terça-feira, 30 de novembro de 2010

"Desde que as pessoas se tornaram insuportáveis, a ideia de que, apesar disso, ainda posso habituar-me aos livros, tornou-se também insuportável" - Louro José

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

"Eu sei que a burguesia fede, mas tem dinheiro pra comprar perfume."
Falcão

"O cheiro podre vem de você."
João da Silva

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Joãozinho, 10 anos, decidido, conversou com sua mãe:
-- Mamãe, já sei o que eu quero ser?
-- É mesmo meu queridinho! O quê?!
-- Paisagem.
...
Há muitos anos atrás, Joãozinho, um arbusto sem raízes, estava já com mais de metro e meio. Os pais mudaram de casa. Os novos moradores não gostaram do estilo do jardim e, em um dia de churrasco, cortaram Joãozinho na altura das canelas, usaram os braços para acender a churrasqueira e fizeram do tronco o prato principal de uma bela fogueira.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Coletânea de ideias subdesenvolvidas

1- Bom foi o tempo em que eu tocava guitarra todos os dias.
2- Só escreve quem passa mal. Só quem passa bem tem o direito de julgar em que grau é idiota quem escreve.
3- O som de uma cadeira quebrando na parede; o som de um violão quebrando na parede; uma musiquinha bonita de 3 ou 4 notas, vinda não sei de onde, tocando durante horas no meio da madrugada; carrinho de necrotério [?] andando sozinho devagar/rápido no quintal; o som de um crânio sendo quebrado conra o asfalto é sempre prejudicado/abafado pelos miolos que eventualmente/necessariamente o preenchem; o som de alguém vomitando/chorando no meio da noite.
4- anotações de ideias subdesenvolvidas.
5- Bateram na porta às 3:26 da manhã:
- Joãozinho!
- Que foi ?! (gritou raivoso dormindo)
- Posso entrar?
- Pode! (gritou raivoso dormindo)
Abriu a porta e entrou e estava pelada - UAU!, gritou raivoso dormindo - depois entrou mais outra, que Joãozinho nunca antes em sua vida toda havia visto. Essa outra também estava pelada.
1,2,3,4,5,6,7,8,9,10
...
1,2,3,4,5,6,7,8,9,10
Depois entrou mais outra que era igual a anterior, e igualmente estava pelada. Passaram-se dois segundos e entrou pelada mais outra que era igual às duas anteriores. Depois disso, a cada dois segundos entrava pelada uma nova igual à anterior, até que não coubesse mais nada entre as paredes, e mais nada entre o chão e o teto.
Joãozinho estava com muita sede mas não tinha como ir até a cozinha. Os olhos ardiam e ainda faltava tempo até o sol nascer.
6 - Se escrever um blog não fosse apenas passatempo, seria, então, uma profunda imbecilidade.
7- Outro dia descobri que a vida é muito mais simples do que parece. O segredo está em não levar tão a sério as coisas. Sim! É isso! É preciso superar as adversidades/a dominação para evitar a reprodução do fracasso. Então saí de casa capaz de criar novas possibilidades. Entretanto, de repente, sem que eu pudesse evitar, veio um caminhão e me atropelou bem na cabeça! Depois disso os miolos se espalharam sem levar a sério as coisas.
1,2,3,4,5,6,7
...
1,2,3
O asfalto ficou quentinho e nojento.
8- "Isso vai mal" - Graciliano Ramos
9- "Sim. Não. Sim. Não" - Graciliano Ramos

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Rubens e ela 5

"são vocês dois que me ajudam a foder o pedrafilosofal. ela [apontando-a para mim] trabalha na assessoria do partido. não cuida só do pedrafilofal mas tem bastante influência em todo o partido. ele [apontando-me para ela] trabalha no gabinete em brasília. tem controle sobre toda a burocracia que envolve o mandato de senador do pedrafilosofal. decidi apresentá-los porque percebi os dois bastante nervosos nos últimos meses. acho que é a proximidade do ano eleitoral, não?".

********

fiquei com cara de bunda, acho, quando o rubens me apresentou a ela com toda essa naturalidade. acho que foi uma cara de merda qualquer porque ela também fez uma cara que misturava incredulidade, alívio e raiva. ou assim quero eu acreditar. não, eu não acreditava que o rubens tinha feito o mesmo plano com outra pessoa. sim, eu estava aliviado de poder dividir o trabalho com mais uma pobre alma. e sim, eu estava com muita raiva, mas não sabia de quê. estávamos congelados, ainda sem saber o que fazer a não ser trocar olhares constrangidos e curiosos. ela disse: "que merda, rubens! qual o seu problema?". ele respondeu que decidiu envolver-me porque precisava de mais controle sobre o pedrafilosofal. não ia contar nada a nenhum de nós dois. mas disse que estava notando uma angústia muito parecida em nós "acho que pode ser a perspectiva de que os dois vão levar na bundinha junto com o pedrafilosofal no fim do ano que vem". isso era verdade. eu sabia desde o começo que ia me foder assim que o pedrafilosofal tivesse sua eleição impugnada pela justiça eleitoral. "vocês dois estiveram dispostos a sofrer todas as consequências desde o começo mesmo sabendo que minha bunda estaria salva. achei que pelo menos isso seria algo em comum entre vocês. sabiam que comigo não ia acontecer nada. no máximo um tarzanzinho ia ficar pendurado. coisa de um peteleco". rubens explicou que no máximo ele seria rebaixado do cargo de redator chefe quando viu a expressão de incompreensão dela ao ouvir a palavra "tarzanzinho". só sei que no fim ficou tudo bem. depois de muita explicação e passada a raiva, começamos a conversar os três sobre o plano. na verdade o rubens mais observava enquanto eu e ela partilhávamos nossas experiências e nossas esperanças para um futuro já não muito distante. às vezes acho que o rubens gosta de brincar de marionetes. antes achava que era com o pedrafilosofal só. pensando bem, agora, acho que comigo e com ela também. rubens filhodaputa. fazer o que? não temos mais volta. o rubens me disse uns meses depois que ela queria falar comigo. e me passou o número dela. então combinamos de foder com o rubens.

