terça-feira, 29 de junho de 2010

Adversidade .2

Outro dia tive a experiência da pesquisa histórica. O arquivo ficava no meio do bosque, e isso me permitiu muito contato com a natureza. Muito...
Apesar dos arquivistas, dos animais e da poeira documental dos séculos, creio que posso dizer que gostei mais ou menos.
Agora tenho uma câmera e posso fotografar os documentos para ler em casa. No arquivo não permitem que eu tome café enquanto leio os documentos. Também não permitem que eu leia deitado na cama, debaixo de cobertas, apesar das vantagens que isso traria.
No meio de toda a diversão que é brincar de historiador, não pude deixar de lembrar da advertência do professor: "No meu tempo tinha que transcrever o documento inteiro! O arquivo fechava e não dava tempo pra acabar! Vocês tiram fotografia digital, são uns merdas, serão uns historiadores de merda!"
Acho que quando eu for docente vou passar descompostura nos alunos. É provável que nessa época o desenvolvimento da técnica produza alguma máquina capaz de analisar o documento. Vai dar apenas o trabalho de apertar o botão para escolher com qual teoria você quer analisar, e ela recorta os trechos pertinentes fazendo as considerações mais convenientes. "Na minha época tinha que fotografar TUDO com máquina digital! di-gi-tal! seus merdas..."

Adversidade

Marcão: - Mano, cê num sabe o que aconteceu!
Carlinhos: - É? Vai se fudeh!
Marcão: - Outro dia eu tava andando por um lugar mor longe, só que como já era hora do almoço fiquei com fome pra caralho...
Carlinhos: - Humm...se fudeu...
Marcão: - O pior é que tive que andar pra caralho e num achava UM lugar, sujo que fosse, pra comer pelo menos uma marmita!
Carlinhos: - Pau no seu cu!
Marcão: -Tava muito sol, eu tava suando absurdo, quando eu vi uma lojinha de coisas plásticas! Cê acha?! puta absurdo! Essa cidade num tem onde comer mas tem lojinhas com copinhos e pratinhos de plástico! Imagina?! O que pensa um cara que vende artigos de plástico ao invés de um bom almoço barato?! Como um cara desses consegue ter coragem de conversar com pessoas normais?!
Carlinhos: - Humm...vai se fudeh
Marcão: - Quando eu finalmente encontrei um lugar pra comer, era um restaurante caro, lotado, comida fria. Reclamei com o gerente, "Ow, gerente, eu andei pra caralho e é esse tipo de comida que você tem?!", ele tava vendo o jogo, da copa do mundo, e me deu sermão, "na África, vagabundo, as crianças andam muito mais e não encontram comida sem ter que disputá-la com leões e rinocerontes!! Sai do meu restaurante!". Cê acha?!
Carlinhos: - Paaau... noseucu!

segunda-feira, 28 de junho de 2010

ponto final

De passagem frequentei sem gosto a escola desde a infância, depois de muito tempo, ou melhor, depois de muitos esporros de meu pai e cintadas de minha mãe, decidi que era mais razoável esforçar-me no mínimo pela obtenção de um diploma de mediocridade, ou melhor, confundo-me demais em meus pensamentos, um diploma medíocre de conclusão de primário, ensino médio, curso técnico, orgulho para alguns, papel timbrado, prefiro papel higiênico. Pouco lembro do que estudei, esforcei-me por lembrar de esquecer todo dia tudo o mais rápido possível, meu trabalho diário e constante funcionou perfeitamente para isso.
De passagem trabalho como empacotador de compras de uma grande rede de supermercados, ainda por cima faço parte do time de futebol da empresa, lateral direito, com chances de ser chamado para um possível time profissional a ser formado em um futuro de mentira, talvez próximo. Não descuido, sou atento, nunca misturo produtos de limpeza com alimentícios em sacolas de madames, embalo com cuidado, em duas sacolas, a bebida para estudantes universitários que nem olham para a minha cara. Tenho cara, não tenho rosto, isso meu avô já afirmava com seu sorriso sem dentes, quando ainda era vivo e esculhambava com meu pai e consequentemente comigo, dizendo-nos que éramos um grande erro, montes de merda, cachorros, imprestáveis e por aí em diante, ficava assim o tempo todo da nossa visita mensal de uma hora ao asilo beneficiente dos franciscanos.
Todo dia vou embora no ônibus das 23:27. Desço no ponto final, antes do retorno para o terminal, perto de uma ponte, embaixo passa o rio Paraíba, lembro que não sei nadar, passo a ponte, mais 200 metros e estou em casa. Tenho tempo para cagar, tomar um banho e dormir. Esqueci novamente de comprar papel higiênico. Preciso pagar a pensão para minha ex-mulher semana que vem. Tudo bem, limpo o cu no chuveiro e não esquecerei do papel amanhã, certeza. Meu filho está com três anos, pimpolho saudável, mora com alguma tia, preciso visitá-lo. O cansaço recrimina qualquer outra lembrança, apago a luz e deito. Lá se vai mais um dia. De manhã risco o dia anterior no calendário para não me perder, se é minha folga, volto para cama e durmo até não aguentar mais de fome.
De passagem pularei da ponte qualquer dia desses.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

semáforos cotidianos.

"décio, você tem certeza que anotou isso direito? não acho o documento pelo número de tombo que você anotou." - foi como ela me interpelou com um olhar que misturava desafio e dúvida. "Quem ela acha que é para falar assim comigo? Porque se ele acha que eu vou deixar isso como está, ele está totalmente enganada!"

Peguei novamente o livro em cima da mesa marrom de pernas verdes, verdes como as folhas da árvore cortada para a confeção da cadeira na qual me sentei novamente, enquanto tentava lançar um olhar que sustentasse minha provocação, porque naquele momento eu já tinha certeza que ele havia inventado as fontes. Ela ficou folheando as páginas finais do livro de capa vermelha e páginas amareladas pelo tempo que passaram na estante do armário vitoriano de mogno que minha tia havia nos deixado quando morreu e eu fiquei imaginando se ela já sabia que toda a história que tinha feito minha fama não passava de uma farsa que ele usou pra ganhar dinheiro e não calculou na época que fosse ter tanta repercussão.

"Sim, tenho certeza. Os caracteres eram de máquina de escrever, não posso ter me confundido." Fechei o livro e o atirei na mesa que nos separava a uma distância um pouco mais curta do que aquela que o tempo estipulou como o máximo aceitável de aproximação sem um olhar constragedor. Para evitar o constrangimento, tomei o livro e o ergui até a altura dos olhos, como quem quer ver de perto um texto e me pus a folhear as mesmas últimas páginas com os números fictícios. Fiquei pensando se ele realmente achou que ninguém descobriria enquanto olhava para as costas do livro cuja capa tinha um tom de vermelho desbotado que lembrava a odiosa cara do sacerdote que nos casou em minha inocente juventude. Agora eu penso que foi um erro, mas na época eu tinha certeza de que era o certo a se fazer. Eu não poderia deixá-la destruir minha carreira construída basicamente por esse livro que, pesando em minha mão insegura, caiu na mesa com um barulho de fruta podre que cai na grama seca, tão verde como as pernas dessa pobre mesa. Sempre considerei o "olho no olho" a hora de corrigir um erro, a hora de tomar a coragem para se fazer algo que já devia ter sido feito há muito tempo.

