sábado, 21 de dezembro de 2013

Tentativas

1- Sempre caminhamos, apesar de tudo, para o final da noite. Chegamos a uma mesa cheia de desconhecidos. Meus olhos já cheios de um desespero emancipado da consciência identificam imediatamente as mulheres; classificatoriamente separam as feias, as bonitas, as lésbicas, as comprometidas. Meu cérebro tem a partir disso a matéria para produzir devaneios de possibilidades cuja concretização, já de antemão, desconfio ser impossível. [o que segue, neste ponto, será talvez acrescentado em uma futura edição desse texto, conforme surjam da experiência, condições para lidar com isso]. Sobre a mesa havia bolo, brigadeiro, cerveja e frituras. Tudo se misturava no meu estômago e na minha mente.

2- Ela estava lá no chão, de baixo da árvore. A barriga explodia de gravidez. Eu dei do meu bolso dois reais, "só tenho isso, moça", "tá ótimo, moço", ela me disse.

3- Nós chegamos já no início da noite. Ela estava usando um vestido amarelo esverdiado muito curto.

4- A sensação de irrealidade vai se afirmando conforme passa o dia. O calor inacreditável transforma todo o ar que ocupa o quarto, num líquido muito denso no qual o ventilador ligado no talo provoca apenas ondas minúsculas de movimento.

5- Finalmente decidimos, em vez de descer, subir sobre a plataforma. Na parte de cima da plataforma, a luminosidade forte do sol e o verde da grama  que se estendia até o horizonte produziram no cérebro um alívio. Um alívio que durou apenas até que ficasse clara a visão de incontáveis túmulos dispostos sobre a grama.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Sim senhor!, 2008 (dirigido por Peyton Reed)

A capacidade para afirmar a vida diante do imenso e evidente despropósito da rotina e das frustrações cotidianas está colocada, neste filme, como um desafio que se torna possível a partir do compromisso esdrúxulo e sedutor de dizer sim a todas as propostas.

Obviamente, este motivo, dizer sim a todas as coisas, rende um filme, dado o estágio alcançado pela consciência generalizada de que as frustrações humanas e a sensação de falta de sentido na vida decorrem da negação dos impulsos e das resistências às oportunidades e ocasiões que aparecem mais ou menos aleatoriamente. Estas resistências têm como objetivo preservar estabilidades e estados de segurança que cada vez mais aparecem no cinema de humor-com-auto-ajuda, como modos de escravidão voluntária que só fazem atravancar o movimento natural das coisas, com isso, impedindo que os acontecimentos de uma vida sem protecionismos criem, espontaneamente, mais acontecimentos.

Obviamente que está aqui colocada uma afirmação da pensamento liberal como uma transposição plenamente adequável a vida dos indivíduos. Claro está, também, pelos próprios pressupostos do pensamento liberal, que se um conjunto de princípios aplica-se ao indivíduo – no qual subjaz a essência que define a verdade das coisas – ele se aplica também aos mais diversos níveis de associações entre indivíduos.

Dizer sim, portanto, significa estar aberto às possibilidades, livre de preconceitos e apegos tradicionais que bloqueiam as oportunidades de mudança e de aceitação das novidades. Essas novidades se mostram boas e estimulantes, fazem sentir-se vivo quem estava como morto. Mas não é tão simples, porque ao adotar seu compromisso de dizer sim, Carl percebe, e afirma categoricamente, que mesmo as coisas ruins podem produzir coisas boas. Está aberto, então a tudo, inclusive ao inesperado, ao inconsequente e ao doloroso, e isso gera, de um modo ou de outro, benefícios. Enquanto o mestre do grupo/seita de auto-ajuda que propaga o "dizer sim", não esclarece que o compromisso de dizer sim não precisa ser radicalmente posto em prática, as ocasiões de negação trazem punições como que governadas por uma força maior e transcendente que impede o retorno a negação. É esta força maior que impede de ceder ao medo, cuja disposição predominante é a negação, cujo resultado é a preservação de um estado letárgico que só pode levar a sucessivos fracassos e, consequentemente a um estado de frustração permanente.

Este momento de relativização do “dizer sim”, que ocorre já na segunda metade do filme, é decisivo para pontuar o sentido da afirmação da vida antes que chegue o momento do desfecho. É o momento em que se coloca, como implicação não explicita, a distinção entre afirmação da vida e autodestruição. É o momento em que se afirma, também, apesar de tudo, os princípios da responsabilidade, da maturidade e da honestidade. A honestidade está, sobretudo, no argumento de que as relações interpessoais, para terem valor dependem de avaliações conscientes e consequentes, que partam de uma reflexão interior. Deste modo, “dizer sim” para tudo torna, para Allison, o amor de Carl sem valor, uma vez que, ainda que na prática as coisas funcionem melhor que nunca, todas as suas atitudes foram tomadas baseadas no princípio fixo de “dizer sim”.