domingo, 21 de novembro de 2010

resenha

1. Peter Brötzmann Octet / Machine Gun (Second Take) // Álbum: Machine Gun [1968]

1. -- Calma lá! Há um pouco mais de incompreensão entre nós do que o necessário, deixe-me explicar algumas coisas.
-- Acho que já ouvi o suficiente.
-- Mas, ao menos, preste atenção agora... – e cortou-me no meio da frase. Seu juízo dava-lhe, supunha, segurança para todos os argumentos de autoridade imagináveis. Sorte minha a debilidade de sua imaginação. Mesmo assim aproveitava, com redundâncias, as parcas elaborações que lhe vinham em turbilhão língua afora. Bem poderia eu ter apenas saído de mansinho, rabo entre as pernas, servil, um comportamento exemplar, porém não, resolvo meter os pés pelas mãos, quero elucidar para mim mesmo o quanto estou correto e todos os outros estão errados, ou, no mínimo, potencialmente equivocados até que eu tenha uma opinião sobre seus pensamentos e ações. Lembro-me: a unha do dedinho incomodando, sapato do pé esquerdo justo demais, desgraça, talvez encrave, ou, quem sabe, perco a unha, inútil. De repente, percebo um silêncio e retorno minha atenção para o momento: está a encarar-me, espera minha resposta para sei lá o que de tão grave precisava exortar em minha moral, presumo. Fecho um pouco o olho esquerdo, tamborilo a mão direita no queixo, disfarço refletir, e comento:
-- Sabe... Peço arrego.
Viro as costas e bateria a porta, caso houvesse.



Obs: o vídeo não apresenta a música completa...

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

"Desde que me habituei aos livros, me parece que as pessoas tornaram-se todas insuportáveis." - Ana Maria Braga

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Prometeu que seria a última vez, olhou ao redor, tentou rememorar, sem sucesso, onde estava, saiu do quarto sem dizer uma palavra, tentou passar despercebido, mas teve que dizer dois bons dias antes de encontrar a saída, encarar a rua e tomar um rumo.
Ficou passeando por esquinas aleatórias, sem esperança, apenas pelo prazer de andar durante uma manhã nublada. Não havia nem um bar, um que fosse, pelamordedeus, aberto.
Um ônibus, dois ônibus, parou de contar, passavam pelo ponto em estava sentado. Encarava os passantes para poder dizer bom dia, agora estava mais disposto, queria tirar as pessoas do isolamento matinal, provavelmente prolongado dia afora, fosse pelo trabalho, pela procura deste, pelas ilusões de um dia melhor, pelas desilusões com o momento.
Tempo vai, tempo vem, desistiu. Deixou-se levar pelas horas dos relógios espalhados pelos homens no mundo enquanto apreciava, com calma e alegria, o vagar das nuvens, suas amigas e familiares, que seguiam os caminhos dos ventos para, logo mais, logo menos, dissiparem-se.

domingo, 14 de novembro de 2010

O lagarto achatado na pedra. Escondido, o sol. Na ausência aparente, os abutres desaparecem, interiorizados.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Rubens e eu 4

"mas o que é isso? eu to cercado de putas?". foi quando falei isso que o olhar dela cravou meus pés. eu sabia que tinha ido longe demais. o pai dela que assitira tudo das sombras do canto da sala interveio. "rubinho, você fala muito palavrão". depois daquele dia eu só conseguia me definir a partir de palavras xulas. se eu não falasse assim não me identificaria. no fim das contas era divertido, porra. mas eu sempre ia longe demais.

***********

"alô? renata? ô minha filha faz o favor de me passar pra assessoria? obrigado, lindinha." a voz do outro lado saiu rouca de cansaço. eu disse: "olha só. eu sei que com as eleições municipais você vai ter que trabalhar com muitos outros candidatos porque é do partido. mas não me perde o filhodaputa de vista. entendeu?". palhaçada me responder com tanta irritação. era só uma recomendação e já recebo bolada no queixo. sei que no fim discutimos. porra. tomar no cu. eu teria que ir na sede do partido pra falar cara a cara com ela. uma hora depois entrei na sala que já estava estourando de tanto papel. "caralho. como você trabalha aqui?". "pois é, rubens! e você fica querendo me foder com mais trabalho". naquele momento eu fiquei sem ação. não por pena. não. porque eu não tinha argumento diante de tanto trabalho."desculpa, porra. não sabia. mas também estou trabalhando pra caralho. e eu sou chefe de redação. qualquer merda que fazem é meu cu que suja, porra." foi quando ela me mandou tomar no cu. tirei a calça, virei a bunda e comecei a gritar: "tá aí meu cu! tá aí, porra! vai ser grossinha? vai?". fiquei nessa situação até ela ter uma reação que foi a de abrir a porta e chamar a segurança. não deu em nada, claro. eu conhecia todo mundo ali. mas ela voltar pro trabalho e me ignorar logo depois me fodeu. aquele mês foi foda. não conseguia nem xingar alguém de carne mijada. tomar no cu, porra.
Exercício de sutileza: viver na surdina, morrer despercebido.