"Quero o divórcio."

Retrato

terça-feira, 22 de junho de 2010

Variação: Marindondofimdomundo [inspirado pelo post anterior]

Meu amigo sempre me disse que o fim do mundo começaria com um marimbondo estourando uma janela. Idéia absurda! Nunca acreditei nela até aquele momento.
Acordei com um grito. Me levantei assustado e fui até o quarto do meu irmão. Chegando no corredor deparei com os meus pais já à porta do quarto dele. Bateram, perguntaram se estava tudo bem. Como não houve resposta, abriram-na. Ficamos todos paralisados. A luz do quarto iluminava um marimbondo gigante, devia ter mais de 1m de comprimento, todo espalhado pelo chão do quarto, suas patas se mexiam vagarosamente nos seus últimos suspiros de vida, derrubando alguns objetos que encontravam pelo caminho. Seus sangue, se posso chamar de sangue aquela gosma, estava por todo lado, assim como fragmentos da janelas e alguns pedaços da parede. Meu irmão estava sentado na cama em estado de choque.
Num ato de coragem, meu pai circulou o marimbondo e recolheu meu irmão. Fechamos a porta do quarto e a trancamos por precaução. Meu pai conversava nervoso com minha mãe, não sabiam o que fazer. Ele resolveu ligar pra polícia e o fez. Mas ao contar a história, tudo o que recebeu foi uma bronca, disseram que na próxima vez que ele passasse um trote lá eles viriam até aqui prendê-lo. Foi então que comentei do meu amigo, e que ele sempre contava essa história dos marimbondos e do fim do mundo. Meus pais me perguntaram o número dele, fui buscar. Ligaram lá e me passaram o telefone. Acharam que era melhor que eu falasse com ele. Quem atendeu foi uma senhora bastante irritada, e, só depois de eu convencê-la que era extremamente urgente ela resolveu acordá-lo. Não contei a história para ela, por precaução. Vai que ela pensa que é trote, assim como os policiais bobos a quem meu pai ligou.
Meu amigo atendeu sonolento:
- Alô? Gerivaldo? Não sabe o que aconteceu. Um marimbondo estourou a janela de casa.
- O quê? Marimbomdo?
- É, um marimbondo gigante. 1m pelo menos.
Ficou um silêncio, mas pude ouvir que ele repetia o que eu disse para a mãe dele e, ela numa voz aterrorizada parecia responder: Virgê Maria!
- Alô? Gerivaldo? O que a gente faz agora? Os policiais não acreditaram.
- Nem se preocupe, não chegariam a tempo.
- A tempo do que?
- Do fim, ora.
- Fim?!
- Fim do mundo.
- ...
- O Mundo é o piano de Deus, e o último movimento começa com um marimbondo estourando uma janela.
- Não entendo.
Meus pais olhavam para mim assustados, como quem procura por socorro. Queria lhes dizer algo, mas o que diria? Não entendia nada que meu amigo falava!
- Escuta, você precisa agir rápido e começar o ritual.
- Ritual?
- De purificação. O sangue do marimbondo é sagrado. Passe no seu corpo. E tente convencer o maior número de pessoas a fazê-lo. Eu e minha mãe estamos indo para ai.
Nisso Gerivaldo desligou o telefone. Olhei para meus pais e falei tudo. Minha mãe tentou protestar, sem muita convicção, que estava tudo errado e o fim do mundo começaria com uma trombeta. Meu pai levava as mãos no rosto e não falava nada. Meu irmão continuava em estado de choque.

Meu pai levantou e decidiu que tinhamos que nos purificar. E começou a andar em direção ao quarto. Como ninguém o seguia, ele olhou para tras e deu um berro. Chamou todos para ir com ele. Chegando lá abrimos a porta. O bicho asqueroso continuava capotado no chão, já não se mexia mais. Olhamos por algum minuto, sem coragem de fazer nada. Meu pai chegou a conclusão de que ele estava morto. Andou em sua direção, como se sentisse sua presença, o bicho mexeu a cabeça e as patas e disse só uma palavra, numa voz gutural: "Água". Ficamos paralizados. Ele repetiu: "Água".
Em medo, saímos correndo do quarto. Claro que, fechamos a porta novamente. O que fora aquilo? O que ele queria dizer com água. Meus pais me deram o telefone e falaram preu ligar pro Gerivaldo. Fiz isso, como ninguém atendia, liguei no celular.
- Alô, Gerivaldo? Onde você tá?
- Tô indo prai. Logo chego.
- O bicho falou. Só uma palavra: Água! O que a gente faz?
- Dá água para ele, ué.
- Como assim?
- Ele deve estar com sede.
Desliguei e falei com meus pais. Minha mãe foi buscar a tigela do cachorro, colocou água e deu para meu pai. Com alguma coragem ele levou até o quarto e colocou perto da cabeça do bicho, que, com algum esforço bebeu tudo numa chupada, e disse: "mais". Meu pai deu a tigela para minha mãe que encheu ela de novo. E, de novo, meu pai levou até o bicho que tomou tudo numa chupada e pediu mais. A cena se repetiu por mais cinco vezes. Como, na última, o bicho não disse nada, saímos do quarto e fechamos a porta.