Ao espectador, as inspirações suscitadas ao longo do filme – “eu deveria dizer sim à vida!” – que vão aos poucos estimulando o fascínio por uma inconsequência improvável, sofrem, nesse momento uma redução de potência, que o traz de volta à realidade, no entanto de modo apenas a fazê-lo reconhecer a validade de disposições às quais ele já adere: responsabilidade, maturidade, previdência. “É preciso saber dizer não.” O princípio liberal não pode prescindir de um conjunto mínimo de forças organizadas para a manutenção da ordem, portanto. Essas forças apenas não podem ter a pretensão de controlar a totalidade das coisas, uma vez que isso coloca em risco a vitalidade natural segundo a qual oportunidades geram oportunidades.   

domingo, 10 de novembro de 2013

Bem, sempre postei textos aqui saídos só e somente da minha (perturbada) imaginação. Escrever o desconexo e tentar o mais aleatório possível num texto com alguns sentidos sempre me divertiu. Mas o problema é quando esse aleatório e desconexo acontece de fato na sua vida e vc não consegue dar um sentido a ele. Esse texto que vou escrever é uma tentativa de entender o que aconteceu (na verdade, está acontecendo ainda). Peço que façam um esforço de perdoar qualquer incompreensão decorrente desta escrita ainda abalada.

Num desses últimos dias de chuva estava indo ao trabalho pelo caminho usual: depois de saltar do ônibus, caminho umas quantas quadras descendo uma grande ladeira até o portão da escola, que dá pra ver lá de cima. Sempre, em cinco minutos eu chegava à escola, esperava alguém da secretaria ouvir o bendito interfone e abrir o portão. Nesse dia a chuva estava forte, ventava, estava frio. Desci do ônibus meio atrapalhado com o guarda-chuva e logo me pus a caminhar. Então resolvi ligar na escola avisando que estava chegando para que já abrissem o portão e eu não ficasse na chuva mais do que o necessário.

Do outro lado, a diretora (ou quem eu achei ser a diretora) respondeu: "vem tranquilo, o portão já está aberto" e desligou logo em seguida. Achei estranho porque ela sempre foi atenciosa e não desligaria o telefone daquela forma. Mas dei de ombros mentalmente. São tempos de correria burocrática na secretaria. Nesse momento, erguendo o olhar percebi q estava na rua errada. Talvez por ter a vista atrapalhada pelo guarda chuva se debatendo incontrolável com aquele vento, ou distraído pela ligação eu tenha virado na esquina errada. Ficando puto pelo desvio involuntário (o que me custaria uns minutos de atraso), me virei para trás tentando me localizar, tentando perceber como corrigir minha rota rotineira. Percebi que estava no topo de um morro. Eu não só havia caminhado pela rua errada, como não havia percebido que estava subindo uma ladeira, ao invés de descer.

Processando na mente o mapa das ruas ao redor, percebi que não seria possível eu estar numa rua paralela à da escola porque todas elas desciam em ladeiras quase íngremes. Uma rua que subisse para o ponto em que eu me encontrava era um contrassenso. A minha reação lógica (quando vou aprender que a lógica não funciona sempre) foi voltar pelo caminho q tinha seguido. Na minha cabeça eu tinha feito o caminho inverso: ao invés de descer a ladeira, eu a subi. Grande problema: descendo pelo caminho a rua fazia várias curvas, para a direita, para a esquerda e para a direita de novo. Era uma verdadeira serpente. E sem outras ruas que a cortassem. Como eu havia feito todo aquele caminho sem perceber?

Já preocupado com o fato de que meu atraso se traduziria em uma perda de aula, apressei o passo disposto a chegar logo ao fim da ladeira e retomar meu caminho à escola. Depois de uns minutos caminhando por uma rua totalmente desconhecida percebi que a chuva estava parando. Ergui a mão esquerda para fechar o guarda chuva e ESPANTO! Não tinha mais um guarda chuva nas minhas mãos. Meu punho direito estava erguido um pouco a minha frente segurando nada mais, nada menos que o próprio nada. Assustado, olhei para trás. A lógica ditava: eu devia tê-lo perdido num vento mais forte, e distraído com o caminho desconhecido não percebi. Olhar para trás foi pior. A rua estava seca, com um belo sol como se nunca houvesse caído uma linda gota de chuva naquele solo. A única água que insistia em tentar molhar o asfalto quente era a que caía das minhas roupas. Tocar a barra da blusa molhada com minhas incrédulas mãos foi um momento de preservação da sanidade. Depois vocês verão como isso foi importante. Bem, eu não estava louco. Havia chovido. Embora nenhum elemento do ambiente me permitisse afirmar isso, minha roupa estava molhada. Era suficiente, ou melhor, foi-me suficiente.

Estando parado no meio da rua não me restou outra ação a não ser refletir mais uma vez sobre como havia chegado ali. Lembrei-me nesse momento que no celular eu tinha um GPS pronto para uso a qualquer momento (ae porra, sabia que isso ia ser útil em algum momento). Abre celular, abre aplicativos, abre Google Maps. Localiza meu local. Zoom out no mapa pra ver que que tinha nas redondezas. Foi fácil, mais cinco metros eu chegaria à primeira esquina da rua (e eu já a via desde uns cinco minutos quando descia o que parecia ser o final da ladeirona) que me deixaria exatamente no portão da escola; aquele portão que me esperava aberto já há alguns minutos; talvez já o tivessem fechado.

