quinta-feira, 28 de abril de 2011

regras para o bom uso da sociedade

regras para o bom uso das máquinas de café:
1.café sempre moído, a não ser que seja árabe com papoula;
2.água sempre quente. se francesa, morna;
3.coador feito de algas viventes nos dentes caninos das baleias jubartes que passam pela noruega a cada 12 anos. quando reciclados, verdes;
4.pepinos verdes fritos;
5.talos permitidos: alho poró, castanha do pará, grão-pará, grão de bico, biba;
6.braços: quebrados, se de bebê, de mar, de rapunzel, da cachorra;
7.lingerie só de renda. quando bege, make it green;
8.espaço transcendental do ser: nada muito distinto do próprio pé;
9.grãos torrados;
10.sou fraco pro ópio.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

george orwell

"O fato que precisa ser encarado é que abolir as divisões de classe significa abolir uma parte de você mesmo. Aqui estou eu, um membro típico da classe média. Para mim é fácil dizer que desejo que as distinções de classe desapareçam, mas quase tudo o que penso e faço é resultado das distinções de classe. Todas as minhas ideias - meus conceitos sobre o bem e o mal, o agradável e o desagradável, o engraçado e o sério, o feio e o bonito - são, essencialmente, conceitos de classe média; meu gosto para livros, comida, roupas, meu senso de honra, minhas boas maneiras à mesa, as expressões que uso ao falar, meu sotaque, até mesmo os movimentos característicos de meu corpo, são produtos de certo tipo de educação e de certo nicho que fica mais ou menos na metade da hierarquia social. Quando me dou conta disso, percebo que não adianta dar tapinhas nas costas de um proletário e dizer que ele é um bom homem, tanto quanto eu; se eu desejar ter contato real com ele, tenho que fazer um esforço para o qual, muito provavelmente, estou despreparado. Pois para sair do esquema de classes eu teria que suprimir não apenas meu esnobismo particular, mas também a maior parte dos meus demais gostos e preconceitos. Tenho que modificar a mim mesmo tão completamente que no fim mal serei reconhecido como a mesma pessoa. O que está implícito aí não é simplesmente melhorar as condições da classe proletária nem evitar as formas mais estúpidas de esnobismo, e sim abandonar por completo as atitudes da classe superior e da classe média em relação à vida. E quanto a isso, direi sim ou não? Provavelmente depende de até que ponto eu percebo o que se exige de mim.
Muita gente, porém, imagina que consegue abolir as distinções de classe sem fazer nenhuma mudança desconfortável em seus próprios hábitos e na sua 'ideologia'. Vêm daí as impetuosas iniciativas para romper as barreiras de classe que podemos ver por todo lado. Em toda parte há pessoas de boa vontade que acreditam sinceramente que estão trabalhando para derrubar as distinções de classe. O socialista de classe média se entusiasma com o proletariado e organiza 'escolas de verão' onde o proletário e o burguês arrependido devem cair um no braço do outro e se tornar irmãos para sempre; e os visitantes burgueses saem de lá dizendo como tudo aquilo é maravilhoso e inspirador (os proletários saem dizendo coisas bem diferentes). E há também aquele tipo de burguês piedoso e benemérito, relíquia do período de William Morris e do socialismo cristão, mas ainda surpreendetemente comum, que vive dizendo: 'Mas por que deveríamos nivelar por baixo? Por que não nivelar por cima?', e propõe subir o nível da classe trabalhadora (até alcançar o seu próprio) por meio de higiene, suco de frutas, controle de natalidade, poesia etc. Até mesmo o duque de York (hoje rei George VI) organiza um acampamento anual onde se espera que jovens das public schools [na Inglaterra, "public school" é uma escola particular de elite, com elevados custos para o aluno] e garotos da favela se misturem em termos exatamente iguais - e, aliás, de fato se misturam nesse período -, mais ou menos como os animais nessas gaiolas do tipo 'Família Feliz', onde um cachorro, um gato, duas doninhas, um coelho e três canários mantêm uma trégua armada enquanto o olho do treinador está bem firme em cima deles.
Todos esses esforços deliberados e conscientes para romper as divisões de classe são, creio, um equívoco muito sério. Às vezes são apenas fúteis, mas, quando apresentam um resultado definido, em geral só servem para intensificar o preconceito de classe. E isso, pensando bem, é o que se poderia esperar. Você forçou o ritmo e armou uma igualdade incômoda, e nada natural, entre uma classe e outra; o atrito resultante traz à superfície todo tipo de sentimentos que sem isso teriam permanecido enterrados, talvez para sempre. [...] O sujeito de classe média que vota no ILP [Independent Labour Party] e o barbudo que toma suco de frutas são totalmente a favor de uma sociedade sem classes, contanto que enxerguem o proletariado pela outra ponta do telescópio; basta forçá-los a ter algum contato real com um proletário - entrar em uma briga com um estivador bêbado em um sábado à noite, por exemplo - e eles são capazes de voltar bem rápido a um esnobismo de classe média do tipo mais vulgar. A maioria dos socialistas de classe média, porém, não tem a menor probabilidade de entrar em brigas com estivadores bêbados; e quando fazem algum contato genuíno com a classe trabalhadora, em geral é com a intelligentsia da classe trabalhadora. Mas a intelligentsia da classe trabalhadora pode ser dividida nitidamente em dois tipos. Há o tipo que continua sendo da classe trabalhadora, que vai trabalhar como mecânico, operário braçal, ou seja lá o que for, e não se dá ao trabalho de mudar seu sotaque e seus hábitos proletários, mas que trata de 'educar a mente' em seu tempo livre e milita no ILP ou no Partido Comunista; e há o tipo que de fato modifica seu modo de vida, pelo menos exteriormente, e que, por meio de bolsas de estudo do Estado, consegue subir para a classe média. O primeiro é um dos melhores tipos de homem que temos por aqui. Lembro-me de alguns que conheci; nem mesmo o tory mais rígido e conservador poderia deixar de admirar esses homens e gostar deles. O outro tipo, com exceções - D.H. Lawrence, por exemplo -, é menos admirável.
[...]
Assim, é este o resultado da maioria dos encontros entre proletário e burguês; eles deixam a nu um antagonismo real, intensificado pelos clichês do 'proletariado', os quais também são produto de contatos forçados entre as classes. O único procedimento sensato é ir devagar e não forçar o ritmo. Se você se considera, secretamente, um cavalheiro e, enquanto tal, superior ao garoto de entregas do armazém, é muito melhor dizer isso às claras do que mentir. No fim você vai ter que largar mão do esnobismo; mas é fatal fingir que largou mão dele antes de estar realmente pronto para isso.
..."