Nos sentamos na sala, quando minha mãe perguntou pelo tal ritual. Meu pai grunhiu alguma coisa e ficamos lá, sentados. Não sei quanto tempo. Mas não foi muito, pois logo escutamos uns zumbidos absurdamente altos vindo de fora de casa. Corremos para a janela e vimos quatro marimbondos gigantes sobrevoando a casa. Minha mãe gritou: "Tem mais deles! Vão nos matar!" Os novos marimbondos pousaram no quintal, e escutamos uma voz chamar. Meu pai foi até a cozinha e acendeu a luz. De lá dava para ver que alguém montava o marimbondo! Um ser com formas humanas. Meu pai foi até lá. Esse outro marimbondo tinha uns 2m. Dois deles estavam no quintal e os outros dois no telhado, eles tinham rédeas, como cavalos e cada um deles um homem montado.
O que nos falou se vestia de branco e tinha um arco:
- Viemos em busca do Ferrão Sagrado.
- Ferrão sagrado? - sussurrou meu pai.
- Pedimos permissão para entrar.
Estavamos todos confusos, meu pai só sussurou um "tudo bem".
Eles desceram dos seus marimbondos e fizeram uma fila em frente a meu pai. O primeiro era o homem de branco, o segundo se vestia de vermelho e tinha uma espada enorme as costas, o terceiro era negro e segurava uma balança e o quarto e último se vestia de verde. Ficaram parados, encarando meu pai. Como nenhum dos lados esboçava qualquer reação, o primeiro quebrou o impasse dizendo:
- Nos mostre o caminho.
Só então meu pai entendeu o que esperavam. Ele os levou até o corredor e apontou o quarto. Então os quatro tomaram a frente e o abriram, entraram e se ajoelharam, como quem se ajoelha diante de um rei. O homem de branco então falou:
- Oh Ferrão Sagrado. Estamos aqui para obedecer vossos desígnios.
E, um a um, beijaram o ferrão daquele bicho, que tratavam como um Deus, mas, para nós, era um inseto nojento. Voltaram a se ajoelhar. Nisso o marimbondo começou a fazer sons irritantes. Parecia alguma língua estranha - marimbondês, talvez - pois os homens pareciam receber ordens. Quando aquele som irritante acabou, o marimbondo tombou a cabeça prum lado como quem morre. Os homens se levantaram, pegaram o sangue do bicho e passaram na testa. Assemelhava-se ao sinal da cruz, mas, quando se viraram para a gente, vimos que era um símbolo estranho, nunca visto antes. Seus olhos não eram mais humanos. Na realidade, não havia mais olhos, apenas o vazio ou seria o infinito? Olhavamos hipnotizados, como se olhassemos o universo.
Eles saíram, não disseram nada. Apenas subiram nos seus marimbondos e foram embora.

Gerivaldo chegou em casa. Contamos para ele e para a mãe dele o que havia acontecido. Ela se sentou pálida:
- Então já é tarde. Está para começar a qualquer instante.
Abri a boca para perguntar o que. Mas não o fiz, sabia qual seria a resposta, e alguns minutos depois veio a confirmação: a primeira de milhares de bolas de fogo caiu do céu e destruiu a casa do vizinho.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Marimbondomedodamorte

Há meses um marimbondo ronda a janela do meu quarto. Preciso não-abrir a janela. Se ele entrar vai tomar toda a minha água.
Ainda bem que os marimbondos não duram muito. Se eu tomar o cuidado de não deixá-lo entrar, ele simplesmente morrerá e cairá lá embaixo - doze andares morto e com sede: HA HA HA!!
Não é problema meu; pelo menos mantenho minha segurança e privacidade.

Bleh

domingo, 20 de junho de 2010

Impressões - 04 - Klavier

"All that city. You just couldn´t see an end to it. The end... Please... You please just show me where it ends? [...] What I didn´t see: in all that sprawling city there was everything except an end. There was no end. What I did not see was where the whole thing came to an end. The end of the world.
You take a piano. Keys begin, the keys end. You know there are 88 of them. Nobody can tell you any different. They are not infinite. You are infinite. And on those keys, the music that you can make is infinite."
The Legend of 1900

"Toda aquela cidade. Você não podia ver um fim. O fim... Por favor... Por favor me mostre onde ela acaba? [...] O que eu não pude ver: em toda aquela cidade esparramada havia de tudo, exceto um fim. Não havia um fim. O que eu não vi era aonde toda a coisa acabaria. O fim do mundo.
Você pega um piano. Notas começam, as notas acabam. Você sabe que existem 88 delas. Ninguém pode te dizer diferente. Elas não são infinitas. Você é infinito. E, nessas notas, a música que você consegue fazer é infinita."
A lenda de 1900.

Nota:
Klavier = Piano

sábado, 19 de junho de 2010

segunda-feira, 14 de junho de 2010

No meu primeiro post aqui não quero falar nada demais, só me introduzir na conversa mesmo.. Pensei em comentar sobre a Copa do Mundo e a peleguisse que a acompanha, ou também como o jogo da Alemanha e Austrália foi divertido, pensei em falar sobre meu relatório sobre história e literatura pós-colonial, do frio, de qualquer merda, mas acho que tudo o que escrevo acaba sendo meio patético. Minhas opiniões são medíocres e o jeito que escrevo sobre elas então nem se fala. O Rodolfo que me chamou aqui porque acha que talvez eu tenha alguma coisa pra falar, mas acho que no fundo não tenho não... Tudo o que eu possa vir a falar alguém já falou de uma maneira melhor, e se eu falar sobre, provavelmente não entendi direito o que quiseram dizer. E se por um acaso eu falar algo diferente, não acredito que seja realmente relevante para a vida de alguém.
Pensarei em algo melhor para meus posts seguintes, posso comentar a matéria que li comparando o novo clipe da Lady Gaga aos filmes da Leni Riefenstahl, ou talvez os problemas de reduzirem o discurso histórico somente à sua dimensão retórica, mas acho que será melhor para quem quiser simplesmente pegar o artigo da internet ou o livro do Ginzburg e pensarem o que for sobre esses assuntos... Talvez eu realmente já tenha escrito alguma coisa interessante, mas se isso aconteceu eu já apaguei. Isso provavelmente só mostra insegurança de minha parte, e que se eu acreditasse em terapias, ou discursos religiosos me ajudariam a superar. Eu sei que vão me falar que entrei para os "intelectuais transgênicos satânicos", e não emos, mas fodam-se todos vocês daqui, que foram corrompidos por aquele filme da morsa, portanto pertencem na verdade a uma "seita satânica travesti" e que servem o demônio com o propósito de fazer as pessoas largarem deus (segundo o Google). E agora vou dormir porque amanhã tenho que viver minha vida pequeno-burguesa que me permite ficar acordado até tarde.

domingo, 13 de junho de 2010

Impressões - 03 - She wouldn´t even harm a fly


"Thank you.
It´s sad when a mother has to speak the words that condemn her own son, but I couldn´t allow them to believe that I would commit murder! They will put him away now, as I should have years ago. He was always bad. And in the end he intended to tell them I killed those girls and that man, as if I could do anything, except just sit and stare, like one of his stuffed birds. Oh, they know I can´t even move a finger... And I won´t. I will just sit here and be quiet: just in case they do... suspect me. They are probably watching me. I´ll let them. Let them see what kind of a person I am. I am not gonna even swat that fly. I hope they are watching. They will see and they will see and they will know. And they´ll say: "oh, she wouldn´t even harm a fly!"

"Obrigada.
É triste quando uma mãe tem que dizer as palavras que condenarão seu próprio filho. Mas eu não podia deixá-los acreditar que eu cometeria assassinato! Eles o prenderão agora, assim como eu deveria ter feito anos atrás. Ele sempre foi mal. E, no fim, ele pretendia dizer lhes que eu matei aquelas garotas e aquele homem. Como se eu pudesse fazer qualquer coisa, além de sentar e olhar, como um dos seus pássaros empalhados. Oh, eles sabem que eu não posso mover um dedo... E não irei. Eu apenas permanecerei sentada aqui e ficarei em silêncio: apenas em caso... deles suspeitarem de mim. Eles provavelmente me observam. Eu os deixarei. Deixarei os ver que tipo de pessoa eu sou. Eu não irei nem mesmo esmagar essa mosca. Eu espero que eles estejam observando. Eles verão e eles verão e saberão. E eles dirão: "oh, ela não mataria nem mesmo uma mosca!"

