domingo, 30 de maio de 2010

[sem nome]

Quem tem medo quer amor,
Quem tem fome quer amor,
Quem tem frio quer amor,
Quem tem pinto saco boca bunda cu buceta quer amor.

Virgem surja, ah! surja suja
Corpo surja, oh! mente surja imunda
Em cada berço que esse esperma espesso inunda,
Em cada fosso que esse gozo grosso suja.

Acumulando raiva e rancor.

Saia de mim vomitado
Expelido, exorcizado

Tudo que está estagnado
Saia de mim como
escarro
espirropusporrasarro
sanguelágrimacatarro.
Saia de mim a verdade.

Não é por não falar em felicidade que eu não goste de felicidade. Não é que eu não goste de felicidade, é por não falar em felicidade. E é por falar infelicidade que eu não gosto de falar em felicidade.

Não é que eu passei do limite
Isso pra mim é normal
Não é que eu me sinto bem
Eu posso fazer igual

Não é que eu vou fazer igual
Eu vou fazer pior.


Eu sei que estou fedendo,
eu sei que estou apodrecendo
.


Se eu tivesse sua cara, se eu tivesse seu gosto.
Se eu tivesse sua cor, se eu tivesse seu rosto.
Se eu tivesse seus olhos eu seria famoso.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

diálogo monólogo

M.F. estava tranqüilo com seus 27 anos de idade. Aos 23 anos pensava em mudar o mundo a partir da educação, foi professor por algum tempo. Aos 25 desistiu de mudanças e trabalhou mais um ano apenas por inércia. Há seis meses deliberadamente sem emprego, utilizando as economias guardadas com ajuda de ascetismo e descrença no consumo, sobrevive por aí, conversando entre paredes com objetos inanimados, animados, vez ou outra algum ser vivo, até mesmo da sua espécie, mesmo sem vontade.

[Casa pequena de periferia. Silêncio no interior. Alguns sons vindos da rua, principalmente buzinas distantes. M.F. sentado em um sofá. Em sua frente, outro sofá. Entre os sofás uma pequena mesa.]

[M.F.]: O dia amanheceu bonito hoje... Talvez poderíamos dar uma volta.

[...]: Clonazepam.

[M.F.]: Não. Melhor continuar sentado mais um tempo. Esperar anoitecer.

[...]: Chumbinho.

[M.F.]: Não espero mais. Nada.

[Alguns minutos de silêncio]

[M.F.]: Nada. Melhor continuar assim. Apenas conversar com minha respiração e deixar você por conta de sua sorte.

[...]: Pedra 90.

[M.F. levanta. Olha mais uma vez para o espelho do banheiro que estava no sofá em sua frente, despede-se. Dois passos depois tropeça no sono e cai na morte.]


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terça-feira, 18 de maio de 2010

Despercebido

João Carlos preferia passar despercebido. Aos 23 anos, ao sair da faculdade, começou a trabalhar em um escritório de contabilidade de uma empresa média, ganhando um salário médio.
No escritório, escolheu um cantinho no fundo da sala, onde podia trabalhar sem fazer parte das conversas e piadinhas sem sentido dos colegas. O fato das conversas e piadinhas não terem sentido, não levava João Carlos a pensar que os colegas fossem ruins. Mas também não os achava bons. João Carlos não achava nada; nada sobre coisa alguma.
No fim do expediente:
- Ow, Carlitos! Vamo pro buteco!
- Não. Obrigado.
-Ah! Vamo ae, brother!
-...tenho que chegar cedo em casa...
Na verdade, João Carlos não precisava chegar cedo em casa, a não ser para esquentar o macarrão do dia anterior e assistir mecanicamente ao Jornal Nacional. Ainda assim, essa não era uma desculpa consciente, dada para evitar os colegas. João Carlos realmente acreditava que precisava chegar cedo em casa.
Uma ou duas vezes, João Carlos acabou aceitando o convite, mas não bebeu. Certamente o álcool faria com que ele se expusesse, falasse demais...E João Carlos preferia passar despercebido. Então, sairia do bar antes dos outros. Sem se despedir de todos, para não incomodar, mas tomando o cuidado de fazer ao menos um aceno aos que estivessem sentados mais próximos, para não passar por arrogante.
Então chegaria cedo em casa, a tempo de ver o jogo de futebol, ainda que nem mesmo o futebol lhe despertasse grandes paixões; apenas assistia. Teria feito tudo isso se, no caminho para casa, não tivesse passado ao seu lado um cachorro tão grande e tão veloz, justo no momento em que atravessava uma ponte. Caiu da ponte, e debaixo dela havia um córrego. João Carlos bateu a cabeça nas pedras pontudas, que racharam-lhe o crânio como se fosse isopor. Os miolos sujaram a água e alimentaram os peixes; João Carlos passou despercebido por mais seis horas e meia, até que crianças de rua acharam seu corpo ensopado e já livre de cérebro.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

