quinta-feira, 15 de maio de 2014

Um lampejo de: (o) afirmar a vida como se tudo estivesse resolvido

1- "Na ocasião eu me encafuei num canto do meu quarto como uma aranha. Tu estiveste no meu cubículo e o viste... E sabes, Sônia, que os tetos baixos, e os quartos apertados oprimem a alma e a inteligência? Oh como eu odiava aquele cubículo! Mas ainda assim não queria sair dele." - Dostoiévski, Crime e castigo

2- De repente eu vi ela chegando. Claro, meu corpo estremeceu, mas agora, logo percebi, algo de novo estava instalado no meu ser. Bastou respirar, nem foi preciso que o ar enchesse muito os pulmões, olhar de novo, sorrir e acenar. Minha expressão pode se conter, minhas mãos, ainda que geladas, rapidamente pararam de tremer. Um beijo no rosto, de canto de boca, já está bom. Não mais que umas dez palavras, no total, rápidas e vazias. Nos deixamos. Ufa... vitória! Já não sou, em alguma medida, mais o mesmo.

3- Nem sempre é possível evitar ser visto como maníaco. É somente com o passar do tempo que certas coisas vão para onde se deseja que elas estejam. Algumas vezes é tarde para redimir os erros ou as impotências do passado. Agora, aquelas situações completamente desastrosas que continuam na memória, parecem de uma simplicidade inacreditável.

4-


5- No começo eu escrevia coisas engraçadas. Hoje parece que não há nada que possa justificar isso, não porque a vida tenha se tornado pior ou tenha diminuído minha capacidade para suportá-la. O que acontece é que fazer graça, algumas vezes, não passa de desespero. A ironia, às vezes, esconde a dor e a miséria de baixo do tapete a troco de risos e aplausos, ainda que, DE FATO, ninguém ganhe nada com isso. Assim se permanece sempre na superfície das coisa.

6- Em distrações inocentes como xadrez e sinuca percebi recentemente que, na minha condição, tenho uma não casual inclinação a fazer algumas vezes o que parece mais bonito, desconsiderando que esses jogos têm objetivos bastante claros. Isso não seria problema algum caso não me importasse a eventual derrota, o que, de maneira alguma é verdade: quero vencer, vencer sempre e conseguir o reconhecimento da parte de todos os possíveis adversários de que minha técnica tem, inegavelmente, peculiaridades. Perder uma partida, portanto, me deixa puto e, a não ser que eu possa encher logo um copo de cerveja e assumir a postura de que "a vida é só um jogo", acabo caindo no desconsolo e na auto-depreciação.
Isso de colocar a beleza das coisas acima do resultado prático que as atitudes no mundo devem procurar, pode ter graves consequências se for, mais que idiotice, o sintoma de uma tendência geral diante da existência. Isso porque, nesse sentido - e talvez quase sempre -, o que tem de mais bonito pra se ver é o trágico. Daí que nisso se chega a um processo incurável de auto-sabotagem cuja função é preservar o fracasso para com isso ter sempre a matéria que permita estetizar a dor - muitas vezes com ironia - constituindo, então, um masoquismo aliás muito frágil.

domingo, 4 de maio de 2014

Um lampejo de: (o) colocar-se publicamente como postura eticamente necessária

1- "Mas um homem desses não é um caso muito claro. Já que, na medida em que não forem devaneios ociosos, suas ideias são apenas realidades ainda não nascidas, naturalmente também ele tem senso de realidade; mas é um senso para a realidade possível, e chega ao seu objetivo muito mais devagar do que o senso para possibilidades reais, que a maioria das pessoas possui. Ele deseja a floresta toda, o outro quer as árvores; e floresta é algo difícil de expressar, enquanto árvores significam tantos e tantos metros cúbicos de determinada qualidade. Ou talvez se exprima isso melhor de outro modo, e o homem com senso comum de realidade se assemelha a um peixe que abocanha o anzol sem ver a linha, enquanto o homem com aquele senso de realidade, que também se pode chamar senso de possibilidade, puxa uma linha pela água e não tem ideia se existe uma isca presa nela. Uma extraordinária indiferença em relação à vida que morde a isca traz consigo o perigo de fazer coisas totalmente aleatórias. Um homem sem senso prático - ele não apenas parece assim, mas é assim - é inconfiável e imprevisível no trato com as pessoas. Cometerá atos que lhe significam outra coisa do que para os demais, mas tudo o deixa tranquilo desde que possa ser sintetizado numa ideia extraordinária. Além disso, ele hoje ainda está muito longe de ser consequente. É bem possível que um crime que prejudique a outros lhe pareça apenas um erro social, cuja culpa não cabe ao criminoso mas à ordem social. Mas é de duvidar que, recebendo uma bofetada, ele a considere insulto da sociedade, ou tão impessoal quanto lhe pareceria a mordida de um cão; provavelmente primeiro ele devolverá a bofetada, depois pensará que não devia ter feito isso. E por fim se lhe roubarem uma amada, ele hoje ainda não conseguirá ignorar inteiramente a realidade desse fato e consolar-se dessa perda com uma emoção nova e surpreendente. Essa evolução ainda está em curso, e para o indivíduo representa ao mesmo tempo fraqueza e força.
E como a posse de qualidades pressupõe certa alegria por serem reais, podemos entrever como uma pessoa que não tenha senso de realidade nem em relação a ela própria pode sentir-se de repente um homem sem qualidades." - Robert Musil, "O homem sem qualidades" (1930-1943)

2- Saí então, andando sozinho. De vez  em quando encontro conhecidos e daí faço tipo. O álcool no sangue em abundância fez-se a matéria para uma atitude nova, engraçada e temporária que eu, ansioso de transformações, chamei espontaneidade.
Mais tarde, contra a minha razão, comi um cachorro quente enorme cheio de puré e creme de milho. Duas salsichas, batata palha.

3- Todas as noites ela está [...] Sem graça como uma mancha cinza na parede de um escritório de contabilidade. Gosta de comidinhas e bebidinhas caras e estuda muito sem saber pra-quê. É de uma futilidade assustadora. Ela construiu, no entanto, em relação a mim perfeitamente a ficção de uma convivência. Seus gestos, suas palavras, suas considerações sobre mim e sobre os outros preenchem com imaginação a mais completa ausência de contato real.

4- Os dragões e o fogo, para minha surpresa, tem um sentido mais real do que tudo o que até aqui considerei real. Eles conduzem à enorme Ásia/às profundezas da Ásia, sobre a qual pende frágil a Europa que, apesar de sua notável fragilidade, vai contaminando tudo, à medida em que revira do avesso tudo aquilo que aí está, preferencialmente inerte sob o sol. Mas a beleza do trágico constitui uma sedução tão inescapável, que fica difícil.