Querido Diário

1- Hoje está meio frio. Vou ver meus e-mails e tomar café de verdade. Espero que o prédio não caia sem motivos justos; 2- Não aguento mais este barulho que não sei de onde vem. Acho que depois que terminar a lição-de-casa vou ligar para o consultório e marcar uma consulta neurológica, se não for muito caro. Se bem que, ao fazer isso, tomo como pressuposto que este barulho está na minha cabeça, e não na realidade; 3- Minha cabeça está fora da realidade? Não. Vou dar uma volta na cidade; 5- Não sei porque, mas sempre que ando pela cidade faço o mesmo caminho. Acho que o jeito como as ruas são feitas serve pra limitar minha liberdade de circular pelo espaço, e isso serve para limitar a capacidade da minha mente. É assim que eles evitam a revolução... Se eu pudesse andar por cima das casas, e fazer o caminho que eu quisesse, tudo seria diferente. Bem, no entanto, eu poderia fazer o caminho que eu quisesse, e ainda assim, continuar chegando sempre ao mesmo lugar, o que seria decepcionante - caso eu tivesse consciência disso, porque é possível ir todos os dias ao mesmo lugar e achar que não tem nada de mais. Ou achar que as coisas são assim mesmo.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Impressões - 02 - Anarchia

"Si. Ho da dire che sono innocente. In tutta la mia vita no ho mai rubato, non ho mai ammazzato. Non ho mai versato sangue humano. Io... Ho combattuto per eliminare il delito. Primo fra tutti: lo sfruttamento dell'uomo da parte dell'uomo. E si c'è una ragione per la quale sono qui è questa. Nessuna altra.
Una frase, una frase signor Karzmann, me torna sempre alla mente: "Lei, signor Vanzetti, è venuto qui, nel paese di bengodi, per arricchire." È una frase che me da alegria. Io non ho mai pensato di arricchiere. Non è questa la ragione perchè sto soffrendo e pagando. Sto soffrendo e pagando per cose che effetivamente ho comesso. Sto soffrendo e pagando perchè sono anarchico! E sono anarchico, perchè sono italiano. Ed io sono italiano! Ma sono così convinto di essere nel giusto che si voi avete il potere di ammazzarmi due volte, ed io per due volte potessi rinascere, revivrei per fare esattamente le stesse cose che ho fatto.
Nicola Sacco. Mio compagno Nicola! [...] Ma quante volte, quante volte, guardandolo, pensando a lui, a questo uomo, che oggi è giudicato di ladro ed assassino. E che ammazzerete. E quando le sue ossi signor Thayer non saranno che polvere e vostri nonni e vostre istituzione non saranno che il ricordo di un passato maledeto! Il suo nome, il nome di Nicola Sacco serà ancora vivo nel cuore della gente. Noi dobbiamo rengraziarle. Senza di loro noi saremmo morti come due poveri sfruttati. Un bon calzolaio, un bravo pesce vendolo, e mai, in tutta la nostra vita avevamo potuto sperare di fare tanto in favore della tolleranza, dela giustizia, della comprensione fra l'uomini. Voi avete dado un senzo alla vita di due poveri sfruttati."

Quatro coisas:
1-) Fiz o desenho baseado em uma das cenas do filme Sacco & Vanzetti de 1971;
2-) Tirei o texto de ouvido, então pode haver vários erros;
3-) Teve um pedaço que não consegui entender de maneira nenhuma o que era dito. Esse trecho está marcado com [...];
4-) Meu scanner é uma bosta e reduziu bastante a qualidade do desenho original =/

EDIT:
Tudo bem, posto uma tradução do trecho acima:
"Sim. Digo que sou inocente. Em toda minha vida nunca roubei e nunca matei. Nunca derrubei sangue humano. Eu... Combati para eliminar o delito. Em primeiro lugar: a exploração do homem pelo homem. E se existe uma razão pela qual estou aqui é essa. Nenhuma outra.
Uma frase, uma frase, senhor Karzmann, me retorna sempre a mente: "Você, senhor Vanzetti, veio aqui, num país de riquezas, para se enriquecer". É uma frase que me dá alegria. Nunca pensei em enriquecer. Não é está a razão pela qual estou sofrendo e pagando. Estou sofrendo e pagando por coisas que realmente cometi. Estou sofrendo e pagando por ser anárquico! E sou anárquico, porque sou italiano! E eu sou italiano! Mas sou tão convencido de estar certo que, se pudessem me matar duas vezes e, por duas vezes eu pudesse renascer, reviveria para fazer exatamente as mesmas coisas que fiz.
Nicola Sacco. Meu companheiro Nicola! Mas quantas vezes, quantas vezes, olhando o, pensando nele, neste homem, que hoje julgam de ladrão e assassino. E que assassinarão! E quando os seus ossos senhor Thayer, e seus avôs e suas instituições não serão apenas que a lembrança de um passado maldito! O seu nome, o nome de Nicola Sacco, estará ainda vivo no coração das pessoas. Nós devemos agradecê-los. Sem eles nós morreriamos como dois pobres explorados. Um bom sapateiro, um bom vendedor de peixes, e nunca, em toda nossa vida poderiamos esperar de fazer tanto em favor da tolerância, da justiça, da compreensão entre os homens. Vocês deram um sentido para a vida de dois pobres explorados."

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Curtas: Reflexões aleatórias

Em primeiro lugar, talvez essas reflexões soem como óbvias. É possível, mas não ligo. No fundo, são maneiras de tentar sistematizar em palavras algumas idéias.

Memória

1. O passado não existe. Só existe a Memória do passado.

2. Dialética do Tempo da Memória: a Memória é um vestígio mental do passado ao mesmo tempo em que é uma realidade presente. Ela forja o indivíduo, o coloca no lugar em que ele está, pelo menos mentalmente.

3. Se o passado não existe a Memória só pode estar localizada, em sua totalidade, no presente. Assim, ela possui um conteúdo passado, mas pensá-la só é possível com os filtros do presente.

4. A Memória só existe quando observada. Observar adiciona perspectiva. Assim, recuperar uma Memória não é reapropriá-la no presente?

Vestimentas

5. Roupas são estruturas sociais.

6. Elas limitam a realidade social, na medida que, embora eu seja teoricamente livre para sair vestido como quiser, praticamente não poderei fazê-lo, sob o risco de ser humilhado publicamente por vizinhos, conhecidos, desconhecidos.

7. Roupas determinam uma primeira impressão, são um símbolo social que define, aos olhos do observador, de maneira consciente ou não, o estilo de vida.