resenha

1. Swans / Blackout // Álbum: Filth [1983]
2. Swans / Thank you // Álbum: Filth [1983]

1. Todos os móveis na rua, quarto vazio, busco uma cadeira, resta aproveitar o que resta. As paredes, após fechada a porta, compõem um ambiente propício. Para quê? Melhor não raciocinar, aliás, isso não é uma virtude. A cadeira passa a ser um excesso, arremesso-a para os quatro cantos até cansar-me. Tonto. Tonto. Encosto e, lentamente, escorrego. A cadeira retorcida no outro canto. Inspiro, expiro. Inspiro, deito, espero.

2. Em um dia qualquer, alguma hora qualquer, decido tornar-me grato pela totalidade das coisas, sejam pessoas, animais, objetos, misturas desses elementos ou todos englobados em uma unidade inseparável e não presumível, vislumbrada apenas em raros momentos de lucidez infantil. Concentro todas as energias possíveis no intuito sincero de ser violentado, e aguardo. [...] No chão, aguço os sentidos e deixo estar.

1 -


“Get drunk
Get drunk
Breathe in
Breathe in
Hold it in
Hold it in
Don’t breathe
Don’t breathe
Blackout
Blackout
Blackout
Blackout
Blackout
Don’t talk until you’re spoken to
Don’t talk until you’re spoken to
Don’t breathe
Don’t breathe
Blackout
Blackout
Blackout
Blackout
Blackout
…”


2 -


“Talk to me
Tell me the truth
This smells sour
Burn my face


This smells sour
Burn me now


Burn my face
This smells sour
Burn me now”

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Sou tão volúvel que o impulso suicida da noite passada durou apenas até o momento em que a informação de que haveria sorvete de sobremesa no bandejão transformou-o em felicidade verdadeira.

Variação: Dexter

Eles estavam ali: sentados e observando. No céu a lua cheia brilhava, bela, agraciando-os nessa longa noite. Longa. Mas eles tinham paciência. Apreciavam cada minuto em silêncio.

Alguns metros dali estava ele: sentado e observando. Assistia os últimos minutos do jornal no conforto de seu sofá, dentro de sua aconchegante casa. Quando acabou o programa, desligou a TV e foi para seu quarto.

Eles inspiraram com satisfação. As mãos apertadas no volante. A qualquer minuto agora. Faltava pouco, pouco. A noite seria longa, só mais alguns minutos. Precisavam se assegurar que ele já estaria dormindo quando entrassem. Era assim que a caçada funcionava, embora, com certeza, fosse mais divertido quando a caça tinha ciência do seu predador. E eles iriam assegurar que ela soubesse, mas no momento certo. Por enquanto aguardavam. A qualquer momento. Uma hora , uma eternidade, mas o agora chegou, finalmente, e eles desceram do carro.

Caminharam até a porta pelas sombras. Se asseguraram que não havia olhos indesejados e em segundos arrombaram a porta. Estavam experientes nisso já, tão rápidos e eficientes como se tivessem a chave. Moveram-se silenciosamente. Estava escuro, mas não se importaram. Os sentidos estavam no auge. Tudo parecia tão claro. E já estiveram ali, claro, conheciam muito bem a casa. E se moveram rapidamente até o quarto. Deram uma espiada lá dentro. Dormia. Muito bom. Foram ao banheiro primeiro, não porque precisavam usá-lo, mas para deixar uma pequena linda supresa. E retornaram ao quarto, desta vez para ficar.

Observaram a caça e uma estimulante sensação percorreu cada músculo de seus corpos. Eles suspiraram em prazer. Logo ele seria deles. Inspiraram. Logo. Expiraram. Ele tinha uma poltrona logo ao lado da cama. O lugar perfeito para se sentar e observar. Admiravam sua caça, enquanto aguardavam. Não havia graça em eliminá-la assim, inconsciente, sem saber porque e por quem. A qualquer minuto. Cada segundo a fome aumentava. Eles resistiam, sabiam que isso só aumentaria a satisfação. E aconteceu.

Do banheiro uma música começou a soar. Ele acordou assustado. Conhecia aquela música, eles sabiam, e observavam. Ele correu até o banheiro, sem perceber que não estava sozinho no quarto e ali estava ele, dentro da pia, soando. Ele conhecia aquele celular, mas o que fazia ali? Caminhou trêmulo e o pegou. Na tela havia uma mensagem: "Bu!". Eles sabiam que não era muito criativo, mas fazia o serviço, e antes que ele pudesse reagir, um cabo estava em torno do seu pescoço. Tão forte que ele não conseguia respirar.

- É inútil resistir contra nós. - E logo ele estava inconsciente de novo.

