quinta-feira, 30 de setembro de 2010

alcoolismo lúdico e razão etílica

Alcoolismo lúdico

O alcoolismo lúdico é uma prática consciente. É essencialmente uma ação no mundo, por isso uma prática: interação na maioria das vezes ativa com a realidade das coisas, dos homens, do inanimado, do artificial e do vivo, constantemente parte de algo que supera o isolamento. A possível passividade dessa prática, quando se atinge um estado de prostração momentânea, não lhe retira os méritos da ação, apenas abandona o sujeito ao bel prazer da ação de outrem. A consciência do alcoolismo lúdico é consequência da disposição de quem o pratica, que preza pela auto-observação de suas sinapses, constatando com rigor clínico apurado as alterações do Eu na medida em que fica alcoolizado. Lúdico, pois é um jogo consigo e com o mundo, uma práxis existencial realizada com gosto e esmero.

Razão etílica

Desenvolvida a partir do alcoolismo lúdico, a razão etílica fundamenta a ressubjetivação do ser e só é possível com a constância da existência enquanto jogo de embriaguez. Não a embriaguez do trabalho, da família e da fuga da morte. A embriaguez do pensamento turvo que se faz pleno, a utilização do vício de sociedades decadentes e prósperas para a elaboração, no plano individual, de alternativas, mesmo que fugazes, de repensar o estar-no-mundo. É limitada, pois dificilmente expandirá suas ideias para propostas de um mundo novo. Abraça o ridículo. Por fim, celebra com escárnio os movimentos dos seres no presente, suas projeções para o futuro e suas justificativas com o passado. Como último baluarte da sensatez, a razão etílica consuma a percepção da negatividade da existência no mundo atual, onde a vida só é divertida enquanto uma reiterada dissimulação de desastres.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Tradução Ousada: Dedicatória de Fausto

Antes de começar essa tarefa corajosa, devo dizer, meu alemão é uma bosta =P

Ihr naht euch wieder, schwankende Gestalten,
Die früh sich einst dem trüben Blick gezeigt.
Versuch' ich wohl, euch diesmal festzuhalten?
Fühl' ich mein Herz noch jenem Wahn geneigt?
Ihr drängt euch zu! nun gut, so mögt ihr walten,
Wie ihr aus Dunst und Nebel um mich steigt;
Mein Busen fühlt sich jugendlich erschüttert
Vom Zauberhauch, der euren Zug umwittert.

[Apromixam-se novamente, oscilantes figuras,
que outrora à visão turva se surgiam.
Tento eu, vocês desta vez segurar?
Sinto meu coração ainda a esta ilusão se inclinar?
Vocês se impelem! nesse bom momento, desejam prevaler,
como vocês da fumaça e da neblina em torno de mim aparecem,
Meu peito se sente jovemente trêmulo
da brisa mágica, que sua procissão carrega]


Ihr bringt mich euch die Bilder froher Tage,
Und manche liebe Schatten steigen auf;
Gleich einer alten, halbverklungnen Sage
Kommt erste Lieb' und Freundschaft mit herauf;
Der Schmerz wird neu, es wiederholt die Klage
Des Lebens labyrinthisch irren Lauf,
Und nennt die Guten, die, um schöne Stunden
Vom Glück getäuscht, vor mir himweggeschwunden.

[Vocês trazem para mim imagens de dias felizes,
E várias amadas sombras se erguem;
Idênticas aos velhos meio apagados mitos
Acompanham o primeiro amor e a amizade para cima;
As dores tornam-se novas, os repetidos lamentos
A labirintica errante caminhada da vida,
e chamem os bons, que, nas horas boas
Da sorte foram traídos, ante a mim levados.]

Sie hören nicht die folgende Gesänge,
Die Seelen, denen ich die ersten sang;
Zerstiben ist das freundliche Gedränge,
Verklungen, ach! der erste Widerklang.
Mein Lied ertönt der unbekannten Menge,
Ihr Beifall selbst macht meinem Herzen bang,
Und was sich sonst an meinem Lied erfreuet,
Wenn es noch lebt, irrt in der Welt zerstreuet.