8. Como símbolos sociais estão sujeitas a se enfraquecerem ou se fortalecerem.

Relações Humanas - Primeiro Contato

9. O primeiro contato é formado pela busca de interesses em comum.

10. A possível materialização desses interesses comuns, na forma de CD, DVD ou Livro, permite a troca, o empréstimo de interesses.

11. Emprestar algo é uma tentativa de garantir um reencontro.

12. Até que ponto os interesses conscientes ou inconscientes precedem o primeiro encontro? Pensando num caso bizarramente platônico, não me apaixonarei sempre pelo mesmo tipo de garota? Eternamente, num ciclo sem fim, pelo menos enquanto meus gostos e interesses se mantiverem os mesmos?

Relações Humanas - Paixão à Primeira Vista

13.
Existem pelo menos três componentes da atração por outra pessoa pela vista: corpo, estilo e gestos. Corpo é o básico da natureza física da pessoa, sua silhueta, cor de cabelo (se este for natural), cor dos olhos. Estilo é a maneira como essa pessoa se veste e corte de cabelo. Gestos é a maneira como essa pessoa se comporta.

14. A paixão será mais forte quanto mais esses componentes mexerem com o imaginário da pessoa que observa.

15. Um quarto componente pode ser encontrado no tempo, na repetição. Quanto mais vezes, em mais situações o observador puder ver determinada pessoa, mais ele reforçará ou reprimirá sua paixão.

16. O Amor à Primeira Vista surge quando todos os componentes (e seus sub-elementos) de determinada pessoa sincronizam perfeitamente com o imaginário do observador. Nesse caso, o quarto componente é irrelevante.

variação

Mais um. Era conhecido como número 14, um irmão. Participava das discussões, prevenia sobre desvios de conduta, estabelecia normas, acreditava. Tinha conhecimentos sobre os costumes antigos de nosso povo, sabia bons conselhos para dinamizar a mudança. Era um dos poucos confiáveis, se é que essa noção ainda era válida [no momento não acredito que fosse possível, mas... muitos são os que caracterizam suas alucinações individuais como verdades absolutas]. Isolado percebi minha doença, curei-me dela e, consciente, morro pela cura.
Chovia, confrontei Saloth Sar, o número um, expus algo, não sei o que, alguma insanidade, não havia mais lucidez, hoje percebo. Reuniões insanas, éramos comunistas? Éramos um partido? Representávamos quem? A morte. As mortes. Trágico demais? Antes fosse tragicômico. Não era, não foi, até onde estive presente. Vi corpos, ou melhor, transformei vidas em corpos: posso esclarecer, um exemplo banal, uma criança que seja, seu pai era suspeito de transgressão, cortei metade de um dedo antes de qualquer “oi”, meu sorriso era a introdução para a morte de... [lamento não saber o nome de todos que matei]; apenas gritos, choro e sangue; o pai também morreu; a mãe, estuprada e morta. Eu sorria, satisfeito.
Muitos foram os que torturei. Uma cova coletiva recebeu meu nome, orgulhei-me disso quando soube. A consciência da tortura, o conhecimento da tortura, o saber-fazer de desumanizar um semelhante: assumi isso como profissão, e com um sorriso, por algum tempo. A morte era minha constante, parte de minha vida, mas apenas como morte dos outros. Percebi minha parcela neste jogo de caminho certo, a vida para a morte, quando duvidei no momento de concordar. Ambição? Não sei, talvez estivesse cansado, questionei Saloth Sar, apontei para ele e gritei algum insulto leve. Estou em Tuol Sleng, ou S-21 para os mais íntimos [eu um deles, doce ironia], tenho meu espaço, pequeno, desconfortável e penso. Sim, ainda penso, agora penso, ainda sorrio, sorrio para mim mesmo, sou minha morte, sei o que me espera. Nada mais, tudo mais, estou morto, estou vivo, sei disso, espero, encaro o pouco de chão que me resta. Sorrio.



“III – Contra a obsessão da morte, os subterfúgios da esperança revelam-se tão ineficazes como os argumentos da razão: sua insignificância só faz exacerbar o apetite de morrer. Para triunfar sobre este apetite só há um único ‘método’: vivê-lo até o fim, sofrendo todas as suas delícias e tormentos, nada fazer para escamoteá-lo. Uma obsessão vivida até à saciedade anula-se em seus próprios excessos. De tanto insistir sobre o infinito da morte, o pensamento chega a gastá-lo, a nos enojar dele, negatividade demasiado plena que não poupa nada e que, mais do que comprometer e diminuir os prestígios da morte, desvela-nos a inanidade da vida.
Quem não se entregou às volúpias da angústia, quem não saboreou em pensamento os perigos da própria extinção nem degustou aniquilamentos cruéis e doces, não se curará jamais da obsessão da morte: será atormentado por ela, por haver-lhe resistido; enquanto quem, habituado a uma disciplina de horror, e meditando sua podridão, reduziu-se deliberadamente a cinzas, esse olhará para o passado da morte e ele próprio será apenas um ressuscitado que não pode mais viver. Seu ‘método’ o terá curado da vida e da morte.
Toda experiência capital é nefasta: as camadas da existência carecem de espessura; quem as escava, arqueólogo do coração e do ser, encontra-se, ao cabo de suas investigações, ante profundidades vazias. Em vão terá saudades do ornamento das aparências.
[...]”.
Emil Cioran, trecho de “Variações sobre a morte”, tradução de José Thomaz Brum.

terça-feira, 8 de junho de 2010

notas dispersas

Lenin, no começo do século passado, perguntou-se "Que fazer?". Afinal...

“Quem chegasse, por uma imaginação transbordante de piedade, a registrar todos os sofrimentos, a ser contemporâneo de todas as penas e de todas as angústias de um instante qualquer, esse – supondo que tal ser pudesse existir – seria um monstro de amor e a maior vítima da história do sentimento. Mas é inútil imaginarmos tal impossibilidade. Basta-nos proceder ao exame de nós mesmos, praticar a arqueologia de nossos temores. Se avançamos no suplício dos dias, é porque nada detém esta marcha, exceto nossas dores; as dos outros nos parecem explicáveis e suscetíveis de ser superadas: acreditamos que sofrem porque não têm suficiente vontade, coragem ou lucidez. Cada sofrimento, salvo o nosso, nos parece legítimo ou ridiculamente inteligível; sem o que, o luto seria a única constante na versatilidade de nossos sentimentos. Mas só estamos de luto por nós mesmos. Se pudéssemos compreender e amar a infinidade de agonias que se arrastam em torno de nós, todas as vidas que são mortes ocultas, precisaríamos de tantos corações quanto os seres que sofrem. E se tivéssemos uma memória milagrosamente atual que conservasse presente a totalidade de nossas penas passadas, sucumbiríamos sob tal fardo. A vida só é possível pelas deficiências de nossa imaginação e de nossa memória.
Extraímos nossa força de nossos esquecimentos e de nossa incapacidade para imaginar a pluralidade de destinos simultâneos. Ninguém poderia sobreviver à compreensão instantânea da dor universal, pois cada coração só foi moldado para uma certa quantidade de sofrimentos. Existem como que limites materiais para nossa resistência; entretanto, a expansão de cada desgosto os alcança e, às vezes, os ultrapassa; é freqüentemente a origem de nossa ruína. Daí deriva a impressão de que cada dor, cada desgosto, são infinitos. Eles o são, na verdade, mas somente para nós, para os limites de nosso coração; e mesmo que este tivesse as dimensões do vasto espaço, nossos males seriam ainda mais vastos, pois toda dor substitui o mundo e de cada desgosto faz outro universo. A razão esforça-se inutilmente para mostrar-nos as proporções infinitesimais de nossos acidentes; fracassa ante nossa tendência para a proliferação cosmogônica. Daí decorre que a verdadeira loucura nunca é devida aos acasos ou aos desastres do cérebro, mas à concepção falsa do espaço que o coração se forja...”
Emil Cioran, “A chave de nossa resistência”, tradução de José Thomaz Brum.