A lua, bela, bela, bela lua. No seu auge, tão perfeita, tão cheia, dominando o céu. Assim como eles dominavam o homem na terra. Tão bela lua, os agraciando em seus movimentos. E finalmente o homem acordou. Confuso. Olhou em volta, estava sozinho naquele bosque. Como fora parar ali? Estava na sua casa e... Medo começou a lhe encher a alma. Olhou em volta, conhecia aquele lugar, era familiar. Seus sentidos alerta, se levantou e de novo o cabo estava em torno do seu pescoço. Forte, como da última vez. Sentiu uma pancada nas suas costas e caiu de joelhos. O cabo afrouxou um pouco e conseguiu respirar.

- Reconhece esse lugar? - Eles disseram, saboreando cada palavra.
- Eu, eu... quem é vo... - antes que pudesse terminar a frase sentiu o cabo apertar contra seu pescoço. Não podia respirar.
- Nós sabemos o que você fez. De novo e de novo e de novo. Mas nunca mais. - e eles aliviaram o cabo um pouco, o suficiente para deixá-lo respirar. Eles estavam em controle. E eles garantiram que ele soubesse disso.
- Argh.. Não sei do que estã... - E novamente ficou sem poder respirar. Eles se deliciavam com aquela sensação.
- Nós sabemos. E você sabe também. - Eles respiraram, o ar nunca parecia tão fresco como nesses momentos - vamos começar?

Eles entraram no carro. Estava feito e era hora de se despedirem. Deixou o demônio desvanecer-se nas trevas de sua alma. Ligou o carro. Sacrificou seu poderes para ser humano novamente, por um tempo. Acelerou. Por um tempo apenas, pois eles se veriam de novo e de novo, num ciclo sem fim.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Necessitamos de algum ordenado para sobreviver. Necessitamos ganhar mais para consumir mais. Alguém precisa de dinheiro para comprar um carro e, depois, de ainda mais dinheiro para comprar outro carro. Alguém precisa de dinheiro para comprar um livro e, depois, de ainda mais dinheiro para comprar outros livros, mesmo que não os leia. A escravidão não está abolida, foi interiorizada: o desenvolvimento histórico da propriedade atingiu um ponto em que os seres humanos tornaram-se propriedade dos produtos que podem e/ou desejam consumir.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Rubens e eu 3

"rubens, preciso de dinheiro". não foi só por isso, claro, mas o rubens conseguiu pra mim um cargo de confiança no gabinete do filhodaputa que atualmente é senador. conseguiu não. negociou. depois de um certo tempo de iniciado o plano pude ver o rubens se enfiando cada vez mais na vida do filhodaputa. digo na vida porque sei que eles haviam se tornado amigos. o rubens era foda, mas um cargo de confiança desse é do tipo que não se dá nem pra mãe em troca de carne na sexta-feira santa. não sei o que o rubens teve que fazer em troca. provavelmente algo que só contibuiria com o nosso plano. algumas notinhas aparentemente desinteressadas promovendo o filhodaputa no maior jornal do país, suspeito. como disse, o emprego no gabinete não era só por causa do dinheiro. já prevíamos desde o começo que eu precisaria aproximar-me mais do trabalho do filhodaputa. era preciso controlar de perto suas contas e finanças, porque seria isso que o pegaria no fim, se tudo desse certo.

************

bem, resolvido meu problema financeiro, estava na hora de causar problemas financeiros para o filhodaputa. mas desses problemas que ficam escondidos até o momento certo. eu não podia simplesmente forjar números. porque isso seria descoberto com a menor investigação. fiquei trabalhando cerca de um ano e meio só ganhando confiança e liderança no gabinete. ao fim desse tempo consegui me tornar assistente geral. foi o timing perfeito. junto com minha promoção iniciaram-se as campanhas para as eleições municipais e o filhodaputa era uma figurinha que todo candidato do partido queria estampar na testa. eu como cabeça do gabinete em brasília pude perceber algo antes do rubens: nossa campanha de promoção do filhodaputa estava sendo um sucesso. me encontrei com o rubens no rio de janeiro na semana logo após o resultado das eleições municipais e pudemos constatar atônitos. éramos os melhores relações públicas que alguém podia encontrar. foi quando decidimos rebatizar o filhodaputa vendo que todos os candidatos que ele apoiou foram muito bem sucedidos. o filhodaputa era o responsável por várias prefeituras importantes no nome de seu partido. "filhodaputa é o caralho do teu pai fodendo tua mãe. o cara agora chama pedrafilosofal. tudo que ele toca vira ouro", me disse o rubens entre um café e várias risadas. ainda naquela tarde o telefone do rubens tocou. "oi. isso mesmo! foi lindo! pode ver que estamos muito bem. tá fazendo um bom trabalho. não, não, você principalmente. amanhã estarei em são paulo e nos vemos. até". olhei pro rubens, que havia ganhado uns quilos e o hábito de fumar charuto. "rubens, pra quem você tá contando do nosso plano?". não sei porque, talvez o "foi lindo!", mas achei que aquela conversa no telefone era sobre o sucesso indireto do pedrafilosofal nestas eleições. o rubens disse que não. que estava falando com uma jornalista e confessou sorridente que estava querendo comê-la. o rubens é foda.