[Elas não ouvem os próximos cantos,
As almas, aquelas para quem eu cantei os primeiros;
Afastado está o grupo amigo,
Apagados, ah! os primeiros ecos.
Minha canção soa para a desconhecida multidão,
Sua aclamação até faz meu coração tremer,
E o que, aliás, na minha canção se satisfaz,
Quando ainda vive, espalhada pelo mundo.]

Und mich ergreift ein längst entwöhntes Sehnen
Nach jenem stillen, ernsten Geisterreich,
Es schwebet nun in unbestimmten Tönen
Mein lispelnd Lied, der Äolsharfe gleich,
Ein Schauer fasst mich, Träne folgt den Tränen,
Das strenge Herz, es fühlt sich mild und weich;
Was ich besitze, seh' ich wie im Weiten,
Und was verschwand, wird mir zu Wirklichkeiten.

[E me captura um longo desacostumado desejo
Para aquele calmo primeiro reino de fantasmas,
Ele paira agora em indeterminados tons,
minha sibilada canção, idêntica a harpa eólia,
Um tremor me captura, lágrima após lágrimas,
O rigoroso coração, se sente ameno e macio;
Aquilo que possuo, vejo na distância,
e o que desapareceu, torna-se para mim tão real.]

Texto no original retirado de: Goethe, Johann Wolfgang von. Fausto, editora 34, Sp, 3 edição, 2007.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Tambor girava, girava, vazava os seis buracos com minha vista e observava um alvo longínquo e distinguível como um colega de ginásio transformado em fauno e acorrentado à vigas que se erguiam aos céus. Um piscar de olhos e, tambor fechado, estava novamente só, sentado numa cadeira em um quarto escurecido, com alguns relances de uma única luz que provinha de algum canto impossível de reconhecer, todavia próximo. Procurei, desorientado, pela maçaneta, pela porta, pela saída, por minutos, talvez horas. Corri pela rua vazia, nu e com o 38 firme na mão do braço direito estirado e teso apontado para frente, a espera de qualquer coisa na qual descarregar a mim mesmo na forma de seis projéteis justos: vi seis testas perfuradas e, com um sorriso triunfante e matreiro, pensei como poderia eu ser tão preciso na arte de desfazer os outros de suas tralhas que consideram vida.
Acordei, acendi a luz, esfrequei os olhos para ajudar no esquecimento do último sonho e olhei para os objetos dispostos na mesa. Abri o tambor, com paciência e felicidade sincera carreguei-o por completo. Encarei com o olho esquerdo o fundo do cano e não vi coisa alguma, ou antes, pressenti algo sem poder ver, os pêlos do braço eriçaram, uma ereção incontida manifestou-se, abri a boca e decidi-me por engolir uma bala e cuspi-la pelo crânio em um ângulo de 47º (em relação à parede), atirando para longe cérebro, sangue e ossos do chão asséptico da minha consciência.
Mais uma vez toca o despertador e mais uma vez desligo-o para mais uma vez cochilar e mais uma vez esquecer a potencialidade de morte do não-vivido.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Maldade .2