Facção Central, "Vida baixa"


Facção Central, "Roube quem tem"

Que fazer?
( ) inércia
( ) homicídio
( ) suicídio
( ) "terrorismo"
( ) n(a).d.a.

Bar, Uísque e a Longa Duração.


Faz tempo que não executo um exercício sincero de escrita. Um que seja mais do que palavras jogadas diretas da mente para a tela, que exija um esforço, uma briga interna. A escolha lenta de palavras para exprimir uma idéia. Aproveitarei esse momento para fazê-lo e me perdoem se eu me alongar muito ou ser muito despropositado. Meu objetivo é analisar o desenho acima e refletir um pouco de teoria histórica, mas confesso de antemão, que não sei aonde chegar!

Fiz o desenho acima dentro da seguinte proposta: "Represente o Futuro da maneira que quiser como quiser!". Minha primeira idéia foi simplesmente desenhar uma cidade futurista. Mas fugi dela, pois não tenho confianças técnicas, nem criativas para tal. Decidi desenhar então uma história em quadrinho de uma página. Uma idéia simples: um grupo de amigos no bar, tomando umas cervejas. Nada futurista até então. Só o último quadro o seria, quando um personagem olhasse pela janela e visse a cidade em panorâmica. Mas logo mudei de idéia de novo, quando, depressivo e sozinho ouvia Satriani. Então a imagem de um homem solitário no bar, enchendo a cara de Uísque me veio a mente. Mantive a idéia de um cenário futurista só no último quadro. Todo o plano estava pronto para desenhar, quando resolvi tacar uma pitada de sal, e escrevi essa última frase, dita ao personagem principal: "Mas nós vencemos!". Não quero entrar muito no assunto de como isso me veio a mente, mas aconteceu, e eu achei genial.

Basicamente a história toda se apresenta em dois tempos: o primeiro é o instante, o tempo de uma música. No caso, Memories tem apenas quatro minutos, na versão de estúdio pelo menos. E, por ser breve, pega justamente um momento de paixão, uma pequena dimensão de uma ilusão, de um sonho, de uma conquista. Um momento ambíguo, pois triste, para o narrador, que se lembra de algo ocorrido no passado, a perda de alguma mulher, talvez uma filha, talvez uma esposa. Porém, é um momento feliz, pelo menos para as pessoas que estão ali, vivendo aquele tempo. Mesmo a frase final é positiva, e pode remeter a idéia daqueles dois personagens com fala serem médicos e, bem naquele dia, terem encontrado a cura para alguma doença, que até então era incurável. A mesma doença que levou embora a vida da mulher.

Mas o sentido desse instante, em grande medida, só se revela em maior profundidade quando um período maior de tempo surge. E, o que faz isso na história é justamente o último quadro. Pois, até então, a história poderia ser interpretada como uma cena qualquer acontecendo em algum barzinho contemporâneo qualquer, um simples evento cotidiano. A duração mais longa permite pensar em outros aspectos. Mas, acredito que é errado falar em Longa Duração. Pelo menos naquela história quase imóvel que Braudel defendeu com tanto empenho. Isso, porque de certo ponto de vista, a cidade também está inserida numa realidade social maior, ou seja, as várias cidades que a cercam, o campo e a própria natureza. Mas, temos que concordar que, perto do brilho que é a vida do homem, ela se prolonga demoradamente, atravessando gerações. Um mesmo prédio pode ser presenciado por avô, pai, filho, neto,... Embora seu significado, seu símbolo social mude. Se pensarmos no mapa das ruas, é interessante como existe certa continuidade também. As ruas mudam, vão de ruas de terra, para paralelepipedos e, por fim, asfalto; mudam de sentido, ganham ou perdem sinalizações, semáforos, radares; mudam de nomes. Mas o desenho, as curvas e retas que traçam num mapa se mantém por longos períodos. Períodos maiores que nossas vidas, com certeza. Então, me remeto a essa temporalidade maior da cidade quando digo Longa Duração.

Também pretendo o tempo percorrido do presente, nossa atualidade, até o tempo em que se passa a história quando digo Longa Duração. Uma reflexão de continuidades. Nesse aspecto procurei ressaltar vários pontos: personagens com roupas que são similares as nossas; a relação social com o bar e as relações sociais dentro do bar; o uísque - e não sei se fui bem sucedido, mas no penúltimo quadro tentei fazer a garrafa de tal maneira que remetesse de imediato a uma de Black Label [Num pequeno paralelo, pois não colocarei notas de rodapé: ahh, o uísque! Não é essa magnifica bebida uma realidade de longa duração também?! Quantos anos são necessários para se produzir uma garrafa! E quanto anos uma marca chega a existir! Mas chega desse devaneio.]; a banda, e aqui ressalto os instrumentos e a música escolhida. Em grande parte, aonde quero chegar, é que existe um conjunto de experiências que se mantém, talvez até levado ao limite do argumento. Pois, enquanto instrumentos musicais se encaixam bem nessa idéia de continuidade, roupas já não são assim. Roupas, estilos de se vestir mudam com uma maior agilidade. Basta pegarmos filmes antigos, fotos, e perceberemos isso. Uma certa estranheza na maneira de se vestir. Não acho que essa estranheza seja tão radical a ponto de desvalorizar minha idéia no desenho. Simplesmente, o que quero dizer é que existem realidades sociais que permanecem, são elementos estáveis e, nesse ponto, sou até otimista (ou seria melhor dizer pessimista?), pois mostro um avanço com mudanças não muito radicais. Lógico que isso só em certo aspecto.