Cheguei à escola e estavam todos assustados: "como o senhor chegou aqui, professor?". Não pude imaginar como sabiam das minhas desventuras. Respondi: "cheguei caminhando, oras. Meio perdido, mas cheguei". Isso com um sorriso amarelo no rosto. "Professor, não sorria! e nos leve de volta por onde vc veio" me disse a inspetora realmente assustada. Demorei alguns minutos para compreender a situação: estavam todos perdidos na escola. Alunos, professores, funcionários haviam chegado no horário para a primeira aula também num dia chuvoso. Ao perceberem muitas goteiras (mais do que o de comum) saíram das salas e perceberam o lindo dia de sol que fazia, mesmo que nas salas continuassem a cair, cada vez com mais intensidade, goteiras. Água jorrava do teto; chuvas torrenciais. Ao saírem da escola perceberam que estavam eu outra rua, em outro endereço e, alguns suspeitavam, em outra cidade. Chegaram a aventar a possibilidade de outra dimensão. Expliquei o que havia ocorrido comigo e mostrando as roupas molhadas a todos fui quase aclamado. "Nos leve de volta para o dia chuvoso! Onde a água vem do céu e não do teto! onde estamos perto de nossos familiares! Queremos voltar pra casa!". Prontamente abri o portão e liderei a horda rumo à ladeira serpenteante. Alguns caminhavam quietos, outros conversando baixinho, outros dando risadinhas nervosas. Numa das tantas curvas encontrei meu guarda-chuva em frangalhos. Ergui-o para todos verem que um dia de chuva, de chuva forte, existiu em algum lugar, em algum momento. Ovacionaram não a mim, mas ao símbolo da esperança. Poderíamos retomar nosso caminho animados pela certeza de vitória. Segurar o guarda-chuva novamente foi um erro. Desembarcamos na praia da Normandia. A areia saltava nos olhos a cada tiro alemão. Só tive tempo de sentir um projétil me atravessando a barriga e cair lamentando minha falha. Eu havia conduzido meu grupo pro caminho errado: subir a ladeira era o mais lógico. E a lógica não funciona sempre.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Baby Blue

1- Quantos Heisenbergs não existem por aí? O homem que, por medo, passa por cima de princípios, valores, ou qualquer outra coisa que chamamos de "cola da sociedade". Pra dormir tranquilo a noite, vale tudo. Não estamos mais em tempos de afirmação do valor alheio. Muito menos de heroísmos e machos-alfa. O egoísmo é coisa séria.

2- Fico feliz quando escuto um álbum que me surpreende verdadeiramente. Não tenho escutado nada antigo (leia-se 2012 pra trás) por uma resolução pessoal (cansei dos lugares-comuns). E nessa tenho escutado muita coisa questionável e também muita coisa boa, mas subestimada. "I'm With You" de 2011 do RHCP foi um momento good vibe da semana.

3- Vou emprestar um pouco de time pra esse futebol de SP, porque lá em Minas tá sobrando. Vou te contar, viu...

4- Dar aula é buscar um equilíbrio pessoal 12 vezes por semana, ou quanto for sua carga horária. Com todos os problemas (a curto, médio e longo prazo) que o sistema implica e nos quais está implicado, o papel do professor está (e é estar) em cheque. Bem, essa consciência não facilita em nada seu dia-a-dia.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Os Girassóis da Rússia, 1970 (Dirigido por Vittorio De Sica)




A guerra aparece como fator maior e externo que interrompe a continuidade desejada dos planos. No fim do filme Giovanna e Antônio sentem com toda a intensidade a condição irremediável a que chegaram. Ainda há amor entre eles e, no entanto, o tempo, ao fragmentar os planos concebidos quando se conheceram, colocou a cada um deles uma nova realidade, da qual o outro já não faz e não poderá de modo algum novamente fazer parte. Destaca-se o fato de já estarem ambos velhos, de modo que com isso fica reforçado argumento de que o tempo levou tudo e que a guerra produziu descaminhos completamente imprevisíveis que destruíram todas as possibilidades do romance ideal construído no início.

A partir do momento em que Antônio vai à guerra cria-se uma expectativa, de realização quase certa, de que ele ainda esteja vivo. Quando a expectativa é satisfeita, ao mesmo tempo revela-se que agora Antônio tinha uma esposa e uma filha na Rússia, o que começa, desde este momento, a criar a expectativa pela reconciliação com Giovanna, a qual não se satisfaz, para compor a sensação da fragmentação irrecuperável do relacionamento.

Quando eles se encontram pela última vez, coloca-se pela última vez a expectativa da reconciliação. Este último encontro coloca um novo elemento de angústia ao traçar a dimensão da fragmentação das coisas, uma vez que Giovanna, que agora também é casada e tem um filho, assim como Antônio, não irá superar a dor da impossibilidade de reconstituir este amor que no início apresentou-se como ideal.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Repetições

1- Lá fora tem muitas galinhas. Elas ficam ciscando o dia todo as sementinhas de grama que nascem em meio ao barro sujo da praça.
Os sacos de lixo eventualmente caem no chão e fazem espalhar pela rua os segredos mais íntimos (e já em putrefação) de toda a vizinhança, assim que os cachorros enfiam neles seus dentes famintos.
O papel higiênico cagado pela donzela mais bonita da rua estará lá delicadamente exposto ao sol pela manhã.

2- Conforme os dias iam passando o gesto de olhar rapidamente para o sapo morto, na intenção de evitar pisá-lo, ia ganhando novos interesses. Por exemplo, como era possível que os cachorros da rua e os velhos que varrem para longe de suas calçadas as sujeiras todas, deixassem ali, no mesmo lugar, por dias e dias o sapo morto.
Depois notei que, de fato, jamais houve necessidade alguma de que os velhos e os cachorros interrompessem suas diversões cotidianas com a preocupação de remover o sapo da vista dos passantes. Aconteceu que, naturalmente, ao longo do tempo, as rodas de um ou outro carro acabavam passando, apesar do espaço todo da rua, bem por cima do espaço ocupado pelo sapo. Agora ele está lá, esmagado e preto. Ainda mantém a forma de sapo, mas está colado ao chão, como se fosse um desenho de um sapo, e aos poucos vai se tornando parte do asfalto.