domingo, 7 de novembro de 2010

Rubens e eu 2

"vamos aproveitar esse filhodaputa", ele me disse. eu tinha acabado de apagar um texto inteiro com um só toque do teclado. não, nunca havia feito isso. sim, vou começar a fazer coisas que nunca havia feito. era necessário. estava me embrenhando num campo totalmente novo. eu ia trabalhar num cargo de assessoria do partido do tal filhodaputa. começava amanhã. "ele tá chocando essa candidatura como se fosse um ovo de ouro. vai ser lindo". o rubens tinha o péssimo hábito de falar enquanto eu tentava me concentrar. mas seus comentários me animavam. quando o nervosismo de quem vai a um novo emprego pela primeira vez começava a me atingir ele disse: "será que essa merda de lei não cai até lá?". não tinha pensado nisso. olhei para o rubens e percebi um olhar de apreensão que com certeza também estampava minha cara. a verdade é que estava me acostumando a esse sentimento. o plano já não parecia tão genial agora. encontrávamos vários furos nos quais precisaríamos passar uma cuidadosa agulha com uma linha forte. "você vai precisar de um cargo mais alto. de alcance nacional", eu disse. a essa altura o rubens já sabia disso também. ele estava se candidatando a um cargo de redator chefe, e não havia me dito nada. guardou a surpresa pra dois dias depois, quando obteve a resposta final. sempre que surgiam problemas discutíamos e debatíamos um bom tempo. para muitos não víamos outra forma de lidar a não ser acrescentar um item à nossa "lista marrom". o motivo da cor eu não sei. o rubens escolheu. escrevíamos em poucas e simples palavras o tipo de noção, discurso, idéia, ideal, ideologia, boato e fofoca que queríamos ver circulando pelas cabeças. queríamos inscrever algumas coisas no imaginário coletivo durante esse tempo. indiretamente e subjetivamente, iríamos promover a imagem do filhodaputa, denegrir seus adversários, trabalhar o cenário político nacional conforme nosso plano. eu tinha pra mim que essa era a parte fraca do plano: toda sua estrutura. mas mesmo assim era a parte mais interessante. o próximo passo era iniciar a execução do plano. nos despedimos naquela noite com a certeza de que no outro dia começávamos uma empresa de quatro anso sem descanso.

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"qual é o prato de hoje? ótimo. me traz uma cerveja pra acompanhar. não? e a sua mãe? onde tá? ok. passo aí depois. não posso. tenho um filhodap... um camarada pra ajudar. to com ela aqui. agora sou militante. depois te conto. beijo". assim o rubens ia foder isso.

Domingo à noite.

Sentou-se para ler. Só lhe interessava o primeiro capítulo do livro, mas ressolveu começar a leitura pelo prefácio. Terminou-o. Chegou a conclusão que foi inútil, leu desatentamente e não aprendeu nada. Mas o primeiro capítulo seria diferente, abriu o caderno e se preparou para fichá-lo. Começou a lê-lo e escrever suas anotações. Se lembrou de Nietzsche: a cada frase dizia um não e contestava o autor do texto.
Decidiu que precisava de algo para influenciar seus pensamentos e encheu meio copo de Whisky com gelo. Levou ao nariz e deu uma inspirada. A quanto tempo não sentia esse maravilhoso cheiro. Cheirou de novo e de novo. Maravilhoso aroma da existência.
O fato de que esse domingo tenha sido, apesar de tudo, um bom dia, me deixa mais perplexo que o Walter Benjamin após ter sido ressuscitado e levado ao Shopping Parque Dom Pedro para um Big Mac seguido de uma seção de Avatar 3D no Kinoplex.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Dia de Halloween

Outro dia foi dia de Halloween. Então aconteceu que certas crianças do bloco vizinho bateram na porta com suas fantasias caras compradas em lojinhas para crianças burguesas dos dias de hoje. Aí disseram "Travessuras ou Gostosuras?", ou algo assim. Foi-lhes dito "Não tem doce, não!!", ao que baixaram suas cabecinhas de vampiros, zumbizinhos, mulas-sem-cabeça de loja de fantasia e foram embora.
No meu tempo, um "Não tem doce" atravessado seria motivo para quebrar a janela do indivíduo egoísta que com certeza tinha Gostosuras e não as quis dividir; tocar fogo no jardim dele...

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Rojoada

Nessas eleições descorbri que não tem nenhuma câmera pra segurar a urna eletrônica. Isso é muito bom, primeiro porque permite a secretabilidade do voto. No entanto, não impede a "festa da democracia", porque, em segundo lugar, a descoberta da ausência de câmeras permitiu a descoberta da existência da possibilidade da colocação de um certo ROJÃO, bem debaixo da urna eletrônica.
Na próxima eleição acontecerá, portanto, "festa da democracia" debaixo da urna da minha seção eleitoral - desde que a classe revolucionária dos mesários cumpra seu papel, que é o de estarem lá todos os elementos que a representam, trampando, para morrerem de rojoada como, bonitamente, merecem. Evidentemente que este ato deverá trazer o questionamento ético a respeito da perda da mão do eleitor seguinte. Mas, pensando bem, o questionamento dura apenas até o momento em que o reacíssimo eleitor fizer-me o favor de apertar 45, apenas 1 segundo antes de que exploda-lhe a mão direita.
Este ato não será revolucionário nem nada. Este ato será ato de travessura de dia de haloween, o qual cai no mesmo dia do segundo turno da eleição, todos os anos! E o halloween anda totalmente bunda mole e vendido ao capitalismo, hoje em dia...