Num outro aspecto, a fala: "Hoje temos a cura", pode ser lida de duas maneiras: numa primeira, hoje é apenas sinonimo de na atualidade; numa segunda, hoje pode ser lido literalmente. E, nesse segundo caso, é interessante pensar que os únicos dois personagens com fala na história são médicos e acabaram de encontrar a cura para alguma doença incurável. É verossímil pensar, no caso em câncer. Se pensarmos no significado disso para a medicina é enorme. Esses personagens podem, muito bem, estar fazendo a história. Mas, até que ponto vai a consciência deles nesse processo? Até que pontos eles se vêem como heróis? A reação do personagem principal não é de alguém que vive uma descoberta revolucionária. É a de um indivíduo preso nas suas paixões e mágoas. Preso a memória do passado, talvez mais significativa aos seus avanços na pesquisa de uma cura do que a idéia de entrar para a história e salvar milhões.

O último quadro mostra mudanças estruturais importantes também, que alteram até mesmo a dinâmica da cidade. Confesso que exagerei no argumento. Queria desenhar uma cidade levemente futurista, mas, como minhas habilidades artísticas não me permitiriam,, com o risco de deixá-la parecendo uma cidade atual, resolvi chutar o balde e desenhei uma cidade que gritasse: "sou futurista!". Retornando a dinâmica da cidade, vemos carros voadores o que, por si só, já impõe uma nova relação com o transporte; prédios bizarros, um domo com um bosque,... Essas mudanças, implicam, em certa medida, uma longa passagem de tempo em relação ao presente. São mudanças importantes, com certeza, mas nisso reforço meu argumento das continuidades, dito acima. Vários aspectos de como nos relacionamos, como nos relacionamos, o que bebemos, o que vestimos se mantém.

Creio ter dito muito já. E confesso que me sinto como um tonto por escrever tanto sobre um desenho que eu mesmo fiz. Tentar interpretá-lo até o limite. Confesso que não me sinto satisfeito.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

[outro texto antigo na linha da desova]

Na minha terra cada esquina tem um altá com uma funerária anexa. Amores e ódios à primeira vista são ocorrências constantes, registradas nos livros da paróquia e da polícia. Recentemente passamos por um reforma ortográfica e uma cartilha foi entregue a cada casa. É uma edição linda: plastificada, em quatro tomos cilíndricos, folhas duplas e perfumados. As eleições são desmobilizadas e pouco representativas, mas são importantes: elegemos a cada ano filmes e livros que são dispensáveis. Uma pedra que cai, uma espada roubada, o tiro de canhão com moedas de ouro, a boa memória, um velho numa jaula, o veemente vilipêndio ou vitupério do vil porém vigoroso vagabundo que vaga com vigor pela via do vigilante vigário vadio, o amor à família, a morte dourada, o cérebro comido do menino confundido com um macaco: tudo já é pré-conhecido; um quarto sem janelas já desperta inúmeras referências literárias, cinematográficas, musicais, folclóricas, populares, históricas, oníricas, delirantes, excrecentes. Quando não encontramos algo a que se referir nos sentimos envergonhados e a vergonha, por sua vez, nos tira da inércia do vazio referencial em que caiu nossa cultura. E borracha nunca mais.

domingo, 6 de junho de 2010

Und bleiben wir zu zweit für alle Zeit


"Tudo o que acontece, acontece.
Tudo o que, ao acontecer,
faz com que outra coisa aconteça,
faz com que outra coisa aconteça.
Tudo o que, ao acontecer, faz com que ela mesma
aconteça de novo, acontece de novo.
Isso, contudo, não acontece necessariamente
em ordem cronológica."
Adams, Douglas. Praticamente Inofensiva. Editora Sextante, SP.

"Nosso destino dispõe de nós, mesmo quando ainda não o conhecemos, é o futuro que dita as regras do nosso hoje."
Nietzsche, Friedrich. Humano Demasiado Humano. Companhia de Bolso, SP, 2005, p.13

"Assim são os acontecimentos [como fogos de artifício] para além de seu clarão, a obscuridade permanece vitoriosa."
Braudel, Fernand. Escritos sobre a História. Editora Perspectiva, SP, 2a edição, 2009, p.23


Edit:
Reclamaram que o título tava em alemão e sei la o que. Aqui está a tradução:
Und bleiben wir zu zweit für alle Zeit = E permaneceremos juntos para todo tempo.

sábado, 5 de junho de 2010

[pelo fim da esperança]

[texto bem antigo que tinha no pc e resolvi desová-lo]


Acabou. O mundo cessou sua existência ali. Eu não podia distinguir nada. Estava com os olhos escancarados e não via nada. Meus olhos, nariz, boca e ouvidos ardiam no fogo do inferno. Eu sentia o fogo descer pela gola do pijama suado, abrindo caminho por minhas costas. Eu distinguia sons que pareciam ser os gritos dessa pessoa que me trouxe aqui, mas talvez fossem os meus. Esses instantes de dor duraram o quanto duraram. Não sei dizer.

...essa bolsa cheia de ácido que corrói suas paredes.
foi um acidente?
hum?
foi um acidente que causou essas deformações em vc?
....
desculpa, mas não sei se apenas me banhar com ácido, o ácido que for,
pode me matar..não vai só causar queimaduras?
a morte física é o ultimo acontecimento que estamos buscando hoje.
por isso a arma?
não está carregada, é só para o caso de ter que render alguém.
ah..mas...porque você quer me torturar?
você nao está calmo demais para alguém que acha que vai ser torturado?
.......
agora está melhor. Vamos lá. Temos pouco tempo até o couro
romper. Porque você tem tanta certeza de que está fazendo a coisa certa?
ahn?
é..é por isso que você está aqui. Porque suas crenças otimistas me enojam. Essa certeza que você sustenta, essa pretensão em cada ação, o ar de superioridade como se tivesse encontrado o caminho certo da humanidade, e que todo o resto de vermes está errado até o momento em que entender vocês!
nós quem?
vocês que acreditam no futuro. Que têm um plano para a humanidade. Que sabem o que fazer. Ah se todos fossem como vocês! Seria perfeito não? Eu sou o que? Um esgoto de recursos? Eu desperdiço alimentos porque não acredito e nunca vou acreditar na sua salvação? [aaaaaaaahh!! parecia uma agulha perfurando minha cabeca recém raspada] A bolsa está rompendo. Essa foi a primeira gota! Se você sabe o caminho da salvação da humanidade, deve ser fácil reduzir a fórmula ao destino de uma pessoa! Salve-se! [aaaaaaaaahh!]
você é louco? Eu não estou entendendo! aaaaaaaaah!
vamos! Salve-se! Daqui a pouco já não serão gotas!
Seu tempo está acabando!


Voltei a perceber o mundo a minha volta ao ouvir gritos que não podiam ser meus. "Nem sempre se pode ser deus!" A dor não passou, mas os sentidos voltavam. O cheiro de não sei o que, o gosto que doía.