3- O despertador explodiu como uma bomba às 7:26 da manhã. Meu corpo obedece a um reflexo rápido e inexplicável e minha mão interrompe prontamente a musiquinha desastrosa que todos os dias exige o retorno à realidade duvidosa do mundo. Permaneço na cama me perguntando com qual velocidade os minutos estão passando enquanto me decido se devo ou não me levantar. Pego novamente o despertador depositado com ódio ao lado da cama. São 7:40. É sempre assim. Saio da cama. Alguma coisa está errada, eu percebo e não tenho como negar, agora já estou habituado a reconhecer os sinais. É preciso evitar que o mal se espalhe.

sábado, 10 de agosto de 2013

Situações

1- Às vezes parece que falta muito pouco, mas justamente esse pouco é insuperável.

2- Os assentos especiais para grávidas, velhos, e deficientes nos bancos e nos ônibus, são indícios que revelam o que é a vida moderna. Obviamente que a partir do momento em que se vive em uma grande cidade é preciso obrigar as pessoas a serem gentis.
Mas isso nem é uma questão de gentileza, na verdade. Na verdade é inevitável que seja assim. Ninguém é capaz de dizer bom dia a todos com quem se pode cruzar pelas ruas e dentro dos supermercados. Os atendentes dos caixas dos supermercados, por sua vez, precisam ser obrigados a olha na cara o cliente e sorrindo, dizer-lhe bom dia. O padrão de atendimento é capaz de tornar mais agradável a manhã dos clientes dos supermercados quando um gerente de loja tem a função de garantir a manutenção da simpatia artificial que rompe com a inclinação natural do homem urbano à indiferença.

3- Eu ia subindo sozinho aquela rua inacreditavelmente íngreme pela qual resolvi me conduzir no meio da noite.
A dor começou leve e depois foi logo aumentando sem nenhuma consideração ao meu arrependimento e aos meus apelos silenciosos a entidades imaginárias genéricas, de que iria com certeza, daqui em diante, me comportar melhor. Sentia meu estômago sendo rasgado novamente. Pela boca já iam me escapando arrotos que me davam, pelo sabor que tinham, a certeza de que se havia azedado dentro da minha barriga todo o peixe com fritas e arroz e suco engolidos no almoço.

4- Um homem mais velho de cabelos grisalhos bem arrumados. Roupa social e um ar de quem, após longo tempo dedicado a ser reconhecido como responsável e competente, tornou-se também acostumado a dar ordens. Neste momento, no entanto, com a mesma disciplina que "o fez chegar onde chegou", ele ouve um almofadinha, pelo menos 20 anos mais jovem, que lhe explica a maneira correta de dar aos clientes a senha de atendimento comum ou preferencial. Será essa a função que executará daqui em diante. O salário será mais baixo, a autoridade será nenhuma, a prática profissional de anos de experiência é agora completamente inútil. Mas é preciso trabalhar e ocupar a cabeça.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Luris e as Duas Hospedeiras