Marianinha era a mina mais gostosinha da classe. Entretanto ela queria matar-se de verdade.
Marianinha era realimente muito inteligente, o que é raro hoje em dia. Além disso, ela tinha muitos amigos, e isso não tem nada de raro.
Marianinha conversava com o mendigo imaginário da rua e dizia como seria o dia de sua morte:
- Preciso reparar meu cérebro, senhor mendigo! Com o cabo da colher pelo meu belo nariz.
- Larga mão de ser fitinha, mina! Essas imagens violentas são puro exagero estético que camuflam a falta de conteúdo de tudo que tu diz!
- Você é apenas um mendigo e não sabe porra que eu sou a mais inteligente da classe!
Marianinha deixava o mendigo imaginário da rua falando sozinho e ia para seu quarto ouvir sua banda preferida, Emerson, Lake and Palmer.
A família de Marianinha gostava verdadeiramente dela e tinha orgulho verdadeiro porque ela era a mais gostosinha da escola. Por essa razão é que Marianinha, apesar de tudo, frequentemente adiava os planos para sua pequena morte; porque o amor da mamãe era grande demais para, de uma hora para a outra, passar a ser dedicado simplesmente ao vazio.
Tudo isso não é de surpreender. Mas o amor da vovó acabou, certo dia, sendo meio-foda. "Vem aqui! deixa a vovó dar um abraço!" Depois disso, Marianinha percebeu que o cuidado de seus familiares não era razão suficiente para o impedimento de suas intenções sangrentas cerebrais, mas, ao contrário, era, na verdade, motivo mais que suficiente para botar pra fuder de uma vez.
Chegou então da casa da vovó, fechou-se em seu quarto, Emerson Lake and Palmer. Fez uma carreirinha de facas bem afiadas que roubara da cozinha enquanto a mamãe assistia Ana Maria Braga. Cheirou a carreirinha de facas e as facas esculpiram seu cérebro brilhante e bonitinho, até que ele tomasse a forma de um saco de lixo. O corpo de Marianinha tombou e esparramou-se imediatamente pelo tapete Hello Kitty com livros de Beckett.
O mendigo imaginário da rua, por acaso, estava parado no portão. Tomou um gole modesto de pinga, porque, afinal, tem todo o tempo do mundo para esvaziar a garrafa, e falou sozinho - porque os mendigos não precisam se justificar por falarem sozinhos - com desprezo:
- Mina fitinha! Carreirinha de faca nem existe! Nem é verossímil! Essa juventude sem criatividade, com mal gosto narrativo, acredita que basta unir elementos díspares em situações implausíveis para compor um quadro fantástico com alguma validade psicológica ...

baudelaire por galás

Abel et Caïn
[Abel e Caim]

I

Race d’Abel, dors, bois et mange;
Dieu te sourit complaisamment.
[Raça de Abel, frui, come e dorme,
Deus te sorri bondosamente.]

Race de Caïn, dans la fange
Rampe et meurs misérablement.
[Raça de Caim, no lodo informe
Roja-te e morre amargamente.]

Race d’Abel, ton sacrifice
Flatte le nez du Séraphin!
[Raça de Abel, teu sacrifício
Doce é ao nariz do Serafim!]

Race de Caïn, ton supplice
Aura-t-il jamais une fin?
[Raça de Caim, teu suplício
Quando afinal há de ter fim?]

Race d’Abel, vois tes semailles
Et ton bétail venir à bien;
[Raça de Abel, tuas sementes
E teus rebanhos férteis são;]

Race de Caïn, tes entrailles
Hurlent la faim comme un vieux chien.
[Raça de Caim, teus parcos dentes
Rangem de fome e privação!]

Race d’Abel, chauffe ton ventre
A ton foyer patriarchal;
[Raça de Abel, teu ventre aquece
Junto à lareira patriarcal;]

Race de Cain, dans ton antre
Tremble de froid, pauvre chacal!
[Raça de Caim, treme e padece
Em teu covil, pobre chacal!]

Race d’Abel, aime et pullule!
Ton or fait aussi des petits.
[Raça de Abel, goza e pulula!
Teu ouro é pródigo em rebentos;]

Race de Caïn, couer qui brûle,
Prends garde à ces grands appétits.
[Raça de Caim, refreia a gula,
Ó coração que arde em tormentos!]

Race d’Abel, tu croîs et broutes
Comme les punaises des bois!
[Raça de Abel, cresces e brotas
Como os insetos do arvoredo;]

Race de Caïn, sur les routes
Traîne ta famille aux abois.
[Raça de Caim, por ínvias rotas,
Arrasta os teus à infâmia e ao medo.]

II

Ah! race d’Abel, ta charogne
Engraissera le sol fumant!
[Raça de Abel, tua carcaça
Aduba o solo fumegante!]