Rubens e eu

"odeio quando a bosta borra a louça do vaso de forma que a descarga não consegue remover aquela mancha que amarela a água recém subida da garganta de porcelana". este pensamento, floreado e poético por influência de uma tarde toda de conversa com o Rubens, foi o único daquela noite que escapou ao padrão temático que minha mente insistia em reproduzir. lavando a mão, logo depois de fechar o vaso, eu já pensava no que falara a tarde toda com ele. pra começar, não sei qual de nós dois teve a idéia primeiro: creio que a construimos juntos. o fato é que ele a aceitou como factível mais rápido que eu. "temos quatro anos. quatro anos" foi a frase que me convenceu quando dita pela décima quinta vez, creio. entre todas as discussões sobre se era possível nosso plano, surgiam questões de ordem ética que a nossa moral política nos impunha: "os fins justificam os meios?" me perguntou Rubens, ao que respondi com um sonoro "não", logo acompanhado por um "exato!" não menos enfático. da tarde regada a café, chá e bolachas, tudo o que entendi é que iríamos fazer aquilo. iríamos, depois de quatro anos de duro trabalho, físico e mental, burocrático e discursivo, sabotar pelas vias legais as eleições presidenciais brasileiras. mais de cem milhões de eleitores assitiriam, com olhos incrédulos, à falência de seu grande e caro instrumento democrático.

imagem

Entrou por não sei onde e encontrou bom pouso no macio azul-desbotado. Não perscrutava, parecia ter superado a necessidade de reconhecer novos territórios, também não temia o mistério do desconhecido. Assim ficou, quieto, leves movimentos, quase imperceptíveis, a contrastar com a aura estática do local. Sentia-se bem, em casa, nova casa, e pensava em como poderia agora encontrar um bom canto, um buraco que fosse, e construir todo um mundo novo, muitas vidas ainda no porvir, alegria, alegria.
De repente, tocam no seu traseiro, um objeto branco interpõe-se no macio azul-desbotado, gentil mas mesmo assim com intenções equivocadas. O equívoco percebido do ponto de vista de Oswaldo, naturalmente. Ele afundou por instantes na incompreensão e quando deu por si o macio azul-desbotado ficou longe, arremessado foi, junto com o objeto branco, para um novo lugar. Fazer o quê?, deveria seguir outro rumo, incerto, com um possível pisão a esperá-lo quando ele menos esperasse. Mas acostumou-se, em sua breve existência, com a abolição da necessidade da espera, do destino, da sorte, inclusive da espera do inesperado, nada disso ocupava seus passos, inabalável certeza de que na sucessão de infortúnios ainda haveria algo de fortuito logo ali.
Surgiu sorrateiro, foi expulso sem julgamento, a procurar outro lugar, com ou sem macio azul-desbotado.

Oswaldo, o Fugaz

terça-feira, 2 de novembro de 2010

[sem nome]

a.
Em um mundo onde as distâncias foram encurtadas, as relações foram intensificadas e aumentadas em número. As relações se tornaram mais importantes.
Como eram muitas, foram simplificando-se até se tornarem instrumentais.
Em um mundo onde as relações são importantes e simplificadas, a imagem se torna ferramenta essencial para articular essas relações.
A relação simplificada em instrumento do capital e as imagens enquanto fundamentais na existência dessas relações transformam o mundo em um espetáculo vazio.
Em um mundo espetacular, no qual as relações são vazias, essas tornam-se produtos.

b.
O ser humano médio, a família média, a vida média contemporanea têm suas bases no consumo.
O consumo é o sustentáculo da vida contemporânea.


°

c.
Ao olhar para o seu semelhante desafortunado, o homem médio, a família média, a vida média contemporânea busca não se sentir culpado.
Ao eximir-se de culpa no que diz respeito as desigualdades, redime a humanidade e simplifica as condições de vida.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

murilo rubião

"O seu tempo está próximo a vir, e os seus dias não se alongarão.
(Isaías, XIII, 22)