           Conta-se que, certa vez, Luris viajava até Volmuria para eliminar um demônio que aterrorizava os habitantes dali. Nessa época, a cidade ainda não era o grande porto que viria a se tornar se não fosse pela intervenção do Senhor da Luz, era apenas um pequeno posto comercial.
No caminho, Luris passou por uma vila. Como era noite, ele já viajava a dias e via que em breve começaria a chover, ele resolveu pedir em uma casa se poderia passar a noite. Quem atendeu era uma mulher ranzinza com um olhar que parecia odiar a todos e até si mesma. Ao ver aquele homem estranho a sua porta não quis ajudá-lo.
- Mas eu aceito até dormir no seu estábulo. Só quero um teto para me proteger da chuva.
- Não tenho vaga e você assustaria os meus animais, que precisam estar bem relaxados para o trabalho duro de amanhã. Vá na casa da vizinha de baixo, ela talvez te aceite. – E fechou a porta na cara do estranho, sem saber que ele era o Grande Senhor.
Luris não se chateou. Para ele era um direito dos mortais de duvidarem das intenções daqueles que batem na sua porta. Ele seguiu a estada mais um pouco até chegar em outra casa. Bateu na porta e foi atendido por outra senhora:
- Se você realmente não se importa de dormir no estábulo, eu não tenho problemas. E eu acabei de fazer uma sopa, se quiser um pouco.
Luris aceitou grato a comida e o lugar para dormir. Naquela noite, se abrigou no estábulo e dormiu no feno. Acordou logo cedo, antes que todos, para seguir sua viagem. A mulher, sem saber que seu hóspede não se encontrava mais ali, foi lhe acordar, pois precisava retirar os animais para o trabalho no campo. Eis sua surpresa ao ver que, o feno onde nosso senhor dormiu, havia se tornado ouro. Ela mal pode acreditar nos seus olhos. Estava rica.
Mal fez essa descoberta, sua vizinha chegou para fofocar e lhe contou sobre o estranho que havia passado na sua casa tarde da noite e como ele teve a coragem de pedir um lugar para dormir. A hospedeira do senhor Luris lhe disse que esse mesmo homem veio e que ele devia ser o próprio Luris, pois o lugar em que ele dormiu havia virado de ouro. A primeira não acreditaria, se ela não tivesse visto o feno por ela mesmo.
A hospedeira então, pegou todo esse ouro e investiu na sua fazenda. Comprou animais, aumentou suas terras e sua plantação e começou a trabalhar que nem louca para dar conta dos seus novos bens. Enquanto isso, a mulher que havia recusado Luris se roía de inveja e falava mal da vizinha pelas costas. Estava indignada como ela era burra e havia transformado todo aquele ouro em mais trabalho. Ela, se tivesse toda essa riqueza, teria vivido uma vida de rainha.
Um mês se passou e Luris voltava pelo mesmo caminho após ter eliminado o demônio que atazanava Volmuria. As pessoas do local lhe ofereceram várias recompensas pelo seu feito, as quais ele agradecidamente refutou, exceto por umas pequenas doações que ele usaria para pagar o seu caminho de volta. E foi assim que, ele se encontrou novamente na vila do começo de nossa história, mas, dessa vez, ele foi até uma estalajem aonde pagou por comida e pretendia pagar por um quarto.
Estava sentado no seu canto, sem chamar atenção, pois ninguém sabia que ele era o Senhor da Luz, quando a primeira mulher o viu ali. Ela correu até ele, pois não queria que ele dormisse em outro lugar a não ser na sua casa.
- Ó senhor. Você por aqui de novo? Desculpe-me aquela noite, estava de mau humor e não fiz o bem como devia em ajudá-lo. Já tem um lugar para ficar?
- Pagarei por um quarto aqui hoje a noite.
- Não, eu faço questão que você durma em casa, assim não precisará gastar um tostão com acomodações.
Ela tanto insistiu que nosso Senhor aceitou sua oferta, mas fez questão de dormir no estábulo, embora ela tenha lhe oferecido uma cama dentro de sua casa. Luris passou a noite ali e, antes que qualquer outra pessoa acordasse, ele já estava de pé e seguiu viagem de volta a Valwick.
A mulher acordou o mais cedo que pode, mas não mais cedo que Luris, e correu para o local em que o Senhor havia passado a noite. Ela pulou de alegria ao ver todo aquele feno transformado em ouro, como o da sua vizinha. Com tanto ouro, ela parou de trabalhar, pois podia comprar tudo o que precisava. Começou a comprar várias jóias e os vestidos mais caros.
Alguns bandidos, sabendo dos boatos das duas vizinhas que ficaram misteriosamente ricas se dirigiram até o local para se enriquecerem. Eles invadiram a casa da primeira mulher e levaram tudo o que ela tinha. Não deixaram nenhuma das suas riquezas recém-adquiridas com ela e nem seu ouro. Foram então para a segunda casa e levaram o que encontraram de riquezas, que foi pouco, pois a segunda mulher havia investido seu ouro em animais e plantações, e esses bandidos não estavam interessados nem em um e nem no outro.

Assim, chegou o inverno e a época da colheita. A segunda mulher ficou rica com tanto que colheu. A primeira se afundou em dívidas e logo perdeu tudo e foi forçado a pedir ajuda, mas como não gostavam muito dela, sempre lhe fechavam a porta na cara. Assim, ela morreu de frio numa das noites de inverno.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Moça com brinco de pérola, 2003 (dirigido por Peter Webber)

Sobretudo é um filme educativo. Exagera aspectos do cotidiano para evidenciar diferenças do passado. A História é tratada como um conjunto de anedotas.
Como discussão que serve de pretexto para a exposição incessante do pitoresco está colocada, também do ponto de vista da curiosidade, as relações entre ricos e pobres, entre os hábitos de uma casa burguesa e as tarefas a serem realizadas pelos criados. Enfatiza-se os maus tratos à criada Griet pela esposa de Vermeer e, como contraponto a isso, destaca-se uma sensibilidade particular na percepção artística de Griet, que causa olhares de surpresa à esposa e à mãe da esposa de Vermeer, quando mesmo sendo uma simples criada, se preocupa com as possíveis alterações na luminosidade que poderia causar a limpeza das janelas do estúdio de Vermeer.

Griet, apesar de sua simplicidade, entende a arte de Vermeer. Esta contradição é reforçada pela completa ignorância artística da esposa. A percepção artística de Griet é explicada, em partes por gravuras desenhadas por seu pai, que ela carrega consigo como amuleto. Mas Griet também tem uma disposição inata para o entendimento da arte. Este atributo é evidenciado pela cena em que Vermeer explica a ela sobre a combinação das cores, fazendo-a olhar para as nuvens no céu, no que ela imediatamente compreende o ensinamento do artista sobre a complexidade da combinação das cores. À medida que se define a oposição entre Griet e a esposa, a percepção artística torna-se o elemento principal da oposição como fator que motiva a disputa pelo afeto de Vermeer. O surgimento de atração entre Vermeer e Griet é óbvio por questões da indústria cultural, os atores que os interpretam são Colin Firth e Scarlett Johanson. No que diz respeito às questões internas do filme, essa atração é fora de propósito e fica deslocada na discussão a respeito da sexualidade de Griet, que pelo modo como é colocada, dificilmente permite uma interpretação razoável. Griet é de família puritana, e desde o começo é marcada a diferença em relação à família católica de Vermeer, onde ela foi trabalhar ao sair da casa de seus pais. O choque quanto a essa diferença é, marcadamente sexual, expresso pelo abandono gradual de seus recatos puritanos que, por um lado, cedem aos apelos artísticos de Vermeer ao usá-la como modelo, e por outro, pela realização sexual concreta com o filho do açougueiro.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

peter sloterdijk


Trechos retirados de
Crítica da razão cínica [1983]. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.