Race de Caïn, ta besogne
N’est pas faite suffisamment;
[Raça de Caim, tua argamassa
Jamais foi sólida o bastante;]

Race d’Abel, voici ta honte:
Le fer est vaincu par l’épieu!
[Raça de Abel, eis teu fracasso:
Do ferro o chuço ganha a guerra!]

Race de Caïn, au ciel monte
Et sur la terre jette Dieu!
[Raça de Caim, sobe ao espaço
E Deus enfim deita por terra!]

Tradução para o português realizada por Ivan Junqueira.

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Diamanda Galás, Abel et Caïn, ao vivo (1997):
obs: o poema citado começa a ser interpretado a 1min e 46s.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

imagem

dadaísmo fortuito (redundância tout court pero no mucho)


- Van Gogh, por Artaud, por Arthur: http://reescritadetudo.blogspot.com/2010/09/para-o-homem-privado-interior-da.html
- Pedra 90: "Fermentado destilado de cana de açúcar e açúcar-de-cana. [...] Imitação proibida por lei".
- Miséria onipresente e (por isso) naturalizada. http://miseriahq.blogspot.com/
- A lâmina expande o fluxo sanguíneo e a chama cauteriza a circulação ao seu corpo originário.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

exercício trivial, adorno e ke$ha

A gratuidade aparente de elementos díspares dispostos em um mesmo espaço nada mais é do que a revelação (sagrada) da dialética da existência humana no presente, um diálogo entre mortos, enterrados em si próprios, apenas ressuscitados para consumir mercadorias, outros (tornados mercadorias), e o próprio Ser (finalmente fixado, fixado enquanto mercadoria).