1 No terceiro dia em que dormia no pequeno apartamento de um edifício recém-construído, ouviu os primeiros ruídos. De normal, tinha o sono pesado e mesmo depois de despertar levava tempo para se integrar no novo dia, confundindo os restos de sonho com fragmentos da realidade. Por isso não deu de imediato importância à vibração de vidros, atribuindo-a a um pesadelo. A escuridão do aposento contribuía para fortalecer essa frágil certeza. O barulho era intenso. Vinha dos pavimentos superiores e assemelhava-se aos produzidos pelas raspadeiras de assoalho. Acendeu a luz e consultou o relógio: três horas. Achou estranho. As normas do condomínio não permitiam trabalho dessa natureza em plena madrugada. Mas a máquina prosseguia na impiedosa tarefa, os sons se avolumando, e crescendo a irritação de Gérion contra a companhia imobiliária que lhe garantira ser excelente a administração do prédio. De repente emudeceram os ruídos.
Pegara novamente no sono e sonhou que estava sendo serrado na altura do tórax. Acordou em pânico: uma poderosa serra exercitava os seus dentes nos andares de cima, cortando material de grande resistência, que se estilhaçava ao desintegrar-se.
Ouvia, a espaços, explosões secas, a movimentação de uma nervosa britadeira, o martelar compassado de um pilão bate-estaca. Estariam construindo ou destruindo?
Do temor à curiosidade, hesitou entre verificar o que estava acontecendo ou juntar os objetos de maior valor e dar o fora antes do desabamento final. Preferiu correr o risco a voltar para sua casa, que abandonara, às pressas, por motivos de ordem familiar. Vestiu-se, olhou a rua, através da vidraça tremente, na manhã ensolarada, pensando se ainda veria outras.
Mal abrira a porta, chegou-lhe ao ouvido o matraquear de várias brocas e pouco depois estalos de cabos de aço se rompendo, o elevador despencando aos trambolhões pelo poço até arrebentar lá embaixo com uma violência que fez tremer o prédio inteiro.
Recuou apavorado, trancando-se no apartamento, o coração a bater desordenadamente. -- É o fim, pensou. -- Entretanto, o silêncio quase que se recompôs, ouvindo-se ao longe apenas estalidos intermitentes, o rascar irritante de metais e concreto.
Pela tarde, a calma retornou ao edifício, encorajando Gérion a ir ao terraço para averiguar a extensão dos estragos. Encontrou-se a céu aberto. Quatro pavimentos haviam desaparecido, como se cortados meticulosamente, limadas as pontas dos vergalhões, serradas as vigas, trituradas as lages. Tudo reduzido a fino pó amontoado nos cantos.
Não via rastros das máquinas. Talvez já estivessem distantes, transferidas a outra construção, concluiu aliviado.
Descia tranquilo as escadas, a assoviar uma música em voga, quando sofreu o impacto da decepção: dos andares inferiores lhe chegava toda a gama de ruídos que ouvira no decorrer do dia.

2 Ligou para a portaria. Tinha pouca esperança de receber esclarecimentos satisfatórios sobre o que estava ocorrendo. O próprio síndico atendeu-o:
-- Obras de rotina. Pedimos-lhe desculpas, principalmente sendo o senhor nosso único inquilino. Até agora, é claro.
-- Que raio de rotina é essa de arrasar o prédio todo?
-- Dentro de três dias estará tudo acabado -- disse, desligando o aparelho.
-- Tudo acabado. Bolas. -- Encaminhou-se à minúscula cozinha, boa parte dela tomada por latas vazias. Preparou sem entusiasmo o jantar, enfarado de conservas.
Sobreviveria às latas? -- Olhava melancólico o estoque de alimentos, feito para durar uma semana.
O telefone tocou. Largou o prato, intrigado com a chamada. Ninguém sabia do seu novo endereço. Inscrevera-se na Companhia Telefônica e alugara o apartamento com nome suposto. Um engano, certamente.
Era a mulher, a lhe aumentar o desânimo:
-- Como me descobriu? -- Ouviu uma risadinha do outro lado da linha. (A gorda devia estar comendo bombons. Tinha sempre alguns ao alcance das mãos.)
-- Por que nos abandonou, Gérion? Venha para casa. Você não viverá sem o meu dinheiro. Quem lhe arranjará emprego? (A essa altura Margarerbe já estaria lambendo os dedos lambuzados de chocolate ou limpando-os no roupão estampado de vermelho, sua cor predileta. A porca.)
-- Vá para o diabo. Você, seu dinheiro, sua gordura.

3 Desligara-se momentaneamente dos ruídos, imerso na desesperança.
Buscou no bolso um cigarro e verificou com desagrado que tinha poucos. Esquecera de fazer maior provisão de maços. Mandou o nome da mãe.
A mão pousada no fone, colocado no gancho, Gérion fez uma careta ao ouvir de novo o toque da campainha.
-- Papai?
Abriu-se num sorriso triste.:
-- Filhinha.
-- Você bem poderia voltar, ler para mim aquele livro do cavalo verde.
A parte decorada terminara e Seateia começava a gaguejar:
-- Pai... A gente gostaria que viesse, mas sei que você não quer. Não venha, se aí é melhor...
A ligação foi interrompida bruscamente. De início suspeitara e logo se convenceu de que a filha fora obrigada a lhe telefonar, numa tentativa de explorá-lo emocionalmente. Àquela hora estaria apanhando por não ter obedecido à risca as instruções da mãe.
Nauseado, lamentava o fracasso da fuga. Tornaria a partilhar do mesmo leito com a esposa, espremido, o corpo dela a ocupar dois terços da cama. O ronco, os flatos.
Mas não poderia deixar que fosse transferido a Seateia o ódio que Margarerbe lhe dedicava. Recorreria a todas as formas de tortura para vingar-se dele, através da filha.