coruja

Em um galho baixo de uma árvore, folhas verdes, musgo, casca seca, uma coruja. Pequena, seus olhos profundos, salientes, encaravam um ponto distante ou a mim, não sabia definir, era noite, enxergava pouco e, na verdade, contentava-me com isso. Movimentos sutis de sua cabeça fixavam ainda mais minha atenção nela. O vento noturno vagaroso balançava sua plumagem, mas ela permanecia impassível, com a decisão de ficar parada, decidida, decidida por algo que eu nunca saberei o que foi, é ou será. Meus tempos verbais, a história que eu criava, executava ou planejava para minha existência, eram inúteis naquele momento, um tanto mais para a coruja do que para mim, se é que podemos julgar a inutilidade de uma vida individual, das vidas de uma comunidade, de uma espécie, da razão.
Em uma placa de sinalização de trânsito, pare, letras pretas e círculo vermelho, uma coruja. Pequena, seus olhos profundos, salientes, encaravam um ponto distante ou a mim, não sabia definir, era noite, havia alguma iluminação, o suficiente para criar algum contraste entre áreas claras e escuras. Movimentos sutis de sua cabeça fixavam ainda mais minha atenção nela. Alguns raros automóveis ainda circulavam, motoristas voltando para casa depois de mais um dia de trabalho, motoristas saindo de casa para esquecer mais um dia de trabalho. Sentei no meio-fio por não sei quanto tempo e pensei em fumar, mesmo não sendo fumante e sem gostar de cigarros. Esperei, contudo, ela não esperava, ela sabia algo que eu não consegui imaginar naquele momento, merda, perdi a paciência e saí andando.
Em uma praça, pousada na grama recém aparada, contrastando com uma ou outra estátua de algum alguém já morto, uma coruja. Pequena, seus olhos profundos, salientes, encaravam um ponto distante ou a mim, não sabia definir, era noite, estava cansado e distanciava-me cada vez mais do caminho que pretendia seguir. Movimentos sutis de sua cabeça fixavam ainda mais minha atenção nela. Fui encarado. Passou-me um frio pela espinha, uma sensação de terror, um desespero sincero, minhas pernas criaram raízes, queria fugir, correr para o mais longe possível, impossível. No olhar da coruja pude ver algo como o meu reflexo, uma imagem aparentemente distorcida, todavia, compreensível, totalmente interpretável, maleável, manipulável, falseável, somente para mim naquele momento, para muitos outros, quando saíssem do conforto do sono. Ela estava viva, eu não.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Condição Humana