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“Primeira medida precaucional do escritor: inspecionar em cada texto, em cada passagem, em cada parágrafo se o motivo central surge suficientemente claro. Quem quer expressar algo encontra-se tão impelido pelo motivo que se deixa levar sem sobre ele reflectir. ‘No pensamento’ está-se demasiado perto da intenção, e esquece-se de dizer o que se pretende dizer.
Nenhuma correcção é demasiado pequena ou fútil para não se dever realizar. Entre cem alterações, cada uma isoladamente poderá parecer pueril ou pedante; juntas podem determinar um novo nível do texto.
Nunca ser mesquinho com as riscaduras. A extensão é indiferente, e o receio de que o escrito não seja bastante, pueril. Por isso, nada ter por valioso pelo facto de estar aí, escrito sobre papel. Se muitas frases parecem variações da mesma ideia, amiúde significam apenas diferentes tentativas de plasmar algo de que o autor ainda não se apropriou. Deve então escolher-se a melhor formulação e continuar com ela a trabalhar. Uma das técnicas do escritor é poder renunciar inclusive a ideias fecundas, quando a construção o exige. Para a sua plenitude e força contribuem justamente as ideias suprimidas. Tal como à mesa não se deve comer até ao último bocado nem beber o copo até ao fundo. De outro modo, torna-se suspeito de pobreza.
Quem deseja evitar os clichês não deve limitar-se às palavras, se não quiser incorrer em vulgar coqueteria. A grande prosa francesa do século XIX era nisto particularmente susceptível. A palavra isolada raramente se revela banal: também na música o som isolado resiste à erosão. Os clichês mais odiosos são antes uniões de palavras do tipo das que Karl Kraus proferiu: plena e totalmente, para o melhor ou para o pior, construídas e aprofundadas. Nelas cicia, por assim dizer, o fluxo inerte da linguagem batida, em vez de o escritor, mediante o rigor da expressão, asserir a resistência exigida onde a linguagem se deve realçar. Isto não vale só para as uniões de palavras, mas também para a construção de formas inteiras. Se um dialéctico, por exemplo, quisesse assinalar a mudança do pensamento no seu avanço, começando após cada cesura com uma ‘mas’, o esquema literário desmentiria o propósito esquemático do raciocínio.
O matagal não é nenhum bosque sagrado. É um dever eliminar dificuldades que surgem simplesmente da comodidade na auto-compreensão. Não basta distinguir sem mais entre a vontade de escrever em forma densa e adequada à profundidade do objecto, a tentação do particular e a pretensiosa despreocupação: a insistência suspeitosa é sempre saudável. Quem não quiser fazer nenhuma concessão à estupidez do sadio senso comum deve resguardar-se de adornar estilisticamente ideias que de per si induzem à banalidade. As trivialidades de Locke não justificam o giro críptico de Hamann.
Se houver apenas objeções mínimas contra um trabalho concluído, indiferentemente da sua extensão, há que encara-las com uma seriedade incomum, fora de toda a relação com a relevância que possam ter. A carga afectiva do texto e a vaidade tendem a minimizar todo o escrúpulo. O que se deixa passar como uma dúvida mínima pode denotar o escasso valor objetivo do todo.
[...] A prudência que proíbe ir demasiado longe numa sentença quase sempre é agente do controlo social e, portanto, da estupidificação.
Cepticismo frente à objecção predilecta de que um texto ou uma formulação são ‘demasiado belos’. O respeito pelo tema, ou até pelo sofrimento, facilmente racionaliza apenas o rancor contra aquele para quem é insuportável encontrar, na forma reificada da linguagem, o vestígio do que os homens padecem, da indignidade. O sonho de uma existência sem ignonímia, que se afirma na paixão lingüística, quando já lhe é proibido visualizar-se como conteúdo, deve ser dissimuladamente estrangulado. O escritor não pode aceitar a distinção entre a expressão bela e expressão exacta. Não devem presumi-la num crítico timorato nem tolera-la em si mesmo. Se consegue dizer cabalmente o que se pensa, há nisso já beleza. Na expressão, a beleza pela beleza nunca é ‘demasiado bela’, mas ornamental, artificial, odiosa. Mas quem com o pretexto de estar absorvido no tema renuncia à pureza da expressão, o que faz é atraiçoá-lo.
Os textos assaz elaborados são como as teias de aranha: densos, concêntricos, transparentes, bem arquitravados e firmes. Absorvem em si tudo quanto ali vive. As metáforas que esquivamente passam por eles convertem-se em presa nutritiva. A elas acodem todos os materiais. A solidez de uma concepção pode julgar-se segundo o recurso às citações. Onde o pensamento abriu um compartimento da realidade, deve penetrar sem violência do sujeito na câmara contígua. Preserva sua relação com o objecto, logo que outros objectos se cristalizam à sua volta. Com a luz que dirige para o seu objecto determinado começam outros a brilhar.
O escritor organiza-se no seu texto como em sua casa. Comporta-se nos seus pensamentos como faz com seus papéis, livros, lápis, tapetes, que leva de um quarto para o outro, produzindo uma certa desordem. Para ele, tornam-se peças de mobiliário em que se acomoda, com gosto ou desprazer. Acaricia-os com delicadeza, serve-se deles, revira-os, muda-os de sítio, desfá-los. Quem já não tem nenhuma pátria, encontra no escrever a sua habitação. E aí inevitavelmente produz, como outrora a família, desperdícios e lixo. Mas já não dispõe de desvão e é-lhe muitíssimo difícil livrar-se da escória. Por isso, ao tirá-la da sua frente, corre o risco de acabar por encher com ela as suas páginas. A exigência de resistir à auto-compaixão inclui a exigência técnica de defrontar com extrema atenção o relaxamento da tensão intelectual e de eliminar tudo quanto tenda a fixar-se como uma crosta no trabalho, tudo o que decorre no vazio, o que talvez suscitasse, num estádio anterior, como palavriado, a calorosa atmosfera em que emerge, mas agora permanece bafiento e insípido. Por fim, já nem sequer é permitido ao escritor habitar nos seus escritos.”


Trechos de “Atrás do espelho”, de Theodor W. Adorno, presente em Minima moralia, tradução de Artur Morão.

