domingo, 24 de fevereiro de 2013

Um fio de baba escorria pelo canto da boca, não era o primeiro. No chão, lentamente absorvido pelo taco, havia um círculo translúcido repleto de pequenas bolhas, fora dele, alguns respingos. Pela janela, via os pássaros procurarem alguma árvore perdida entre o concreto. Hora mais, hora menos, anoiteceria. Olhou para o chão, abaixou-se, esfregou a mão no taco, em menos de cinco minutos a pouca umidade restante não deixaria marcas, como esperado.

O sol reaparece, os pássaros cantam e voam, a saliva na boca não seca, a vida continuou.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Os idiotas, 1998 (direção de Lars von Trier)



O filme discute o problema da felicidade. Da felicidade que só é possível alcançar rompendo os limites dos padrões de respeitabildade instituídos pelas relações possíveis de se estabelecer no âmbito da classe média. Encontrar o idiota interior é a proposta de Stoffer para romper com a cultura pequeno burguesa.

A construção do personagem de Karen reforça o argumento do filme a partir do momento em que ela é apresentada. Os idiotas estão em paranoia num restaurante. É importante a ênfase no desconforto das pessoas, das famílias nas mesas do restaurante, diante da atitude dos idiotas. Este desconforto aprece na expressão dessas pessoas, expressão típica do desprezo que não pode ser demonstrado abertamente, um meio sorriso que reveste o desespero diante da anormalidade. Aflora nessa expressão a atitude contida de pessoas que desejam profundamente fugir, matar, mas não são capazes de romper com a própria auto-exigência em relação a uma normalidade constante. Os idiotas se contorcem, andam por entre as mesas, pegam coisas das mesas alheias; as pessoas normais permanecem sentadas, paradas, o olhar oscila entre o idiota, a mesa, as demais pessoas normais.

Karen demonstra, imediatamente, consideração verdadeira pelos idiotas. Sua atitude se reforça em relação às atitudes das demais pessoas normais presentes. Um dos idiotas não solta a mão de Karen, que permanece com um sorriso triste, o olhar diretamente para o idiota, sem nenhum constrangimento.

Já na casa dos idiotas, Karen descobre que não são idiotas de verdade, mas, aos poucos aceita a proposta. A censura de Karen a Stoffer por fazerem piada com os retardados de verdade, se dilui na apresentação da ideia da felicidade pura, ou simplesmente da pureza, possível exclusivamente na ingenuidade de um idiota. Essa mudança se apresenta quando Karen sorri ao ver os idiotas felizes rolando e se abraçando o chão. Sua relutância inicial marca o processo no qual se evidencia sua adaptação ao grupo dos idiotas a partir de sua tristeza, do enorme vazio de sua existência que pode ser preenchido pela pureza de estar com os idiotas e pela libertação possibilitada pela paranoia. Stoffer disse que os idiotas são os homens do futuro.

Os contatos com as exigências externas do mundo real, um pai preocupado com a saúde da filha, em outro caso esposa e filhos, em outro uma importante carreira artística acadêmica, estes contatos inevitáveis criam a tensão, a decepção ao indicar que a felicidade pura da comunidade dos idiotas pode acabar, que ela é intolerável, na verdade, que o mundo real, a vida de gente normal tem o poder irresistível de diluí-la, reincorporar à normalidade os idiotas. A decepção e a angústia aumentam pela evidente infelicidade de todos os que abandonam os idiotas. A vida normal, o sentido de obrigação os faz deixar o que gostam, a deixar o sentido encontrado na paranoia, por aquilo que já não se pode mais suportar, a vida de aparências da classe média. Isso acontece como se não houvesse escolha. A angústia é sentida a partir do desapontamento de Stoffer, inconformado com o absurdo, a superficialidade das pessoas, deixando a vida de idiota, tratando-a como uma experiência que aconteceu e simplesmente, necessariamente, deve encerrar-se. É importante para a construção desse sentido a discussão entre Stoffer e Henrik, o artista acadêmico. Os idiotas decidem sair da casa para que cada um, individualmente, entrasse em paranoia nos lugares por eles ocupados na vida normal. Henrik não conseguiu. Era uma aula na universidade e não é banal que ele estivesse discutindo justamente a burguesia na obra de Matisse. Assistiam à aula várias mulheres burguesas de meia idade. Stoffer o acusa de ter usado a paranoia como experiência, apenas para ser um artista melhor sendo porra louca. Henrik não consegue viver como idiota, não entende a proposta como ruptura real.

É produzido um incômodo na construção do personagem de Stoffer. Ele é o idealista da vida como idiota, cria-se por isso uma simpatia em relação a seu entusiasmo anti-burguês, sua atitude prática em relação à vida. No entanto, justamente este ímpeto de Stoffer o torna intolerante e impositivo em certos pontos. Intransigente sobre o sentido de ser idiota. Nesse ponto a simpatia que ele desperta mistura-se à rejeição que desperta um tipo que faz o papel de dono da verdade. De todo modo, são esses elementos conflituosos que tornam para Stoffer ainda mais dolorosa a dificuldade de viver como idiota na vida real.
O papel de Karen reforça o desespero de ver acabada a possibilidade de viver como idiota. Ela perdeu tudo com o fim da comunidade dos idiotas. Confessa que encontrou neles as pessoas que mais gostou em toda sua vida. Neste momento se revela o fato da morte do filho de Karen, ainda bebê. A atitude da família de Karen, em contraste com a felicidade construída em torno da vida de idiota, reforça, por fim a frieza e o despropósito da vida normal das aparências. Todos sentam em silêncio em torno da mesa para comer bolo com chá. Todos estão desapontados porque Karen desapareceu por duas semanas e não foi ao funeral do filho. Acusam-na de não sentir a morte do filho. Em meio à tensão absoluta da cena se produz mais um elemento do desespero de Karen por uma vida verdadeira, quando ela consegue realizar a paranoia diante de sua família.