Joãozinho andava numa fase muito estranha. Sentia que, enfim, todas as suas idéias tinham acabado. No começo isso foi tão frustrante, que Joãozinho passou a roubar idéias dos outros sempre que podia. Para seu imenso pesar, entretanto, nem isso resolveu, pois sua criatividade, antes tão invejável, também tinha finalmente se esgotado toda. Isso quer dizer que nem usando as melhores idéias dos outros conseguia formular bons gracejos e trocadilhos. Então ficou na bad trip.
Joãozinho, desmotivado, começou a dormir demais, e sofria pelas manhãs, ao ser forçado a levantar da cama e enfrentar o mundo:
- Como, caralhos, posso enfrentar o mundo se minha cabeça está vazia de idéias?! - dizia, cuspindo espuma no espelho, enquanto escovava os dentes sem criatividade.
Como se vê, Joãozinho estava ficando meio nervosinho com sua situação. Ia pra escola dormindo no ônibus, depois na aula, na biblioteca, etc.:
- Putaquepariu! Só durmo!
Aí, encontrava seus colegas na cantina, e não conseguia deixar de ofendê-los:
- Oi Joãozinho!
- Oi Mariazinha! Tá gordinha hein!
E assim era a tarde toda. Entre uma dormida e outra na biblioteca, ia até a cantina tomar um café para espantar o sono e ofender os amigos.
Um dos amigos de Joãozinho era Joaquim. Muito inteligente e muito melancólico. Debatia a condição humana numa rodinha de pessoas inteligentes e melancólicas à qual se juntou por um tempo Joãozinho, bocejando. Joaquim estava dizendo que nas sociedades em que predomina o modo de produção capitalista industrializado, as pessoas são infelizes porque ao venderem sua força de trabalho ao detentor dos meios de produção, deixam de ter relação orgânica com o trabalho e com os produtos que dele derivam. Ao mesmo tempo, argumentava que a racionalidade burguesa moderna separa todas as esferas da vida em categorias autônomas, promovendo progressivamente nas pessoas a alienação de si mesmas.
- Capitalismo é o caralho! - respondeu Joãozinho - Seu problema é falta de buceta!
Os amigos começavam a desconfiar que algo de estranho estava levando Joãozinho a simplificar o entendimento da condição humana no capitalismo.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

[sem nome]

Suas pernas
finas e
compridas
parecem
duas lâminas
que
cortam,
recortam,
picotam

meu coração
.

sábado, 1 de maio de 2010

parágrafo

M.F. vivia tranquilamente em seu condomínio fechado até o dia em que o mesmo foi alvo de um arroubo de barbaridade perpetrado por meliantes sui generis (engravatados, sotaque afrancesado e máscaras do Faustão). Roubaram bens de M.F., encostaram o metal frio de uma arma em sua cabeça, na frente de K.F., 6 anos, e de H.F., sua esposa, 32 anos. Dois vigilantes foram mortos. M.F. pensou que ficaria catatônico, mas apenas mudou-se para um condomínio com mais câmeras e cercas elétricas, pagou terapeutas vários para mulher e filha, dois meses depois foi promovido em seu emprego, trocou de carro e, finalmente, pensava em ter mais um filho.

Quadrinhos: Tirinha boba

Variação: Realidade/Sonho - Estágio 1: Fuga

Abriu os olhos, estava deitado na cama. As trevas o cercavam. Não via nem ouvia nada. Mas sentia uma presença no seu quarto. O pavor começou a subir a cabeça e, antes que tivesse tempo de raciocinar qualquer coisa, estava com o coração disparado, pulou da cama e se dirigiu até a porta. Tentava desesperadamente abri-la, mas não conseguia, por mais que tentasse. O estado de pânico estava no seu apogeu quando despertou e percebeu porque falhava. Tateou o que tinha a sua frente e confirmou, estava em frente a janela do seu quarto.
Começou a se acalmar e, no lugar de pânico, um sentimento de confusão começava a preencher sua alma. Se sentou na cama. Levou a mão até o interruptor e acendeu a luz. Olhou em torno. Estava no seu quarto, sozinho. Olhou da porta para a janela e para a porta de novo. No seu sonho, ele estava num quarto igual o seu, mas espelhado, por isso a confusão. Ao pensar isso , entendeu o ocorrido. Tinha agido num estado do sonambulismo e acordado enquanto tentava fugir. Mas fugir do que? Fugir das trevas? Fugir da solidão?
Se levantou, foi até a janela e a abriu. Olhou a distância que o separava do chão e se perguntou: "O que teria ocorrido se, durante meu sonho, eu tivesse conseguido abri-la?".