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obs: para assitir ao vídeo dessa canção, e não apenas apreciar a letra, confira este link:
http://www.youtube.com/watch?v=oGhQNUCdQLU

terça-feira, 14 de setembro de 2010

sexta

-- Ô Kamil, dá a volta com esse aí para liberar espaço, que o Caieiras já tá pra encontar.
Porra, acabei de acender o cigarro. Merda. Deixa eu ver: 16:03, comecei às 13, São Gonçalo até umas 22, talvez 23, tempo seco desgraçado e motor transformando minha tarde numa sauna com fumaça filha da puta de combustível e óleo; um trago; domingo é folga, putaquepariu, até que enfim um final de semana sem um dia de trabalho na escala, beber umas loira, dormir a tarde, dar um afago na patroa, talvez os moleques venham para o almoço e tragam os netos e a neta; outro trago; olha só, hmmm, esse piso sujo e cheio de chiclete velho enegrecido, por mais que o pessoal da limpeza tente não dá pra esconder, isso aqui pertence à sujeira; tchau cigarro pela metade. Bora lá, tirar esse busão daqui. Cacete, merda de cinto, só o que faltava, deixa ver, emperrado ou fodido de vez? Não vai no jeito, vai na força, já dizia meu velho quando eu insistia em fazer algo que ele havia expressamente dito para não ser feito, e, aí sim, descia o sarrafo. Deixe estar. Ligar o motor, eita fumaça desgraçada...

*

Nesse meio tempo, duas plataformas ao lado, o Caieiras encosta, mesmo assim Kamil manobra o ônibus, entretido com o vai e vem das pessoas nas plataformas, atentando para não esmagar velhinhas ao dar ré, e sai para uma breve volta ao redor da rodoviária.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Requiem for a Mind

Pensei em escrever um poemão, mas como sou um bobão, que só sabe rimar em -ão, achei melhor mandar uma reflexão em forma de dissertação. E para ser sincero, já esqueci o poema, pois o fiz enquanto dormia ou enquanto acordava? Não sei mais. A idéia do poema era refletir as atitudes que muitas vezes tomamos como pequenos suicídios. E até que ponto eles são necessários ou não para nossa sanidade. Mas agora perdi o poema e perdi a idéia. Foram-se. E na minha solidão pergunto o que resta.

domingo, 12 de setembro de 2010

Maldade

- Ô fio! Compra aí um docinho pra me ajudar a comprar leitinho pras crianças!
Marcinho não era bobo, mas andava por dias estranhos, ultimamente. Olhou a tiazinha que oferecia-lhe docinho por um real e não sentiu compaixão. Pior ainda, Marcinho não sentiu vontade de docinhos, embora tivesse mais que um real no bolso - e ninguém tem nada com isso!
Marcinho era menino bom, mas mesmo assim, pegou a carteira e procurou moedas. Depois de uns vinte minutos mexendo nas moedinhas de 25, 10, 15 centavos, parou um pouco. A tiazinha do docinho, numa dessas, continuava esperando, sem nenhuma impaciência, embora com a mesma tristeza real vinda dos estomaguinhos carentes de seus filhos. Marcinho andava em dias de treta pessoal, e tirou a mão das moedas-mixaria, para depois tirar uma nota gorda de dois reais.
Marcinho deu a nota gorda pra mão esquerda da mulher. "Deus te abençoe!" - a mulher continuava triste, porque 2 reais é gordo mas não é leitinho suficiente.
Marcinho andava meio-na-merda, mas disse, "Boa sorte", porque, apesar de tudo, Marcinho é esperto, e não acredita em Deus e nessas coisas. Isso, a tiazinha deve ter percebido mais ou menos, porque respondeu, "Boa sorte pra você também!" - ainda triste, apesar dos 2 reais. Mas Marcinho não precisa de sorte...
Marcinho, já longe de sua boa ação do ano, pensa que deveria ter perguntado à mulher sobre os filhos, sobre o que eles têm além de fome, sobre os docinhos, sobre quem os faz...
Continuou andando e sentiu o cheiro gostoso de batatas fritas de plástico norte-americanas: era o Mcdonalds, pertinho.
Marcinho nunca foi filho da puta, mas pensou que os filhos da mulher serão, se crescerem, traficantes de docinhos e mortos de fome, não importando quantos dois reais generosamente lhes dêem. "Será transformador apenas se a tiazinha bondosa e triste fizer-me o favor de por algum ra-ti-ci-da no leitinho enquanto os filhos estiverem distraídos com as baratas que acasalam-se debaixo de seus lençoizinhos..."
Marcinho não sentiu vergonha do que pensou. Como se não bastasse, apesar de ser garoto decente, não sentiu vergonha de não sentir vergonha.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Tradução: Shakespeare