1.4.5 – Sentimento vital à meia-luz

O fato de o Esclarecimento desmentir a si mesmo é um resultado da história mais recente, que triturou todas as belas ilusões de um “outro racional”. Irremediavelmente, o Esclarecimento precisa enlouquecer junto ao princípio da esquerda, na medida em que esse princípio é na realidade representado por sistemas despóticos. É constitutivo do Esclarecimento preferir o princípio da liberdade ao princípio da igualdade. Ele não pode se colocar cegamente diante do fato de que o socialismo, ao qual pertencem as suas simpatias, quase ter perdido a sua inocência, exatamente como aquilo contra o que ele se dirigia originariamente. O “socialismo realmente existente”, tal como o vemos hoje [início da década de 1980], torna de certa forma supérflua a questão acerca de esquerda e direita. Pois ele se distingue com certeza do capitalismo em formas passíveis de serem reconhecidas, que podem ter suas vantagens e desvantagens. Mas compartilha com o capitalismo, assim como toda e qualquer ordem político-econômica, a escrita à mão da dura realidade, que nunca pode ser por si mesma de direita ou de esquerda, mas, mesmo sendo feita por nós, é sempre como é. Só a moral pode assumir uma posição à direita ou à esquerda das realidades. A realidade, até onde nos diz respeito, nos é bem-vinda ou odiosa, suportável ou insuportável. E, em face do dado, a consciência tem apenas a escolha de conhecê-lo ou não. É isso que, de maneira suficientemente primitiva, deixa clara a crítica da razão cínica. Não primitiva continua sendo a perspectiva de compreender, a partir daqui, o sentido da desmoralização atual. Só a moral é suscetível à desmoralização, só em relação a ilusões é possível esperar o despertar. A questão é saber se nós não nos aproximamos da verdade na desmoralização.

Nós adentramos de fato o espaço do crepúsculo de uma desorientação existencial peculiar. O sentimento vital da inteligência atual é o sentimento de pessoas que não conseguem apreender a moral da não moral, porque, então, tudo se tornaria “simples demais”. Quanto a isso, nenhum homem, a partir de seu interior, sabe como é que tudo deve prosseguir.

Na meia-luz cínica de um Esclarecimento incrédulo, emerge um sentimento peculiar de atemporalidade: nervoso, perplexo, empreendedor e desanimado, preso no puro espaço intermediário, alienado da história, despejado da alegria do futuro. O amanhã assume o caráter duplo de uma insignificância e de uma catástrofe provável; entre uma coisa e outra, transcorre uma pequena esperança de travessia. O passado se transforma ou em uma criança mimada academicamente, ou é privatizado juntamente com a cultura e a história e concentrado no mercado de pulgas em meio às miniaturas curiosas de tudo o que um dia existiu. Em meio a tudo isso, o que há de mais interessante são os currículos de antigamente e os reis desaparecidos – dentre estes em particular os faraós, com cuja vida, eterna como uma morte confortável, nós podemos nos identificar.

Contra o princípio-esperança, apresenta-se o princípio da vida aqui e agora. No caminho para o trabalho cantarola-se “não espere por tempos melhores” ou “há dias em que eu queria ser meu cachorro”. Nos bares corporativos, à noite, o olhar passa por pôsteres, nos quais se encontra escrito: O futuro foi cancelado por motivo da falta de interesse. Ao lado, tem-se: Nós somos as pessoas das quais nossos pais sempre nos advertiram. O sentimento temporal tardio e cínico é o sentimento da trip e do cotidiano cinzento, estendido entre um realismo aborrecido e sonhos diurnos incrédulos, presente e ausente, cool ou enrolado, com os pés no chão ou muito doido, de maneira totalmente aleatória. Com maior razão, espera-se por algo que corresponderia ao sentimento de dias melhores, espera-se que algo precise acontecer. E não poucos gostariam de acrescentar: não importa o quê. Sente-se de maneira catastrofal e catastrofílica, sente-se de modo agridoce e privado, quando ainda se consegue se manter livre da proximidade do que há de mais terrível. No entanto, bons exemplos não são fáceis de serem imitados, porque cada caso é outro caso, em particular o próprio. As pessoas ainda se presenteiam com livros e, quando o Papa vem para a Alemanha, se espantam um pouco que ainda haja efetivamente um Papa. Fazem seu trabalho e dizem para si mesmas que seria melhor se enfiar de cabeça no trabalho. Vive-se de um dia para o outro, de férias em férias, de jornais televisivos para jornais televisivos, de um problema para outro, de um orgasmo para outro, em turbulências privadas e em histórias de médio prazo, contraído, relaxado. Por alguns, a gente se sente “tocado”. Na maioria das vezes, porém, tudo é indiferente.

Os jornais escrevem que é preciso se dispor para lutar novamente mais pela sobrevivência, que é preciso apertar ainda mais o cinto, abafar as requisições; e os ecologistas dizem o mesmo. Sociedade de direito, [uma balela]. A gente faz doações em minutos de fraqueza para a Eritreia ou para um navio que segue para o Vietnã, mas não viajamos para lá. A gente gostaria ainda de ver muitos lugares do mundo e, em geral, “viver um monte de coisas”. A gente se pergunta o que fazer em seguida e como as coisas podem continuar assim. No folhetim do tempo, os críticos culturais discutem o modo correto de ser pessimista. Um imigrante do Leste diz para outro: já há muito vejo as coisas tão negras quanto tu as vês. Apesar de tudo isso e de tudo aquilo. Onde chegaríamos se todos se desesperassem? E o outro diz: o tempo do “apesar disso” passou.