Por quase um minuto você ficou só no mundo, só você e sua dor ocupando todos os seus sentidos, impedindo-te de sentir e comunicar-se com o mundo. Como funcionou para você? O que você encontrou lá dentro? Raiva de mim? Bem, eu lhe apresento a essência do humano: dor, desespero, desânimo, incapacidade. Os vermes não parecem tão nojentos agora não é? Passe essa idéia adiante. E fique longe de armas carregadas, a vida pode lhe parecer algo de pouco valor agora.

A dor do vazio de propósito da existência em si

Quando eu era criança eu tinha um problema. Esse problema é que sempre que eu enchia de água algum balde, ou algo assim, eu nunca sabia pra que lado fechar a torneira. Então tinha que arriscar. Acontecia, então, que sempre girava a torneira para o lado errado, ou seja, não o que deveria fechá-la, mas o que abria mais. Isso acontecia mesmo tendo sido eu quem havia aberto a torneira quando ela ainda estava fechada. Por alguma razão, eu não percebia que, ao girar do lado errado o volume de água aumentava. Minha mãe sempre diz que eu não percebia porque quando eu nasci caí do berço - acho que é mentira...- De qualquer modo, só me dava conta do erro quando chegava no final e a água continuava saindo. Tivesse eu caído ou não do berço, eu sabia que se a água ainda estivesse saindo quando chegasse o fim, era porque a torneira estava, de fato, aberta. Isso eu sabia, sempre foi assim, nunca soube as coisas por dedução - se bem que nem por repetição, apenas pela constatação empírica, continuamente devendo ser reatualizada. Mas a essa altura o balde geralmente já estava cheio até o fim e o excesso de água já estava caído pelo chão, e isso não tinha nehum problema.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

anton tchékhov

"Dias atrás mandei chamar a governanta dos meus filhos, Iúlia Vassílievna, ao meu gabinite. Precisávamos acertar as contas.
-- Sente-se, Iúlia Vassílievna! - eu disse. -- Vamos acertar nossas contas. A senhora provavelmente necessita de dinheiro, mas tem cerimônia demais para pedir... Vamos lá... Nós combinamos trinta rublos por mês...
-- Quarenta...
-- Não, trinta... Eu tenho aqui escrito... Eu sempre paguei trinta para as governantas... Então, a senhora ficou aqui dois meses...
-- Dois meses e cinco dias...
-- Dois meses exatos... Eu tenho aqui anotado. Portanto, a senhora tem a receber sessenta rublos... Temos que descontar nove domingos... pois a senhora não estudou com Kólia nos domingos, somente passearam... e houve ainda três feriados...
Iúlia Vassílievna ficou vermelha e começou a repuxar os babadinhos de sua roupa, mas não disse uma só palavra...
-- Três feriados... Consequentemente, vamos tirar doze rublos... Durante quatro dias Kólia ficou doente e não teve aulas... A senhora estudou só com Vária... Três dias a senhora teve dor de dente e minha esposa permitiu que a senhora não desse aula depois do almoço... Doze mais sete - dezenove. Subtraindo, restam... hum... 41 rublos. Certo?
O olho esquerdo de Iúlia Vassílievna ficou vermelho e cheio d'água. Seu queixo tremeu. Ela deu uma tossida nervosa, assoou o nariz, mas - nem uma palavra!
-- Na véspera de ano-novo a senhora quebrou uma xícara de chá e um pires. Vamos tirar dois rublos... A xícara custa mais do que isso, era herança de família, mas... deixa pra lá! Não vamos fazer questão disso! Adiante: devido à sua falta de atenção, Kólia subiu numa árvore e rasgou seu casaquinho. Vamos tirar dez... A arrumadeira, também devido à sua falta de atenção, roubou umas botinas de Vária. A senhora deveria cuidar de tudo. É para isso que recebe um salário. Então, vamos tirar mais cinco... No dia sete de janeiro a senhora pegou adiantado comigo dez rublos...
-- Eu não peguei! - sussurou Iúlia Vassílievna.
-- Mas eu tenho aqui anotado!
-- Então, está bem... Que seja.
-- De 41 vamos subtrair 27 - restam catorze.
Os dois olhos de Iúlia Vassílievna encheram-se de lágrimas... No seu belo e alongado narizinho apareceram gotas de suor. Pobre menina!
-- Eu só peguei uma vez - disse ela com voz trêmula. -- Peguei com a sua esposa três rublos... Não peguei mais...
-- É mesmo? Ora, mas isso não está anotado! Tirando três de catorze, sobram onze... Aqui está o seu dinheiro, caríssima! Três... três... três... um... um... Tenha a bondade de receber!
E lhe entreguei onze rublos... Ela pegou o dinheiro e com os dedinhos tremendo meteu-o no bolso.
-- Merci - sussurou ela.
Levantei-me de um salto e comecei a caminhar pelo gabinete. Estava indignado.
-- Merci por quê? - perguntei.
-- Pelo dinheiro...
-- Mas eu a roubei, com os diabos, eu a assaltei! Acabei de roubá-la! Por que merci?
-- Nos outros lugares eles não pagavam nada...
-- Não pagavam? Então não é de se estranhar! Eu estava brincando com a senhora, estava lhe dando uma lição cruel... Vou lhe pagar todos os oitenta rublos! Estão aqui preparados, neste envelope! Mas é possível ser assim tão pateta? Por que a senhora não protesta? Por que fica calada? Será que neste mundo é possível não ser atrevido? É possível ser tão palerma?
Ela deu um sorriso azedo e eu li no seu rosto: 'É possível!'.
Pedi desculpas pela cruel lição e, para sua grande surpresa, entreguei-lhe todos os oitenta rublos. Ela disse um merci tímido e saiu... Fiquei olhando quando ela se afastava e pensei: 'Como é fácil ser poderoso neste mundo!'.

19 de fevereiro de 1883"

Anton Tchékhov, "A Palerma", Tradução de Maria Aparecida Botelho Pereira Soares

terça-feira, 1 de junho de 2010

patologia

No diagnóstico uma confirmação, algo como "tudo está normal", mas não, não estava nem um pouco perto da normalidade, ou um ou outro, ou eu ou o resto, sem meio termo, algo estava deslocado. Saí correndo pela rua, penso ter atravessado prédios transparentes, em outros subi andares entre os quais não havia escadas, caixotes opacos e vazios e com um ar repugnante que não desgruda do meu olfato. Olhei para uma casa, ela derretia, escorria até meus pés suas partes, abajures, cortinas, janelas, lavatório, sofá, mesa de jantar, televisão, criança, cachorro, o diabo, todos disformes fizeram-me sorrir. Dobrei esquinas e mais esquinas de uma cidade desconhecida na qual vivi uma vida inteira, adentrei por becos de noites mal dormidas, defenestrei postes de luz na tentativa de iluminar algum caminho. Não sabia e continuo sem saber o que fazer. Deixo estar, deixo de ser.