- Não, eu faço questão que você durma em casa, assim não precisará gastar um tostão com acomodações.
Ela tanto insistiu que nosso Senhor aceitou sua oferta, mas fez questão de dormir no estábulo, embora ela tenha lhe oferecido uma cama dentro de sua casa. Luris passou a noite ali e, antes que qualquer outra pessoa acordasse, ele já estava de pé e seguiu viagem de volta a Valwick.
A mulher acordou o mais cedo que pode, mas não mais cedo que Luris, e correu para o local em que o Senhor havia passado a noite. Ela pulou de alegria ao ver todo aquele feno transformado em ouro, como o da sua vizinha. Com tanto ouro, ela parou de trabalhar, pois podia comprar tudo o que precisava. Começou a comprar várias jóias e os vestidos mais caros.
Alguns bandidos, sabendo dos boatos das duas vizinhas que ficaram misteriosamente ricas se dirigiram até o local para se enriquecerem. Eles invadiram a casa da primeira mulher e levaram tudo o que ela tinha. Não deixaram nenhuma das suas riquezas recém-adquiridas com ela e nem seu ouro. Foram então para a segunda casa e levaram o que encontraram de riquezas, que foi pouco, pois a segunda mulher havia investido seu ouro em animais e plantações, e esses bandidos não estavam interessados nem em um e nem no outro.

Assim, chegou o inverno e a época da colheita. A segunda mulher ficou rica com tanto que colheu. A primeira se afundou em dívidas e logo perdeu tudo e foi forçado a pedir ajuda, mas como não gostavam muito dela, sempre lhe fechavam a porta na cara. Assim, ela morreu de frio numa das noites de inverno.