Uns tentam há mais tempo concluir sua psicanálise, enquanto os outros se perguntam há muito tempo se podem por ainda mais tempo se responsabilizar perante si mesmos por não fazerem psicanálise alguma; mas também se precisa pensar no fato de que fazer psicanálise custa caro e avaliar quanto o seguro de saúde paga; e se depois disso ainda se pode agir como se acreditava no meio da miséria que se deveria poder; por outro lado, não se estava certo antes se se queria continuar como se estava até aqui. Ah, sim, se evidenciou, além disso, que cozinhar bem não é nenhuma traição e que essa história estúpida em relação ao consumo e ao dirigir carros não é de maneira alguma tal como se pensa...

Em um tal tempo dos segredos abertos, onde uma pequena economia bacana entalha o pensamento, onde a assim chamada sociedade se dissolve em cem mil cordões de planejamento e improvisação que ignoram uns aos outros, mas que estão ligados uns aos outros por meio de absurdidades de todo tipo – em tal tempo, não pode fazer mal ao Esclarecimento, ou ao que restou dele, meditar sobre suas bases. Para tais meditações, existem há muito tempo exemplos impressionantes. “A esfera pública” foi durante muito tempo um dos temas mais vigorosos do Esclarecimento, renovado, sobretudo em relação com a palavra “experiência”, e, mais ainda, com a expressão “contextos vitais”, e soava tão agradável ao ser escrita porque se tinha aí a sensação de que, em algum lugar, a vida formaria contextos. E um contexto é naturalmente algo assim como uma promessa de sentido.

Entrementes, contudo, a temporada de caça intelectual ao “contexto vital” caiu em desuso, porque ela representa um ser no mínimo tão raro quanto o Wolpertinger, o coelho que vive na Baviera com o chifre de veado e que os bávaros brincalhões costumavam caçar, quando os veranistas prussianos se mostravam espertos demais e mereciam uma lição. Mas desde o momento em que os prussianos passaram a ficar de fora e a formar por trás de seus dispositivos de autodisparo o seu próprio “conforto vital”, a caça ao Wolpertinger, o Esclarecimento especial para prussianos espertos, foi deixado para trás do mesmo modo que o Esclarecimento em geral e o Esclarecimento para não prussianos.

O que fazer então? [...] impertinência [insolência] [Frechheit].

segunda-feira, 8 de julho de 2013

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Tróia, 2004 (dirigido por Wolfgang Petersen)


Estão bem assinaladas as questões que devem vigorar como aspectos fundantes da civilização ocidental.

A motivação de Aquiles, que existe como revelação e como destino, ou seja, a busca pela glória imortal tendo como preço a condição de não retornar à Grécia, constitui o fundamento de uma consciência muito forte de sua individualidade. Os propósitos de Agamenon e Menelau, como a união dos gregos, pouco lhe importam. Essa busca de satisfações individualistas está, em Aquiles, articulada com um sentimento intenso de eternidade fundado no valor da perpetuação pela memória e da concepção de que a memória preserva os grandes nomes. Existe, contudo uma tensão nesta concepção, uma vez que Aquiles, ao considerar-se um guerreiro, não pode admitir as pretensões de Agamenon, aliás baseadas nas mesmas concepções e valores de perpetuação da memória, de ter seu nome imortalizado como conquistador de Tróia. Contra os argumentos de Aquiles, que quer sustentar que são os soldados que, de fato farão a conquista, Agamenon afirma categoricamente que é o nome dos reis que são lembrados pela posteridade. Neste momento, Ulisses aconselha a Aquiles que não dê ouvidos, que na guerra os jovens morrem e os velhos falam.

Ainda contribuem com a formação do caráter de Aquiles e de seu individualismo, reflexões cujo centro é o desapego da vida e a convicção resignada de que todos os homens morrem, hoje ou depois de muitos anos, não há diferença.

O individualismo ainda é central, mesmo na própria causa da guerra, o amor entre Páris e Helena. No entanto, aí há um conflito, igualmente colocado como fundante da civilização ocidental, os limites entre os desejos individuais, movidos pelos sentimentos, e os interesses coletivos. Os interesses coletivos, além do mais estão baseados no valor da tradição das muralhas de Tróia, que nunca foram ultrapassadas e da espada da realeza troiana, que há muitas gerações garante as conquistas da cidade e que deve continuar a garantir sua existência e sua grandeza. O individualismo de Páris é afetado por sua extrema fragilidade, e Páris sente-se desonrado por ela, como também sente a responsabilidade de ter causado a guerra. É justamente Páris, o mais frágil dos homens, que matará Aquiles, o mais próximo da invencibilidade. Isso porque Aquiles, em Tróia, descobriu também suas próprias fragilidades ao apaixonar-se pela prima de Páris. Ao salvá-la, Aquiles ficou vulnerável às flechas de Páris. De todo modo, mesmo antes disso, ela, uma sacerdotisa de Apolo – com a recorrente personalidade forte das mulheres que, no cinema hollywoodiano, amolecem os homens rudes – mostra a Aquiles a fraqueza que há em ter como única qualidade a capacidade de matar. Nisso ressalta o amor como qualidade, o que legitima também a guerra causada por Páris – inclusive reforçando as palavras do rei Príamo a respeito de fazer guerra por amor, em vez de fazer pelo poder – apesar da sobreposição das disposições individuais sobre o interesse coletivo.