Miranda:
At mine unworthiness, that dare not offer
What I desire to give; and much less take
What I shall die to want: but this is trifling,
And all the more it seeks to hide itself,
The bigger bulk it shows. Hence bashful cunning,
And prompt me plain and holy innocence.
I am your wife, if you will marry me;
If not, I'll die your maid: to be your fellow
You may deny me, but I'll be your servant
Wheter you will or no.
[Shakespeare, William. The Tempest. Penguin Books, London, England, p. 65]

Miranda:
No meu desmerecimento, que não ousa oferecer
Aquilo que desejo dar; e muito menos tomar
Aquilo que morreria para ter: mas isto é insignificante,
E além do mais procura esconder a si mesmo,
A grande parte ele mostra. Então tímida astúcia,
E incinta minha simples e sagrada inocência.
Eu sou sua esposa, se você casar comigo;
Se não, morrerei sua criada: para ser sua companheira
Você poderá me negar, mas eu serei sua serva
Se você desejar ou não.

Outra Terça

Acordo sentindo que a vida é uma bosta. Levanto sento no computador e ligo-o. Entro nos mesmos sites para ver se há algo de novo e sinto que a vida é uma bosta novamente. Entro no MSN mas ninguém online as 9 da manhã. Rapidamente opto por assistir Requiem for a Dream, mas antes vou preparar um café da manhã: pão com queijo e leite com nescau. Sou questionado sobre o futuro e embaraçado volto da cozinha para o quarto e começo a ver o filme.
O filme é interessante, apesar de não achar a direção das melhores, nem os atores. Mas o que me chama a atenção é a velha. Sem dúvida a personagem mais interessante do filme. A história inteira dela se limita a viver na sala, isolada, assistindo a TV, aprisonada no sonho de aparecer em um programa de palco para dizer que seu filho é bem sucedido e que ele se casará em breve. Assim, todas as pessoas vão olhar para ela e vão gostar dela. Mas, na verdade, a velha apenas ignora o mundo ao seu redor para sustentar essa ilusão. Essa necessidade desnecessária de estar na TV para ser alguém.
Meu sentimento depressivo em relação a vida se aprofunda após ver o filme. Fico pensando na inexistência e sentindo que tem algo no filme que me tocou profundamente mas não consigo expressar em palavras. Almoço. Converso um pouco no MSN, isso me enche o saco e, sem avisar as pessoas com quem converso começo a desenhar e as ignoro por 1h. Caio na cama e apago. Acordo 1 ou 2h depois. Vou para o computador e sinto como a vida é desesperadora. Não quero fazer nada. Começo a ver o filme 21 gramas.
O filme é interessante, mais pela direção/montagem/narração do que pela história. Converso com o Gustavo no MSN sobre o filme, o que me faz perceber que, tanto 21 gramas como Requiem for a Dream tem uma temática parecida, embora diferente. Em grande parte, a temática do primeiro é a Morte e como continuar vivendo quando ela ocorre. E existem três personagens que se fazem essa questão: Cristina, que se questiona como continuar vivendo ao perder seu marido e duas filhas num acidente; Jack, que se questiona como continuar vivendo sendo o responsável direto pelo acidente; e Paul, que se questiona como continuar vivendo sabendo que só pode continuar vivendo graças ao coração que recebeu do marido de Cristina. Em todos esses casos a razão de viver é questionada. E, no fundo, essa mesma questão aparece em Requiem for a Dream. Todos os personagens possuem um sonho que lhes garante uma razão de viver. Enquanto esse sonho está vivo e possível na mente dos personagens, a história é feliz. Justamente quando as questões materiais (MWHAHAHAHA!) do sonho são destruídas, que a história começa a decair.
E sinto que minha capacidade de análise dos filmes chega ao limite. E isso me deixa mais deprimido. Tenho o sentimento que existe algo nesse meio, algo grande e inteligente, mas que não sou capaz de trazer a luz. E não tenho com quem conversar sobre isso, o que me deprime mais ainda.
Entro no blog para ver se postaram algo e vejo que o poema de Baudelaire continua lá. Meus desenhos se foram. Os deletei no dia anterior após (durante) um belo copo de Uísque. Meu sentimento de destruição estava no limite e eu sentia que precisava sumir com algo. Sumi com os posts. Meus desenhos me deixam deprimidos. Me questiono por que desenho e se vale a pena continuar. Olho para eles e imagino pessoas olhando para eles e é como se essas pessoas estivessem olhando para minha alma e me avaliando. Isso me dá uma sensação de terror. Os deletei. Os três posts inexistentes me fazem pensar na vida desta vez. Penso na velha de novo, e se desenhar não é apenas uma ilusão em vez de um sonho. Qual o limite entre ilusão/sonho? Qual a diferença entre eles? O que caracteriza meu ato de desenhar como mais do que uma ilusão? Desespero. Penso nessas questões. E a resposta que vem na mente é a indiferença talvez. Penso que, para as pessoas, se eu desenho ou não, não faz diferença. Pelo menos para as que estou mais próximo.
Decido que está na hora de parar com emozisse e começo a ler um texto de História da Arte para o único tópico que estou fazendo. Depois da leitura converso mais um pouco no MSN e percebo que é meia-noite. Decido que o dia acabou e vou dormir, para acordar tarde demais e perder a aula de alemão. Puto, me pergunto se vou ou não para o curso de História da Arte.