4 Os ruídos tinham perdido a força inicial. Diminuíram, cessaram por completo.

5 Gérion descia a escadaria indeciso quanto à necessidade do sacrifício.
Oito andares abaixo, a escada terminou abruptamente. Um pé solto no espaço, retrocedeu transido de medo, caindo para trás. Transpirava, as pernas tremiam.
Não conseguia levantar-se, pregado ao degrau.
Foi demorada a recuperação. Passada a vertigem, viu embaixo o terreno limpo, nem parecendo ter abrigado antes uma construção. Nenhum sinal de estacas, pedaços de ferro, tijolos, apenas o pó fino amontoado nos cantos do lote.
Voltou ao apartamento ainda sob o abalo do susto. Deixou-se cair no sofá. Impedido de regressar a casa, experimentou o gosto da plena solidão. Sabia do seu egoísmo, omitindo-se dos problemas futuros da filha. Talvez a estimasse pela obrigação natural que têm os pais de amar os filhos.
Gostara de alguém? -- Desviou o curso do pensamento, fórmula cômoda de escapar à vigilância da consciência.
Aguardava paciente nova chamada da mulher e, ao atendê-la, ia nos seus olhos um sádico prazer. Há longo tempo vinha aguardando essa oportunidade, para revidar duro as humilhações acumuladas e vingar-se da permanente submissão a que era constrangido pelos caprichos de Margarerbe, a lhe chamar, a toda hora e na presença dos criados, de parasita, incapaz.
Escolhera bem os adjetivos. Não chegou a usá-los: uma corrente luminosa destruiu o fio telefônico. No ar pairou durante segundos uma poeira colorida. Fechava-se o bloqueio.

6 Depois de algumas horas de absoluto silêncio, ela volvia: ruidosa, mansamente, surda, suave, estridente, monocórdia, dissonante, polifônica, ritmadamente, melodiosa, quase música. Embalou-se numa valsa dançada há vários anos. Sons ásperos espantaram a imagem vinda da adolescência, logo sobreposta pela de Margarerbe, que ele mesmo espantou.
Acordou tarde da noite com um grito terrível a ressoar pelos corredores do prédio. Imobilizou-se na cama, em agônica espera: emitiria a máquina vozes humanas? -- Preferiu acreditar que sonhara, pois de real só ouvia o barulho monótono de uma escavadeira a cumprir taredas em pavimentos bem próximos ao seu.
Tranquilizado, analisava as ocorrências dos dias anteriores, concluindo que pelo menos os ruídos vinham espaçados e não lhe feriam os nervos com o serrar de ferros e madeira. Caprichosos e irregulares, eles mudavam rapidamente de andar, desnorteando Gérion quanto aos objetivos da máquina. -- Por que uma e não várias, a exercer funções diversas e autônomas, como inicialmente acreditou? -- A crença na sua unicidade entranhara-se nele sem aparente explicação, porém irredutível. Sim, única e múltipla na sua ação.

7 Os ruídos se avizinhavam. Adquiriam brandura e constância, fazendo-o acreditar que em breve encheriam o apartamento.
Abeirava-se o momento crucial e custava-lhe conter o impulso de ir ao encontro da máquina, que perdera muito do antigo vigor ou realizava seu trabalho com propositada morosidade, aprimorando a obra, para fruir aos poucos os instantes finais da destruição.
A par do desejo de enfrentá-la, descobrir os segredos que a tornavam tão poderosa, tinha medo do encontro. Enredava-se, entretanto, em seu fascínio, apurando o ouvido para captar os sons que àquela hora se agrupavam em escala cromática no corredor, enquanto na sala penetravam os primeiros focos de luz.
Não resistindo à expectativa, abriu a porta. Houve uma súbita ruptura na escalada dos ruídos e escutou ainda o eco dos estalidos a desaparecerem céleres pela escada. Nos cantos da parede começava a acumular-se um pó cinzento e fino.
Repetiu a experiência, mas a máquina persistia em se esconder, não sabendo ele se por simples pudor ou se porque ainda era cedo para mostrar-se, desnudando seu mistério.
No ir e vir da destruidora, as suas constantes fugas redobravam a curiosidade de Gérion, que não suportava a espera, a temer que ela tardasse em aniquilá-lo ou jamais o destruísse.
Pelas frinchas continuavam a entrar luzes coloridas, formando-se e desfazendo no ar um contínuo arco-íris: teria tempo de contemplá-la na plenitude de suas cores?
Cerrou a porta com a chave."

"O Bloqueio", de Murilo Rubião.
Ia postar essa porcaria aqui de baixo no facebook, mas não sei se devo simplesmente comprar briga com mais da metade das pessoas de lá.. Na verdade escrevi pra provocar elas mesmo, de uma maneira que espero que elas entendam que estou querendo atacá-las.

"Vou ficar um tempo sem entrar no twitter e facebook. Tá me dando asco ver a classe média paulista inconformada com a vitória da Dilma e mostrando seu lado preconceituoso mais cretino possível.
E como faço parte dessa mesma classe média, meus contatos por aqui estão seguindo esse movimento da internet.
Isso só mostra para aqueles que falam que no brasil não existe mais preconceito, que na verdade existe sim mas que fica escondido no resto do tempo e só aparece em época de eleição em que as pessoas são obrigadas a discutir política.. Que o discurso que normalmente só se apresenta como "locomotiva do país", "mais estudados e o resto ignorante", a velha balela de civilização e barbárie é acentuado a um nível crítico: http://xenofobianao.tumblr.com/
Ainda bem que o Serra não ganhou, para mostrar para nós como o Brasil é ainda um país com muitas diferenças, que só o "Mercado" não resolve esses problemas e que devemos exercer a crítica do que estamos a ver acontecer, que as diferenças econômicas, sociais, ou seja, de classe, ainda são muito discrepantes nesse país.