Outro personagem central é Heitor, que apresenta complicações importantes que se articulam às questões já apresentadas nas caracterizações dos demais personagens. Sobretudo, Heitor apresenta recorrentemente objeções aos presságios dos deuses. Aquiles também faz isso em alguns momentos – inclusive corta a cabeça da estátua e profana o templo de Apolo – mas por orgulho, certamente. Em Heitor, parece despontar uma visão laica e materialista, que aposta exclusivamente na força dos exércitos e quer desconsiderar as decisões baseadas nos juízos dos leitores de presságios. Nas vezes em que isso acontece, Heitor sempre é repreendido pelo rei Príamo, que insiste em confiar nos presságios e, a todo momento, toma, por isso, decisões erradas. De modo geral é difícil de tomar um partido entre gregos e troianos. A simpatia por ambos os lados é inclusive resultante da preocupação central com a perpetuação da memória dos grandes homens que colocaram com seus valores individuais as bases da civilização ocidental. A conclusão é explicitada nas palavras finais do narrador, Ulisses, confirmando a honra de ter vivido no tempo de Heitor e de Aquiles, cuja glória os tornou miticamente eternos.

sábado, 8 de junho de 2013

Eu e você, 2012 (dirigido por Bernardo Bertolucci)


O amor entre irmãos aparece, nas condições que estão colocadas, como uma impossibilidade que a ordem de apresentação das coisas parciais que o representam desmente aos poucos. Eles são filhos de mães diferentes e é este o centro de seus aspectos problemáticos mais evidentes. As mães diferentes e, no caso de Olívia, um ressentimento em relação ao pai, que a abandonou com sua mãe, para viver com Sonia, com quem teve outro filho, Lorenzo. Este pai não aparece em momento algum.

As consequências aparecem antes dos atos que as desencadearam. Isso, de forma não tão fragmentada. As coisas, na verdade, se explicam aos poucos. As palavras do psicólogo a Lorenzo na primeira vez em que ele aparece, indicam que ele seja um adolescente problemático, como também o fato em si de estar diante de um psicólogo. As palavras do psicólogo, não é possível saber, no entanto, num primeiro momento, a que especificamente se referem. O personagem de Lorenzo vai se caracterizando pela articulação desta primeira impressão com aspectos que se podem deduzir das atitudes que se seguem. Ele visita a loja de animais exóticos, compra coca-cola e bobagens para comer, tudo em número de sete unidades. Fica claro, conforme as coisas acontecem, que isso foi uma preparação para a execução de seu plano de passar alguns dias no porão da casa em vez de ir para a viagem com a escola. Lorenzo é organizado ao extremo. Essa organização soma-se à sua inclinação para o isolamento que, mais que isso, é um esconder-se da vida. É um narcisista, como dizem dele seus pais num sonho. Olívia diz que ele precisa parar de se esconder e começar a viver.

Já no porão, pouco tempo depois aparece Olívia, sua meia irmã, numa situação improvável e providencial para o desdobramento da trama. Neste momento ainda não se sabe que são irmãos. Lorenzo se esconde em meio às tralhas do porão, Olívia o encontra. Eles têm uma discussão meio impessoal, que não permite saber da existência de laços entre eles, até que Olívia diz algo como “o dinheiro que seu pai me deu” e, então “ele é seu pai também!” responde Lorenzo. “Mas sua mãe roubou minhas coisas”, e por dizer isso Olívia ganha um empurrão de Lorenzo, “não fala assim da minha mãe!” São meio irmãos. Olívia vai embora e Lorenzo sente o prazer de estar novamente sozinho, lendo o livro sobre o vampiro Lestat. Ele lê de cabeça para baixo, até que Olívia diz que vai acabar, desse jeito, acumulando sangue na cabeça.

Olívia volta no meio da noite e Lorenzo é obrigado a abrir para evitar que seus gritos revelem a presença dele no porão. Olívia era viciada em heroína e estava, neste momento, passando por uma crise de abstinência. Ao cuidar de Olívia Lorenzo desenvolve maturidade, uma possibilidade de saída de seu narcisismo. Os irmãos começam a se aproximar, mas o amor de irmãos continua improvável pela expectativa de que os sinais da forma como acontece essa aproximação entre meio irmãos confirmem a aparência de que o que está para acontecer é a atração sexual entre eles, ainda mais que conseguem álcool durante a noite e Olívia, mais velha, convence o irmão a beber também um pouco. Essas expectativas são alimentadas pelo fato das fragilidades afetivas aparentes de Lorenzo, pelos preconceitos desencadeados pela personalidade de Olívia, dada a drogas e às artes e pela ideia formada sobre as escolhas estéticas recorrentes de Bertolucci. Além disso, o primeiro diálogo de Lorenzo com a mãe indica uma disposição nesse sentido. Eles estavam num restaurante e Lorenzo diz “você acha que as pessoas podem pensar que somos um casal?” A mãe responde que é claro que não, que veriam que são mãe e filho. Lorenzo propõe à mãe uma hipótese sobre o que aconteceria se todas as pessoas do mundo morressem e sobrassem apenas os dois. A mãe fica desconcertada, e Lorenzo diz que seria uma questão de sobrevivência para a humanidade...

Mas a ligação sexual entre Olivia e Lorenzo não acontece. Olívia quer se libertar da heroína e Lorenzo descobre possibilidades de viver fora de seu isolamento. O apoio que encontram um no outro tem como conclusão o amor inesperado entre irmãos, para além dos ressentimentos gerados pelas divisões familiares e das tensões sexuais incestuosas que se insinuam.