terça

Quatro horas da manhã, momento de decisão e letargia: assistir parte de um filme de mais de sete horas com uma boa temática para madrugadas aleatórias... meia-hora depois alguém deve ter começado a escutar meu ronco, acordo oito e pouco, penso mais cinco minutos só, mais uma vez encaro o relógio, onze e vinte e dois, momento propício para sair da cama quentinha e colocar em prática meus dotes culinários. Lá pelas duas da tarde, arrotando macarrão com molho de tomate e atum e frango empanado (com acompanhamento líquido de suco de maracujá), decido ler algumas coisas na internet e, para minha surpresa, descubro que um adorado canalha andou retirando seus desenhos de um blogue, fico primeiro puto, depois intrigado, por fim tento esquecer (e escrever mostra que não tive sucesso na conclusão deste complicadíssimo processo de interiorização e desenvolvimento proto-behaviorista, ah meus falhos condicionamentos, minha inaptidão de responder corretamente aos meus estímulos!). E chovia, chovia desde algum momento que acordei na manhã, escutei o barulho, pensei ok, dormi de novo; e durante o resto do dia chovia, parava, sol por alguns momentos, potencialmente mais um dia como qualquer outro, exemplar por não possuir nada de exemplar. Isso, feriado! nada espetacular, ou, apenas o espetáculo de desfiles patrióticos (que perdi, pois estava dormindo), consagrado com a eliminação da seleção brasileira pela argentina no mundial de basquete. Ler, ouvir música, ler ouvindo música, cochilar, pouco antes da meia-noite aquecer os resquícios do almoço, mastigá-los e digerí-los com a ajuda de goles de café morno e promessa de indigestão. Acabo com uma repetição dos arrotos do almoço, acrescidos de um peculiar sabor de Coffea arabica. Quase esqueci de cagar. E ainda estou cismado com a auto-censura dos desenhos do Caetano.