Trechos da segunda parte de O caminho para Wigan Pier, escrito em 1936, tradução de Isa Mara Lando.

terça-feira, 26 de abril de 2011

quarta-feira, 20 de abril de 2011

ridiculismo

Quando eu era criança, eu fui um dia, com minha vó, no açougue. O açougue era vermelho, limpo e seco, mas isso porque o dia era frio e tinha muito sol. Esses dias frios de sol são terrivelmente opressivos, sobretudo pela manhã.
O bairro da minha vó era desses bairros estranhos e lentos.
No açougue, eu tinha uns 8/9 anos. Entrou alguém empurrando uma cadeira de rodas, e na cadeira de rodas tinha uma menina que não se mexia. Eu ri e depois chorei. Chorei de medo.
A paralisia cerebral tornou-se a imagem fixa da desgraça humana e a evidência inconsciente da neutralidade de Deus diante das questões humanas contemporâneas.
Minha vó comprou carne moída para fazer croquete. Enquanto minha vó fazia croquete, eu jogava baralho com meu avô na cozinha, e a cozinha era fria, escura, muito grande e acolhedora.

domingo, 17 de abril de 2011

rocks to the ground (crowd)

"vamos, ora porra!". cuspia no chão o cavaleiro retirado diretamente de algum filme de bang-bang dos anos 50. na mão esquerda tinha agarrada com força uma corda que prendia a boca de um saco de couro do qual pingavam gotas cada vez maiores um líquido mal cheiroso. da mão direita, saíam duas cordas, também presas com firmeza: a rédea do cavalo e a corda que tinha a outra ponta presa ao meu pescoço. comecei a caminhar seguindo o ritmo ainda lento do cavalo. em silêncio eu jogava olhares em direção ao horizonte, sempre com respeito. tudo o que eu lembrava naquele momento era dos carinhos que ela me fez enquanto eu estava jogado no chão da prisão, quase inconsciente. e o nó que coçava na nuca e apertava na garganta só me afastava cada vez mais dela. quando eu caí a primeira vez e meu rosto ralou na areia quente e pedregosa do chão eu pude sentir aquela mão novamente. desta vez ela segurava meu punho. minhas mão atadas não permitiram mais que um roçar de meu polegar em sua pele. nunca saberei se aquele carinho forçadamente velado recebeu uma aprovação dela porque não pude ver seu rosto. o sangue que descia pela minha fronte chegara ao meu olho. fui virado com o rosto em direção ao sol por mãos mais ásperas. o cavaleiro estava pingando em minhas feridas o líquido fétido que ele levava na bolsa de couro. as feridas se fecharam no tempo de eu me levantar com alguma dificuldade. voltamos a caminhar, eu e o cavalo. chegando a um ponto da estrada que tinha uma cruz cravada num monte pequeno de pedras, tive a oportunidade e aproveitei-a: estrangulei o cavaleiro com a corda que me prendia, montei o cavalo e fugi. a bolsa de couro me serviu de travesseiro mágico durante as noites. eu sonhava com foguetes e arpões, pirâmides e guerras. eu nunca quis acordar e foi-me dado o sono letárgico eterno. com meu corpo alimentei outros seres até ter consumido meu inconsciente e eu deixar de existir porque meus sonhos já não podiam se formar. levantei e fui viver novamente. afinal de contas: é para isso que estamos aqui.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Conflito

Wo die grünen Ameisen träumen [Werner Herzog - 1984]

Assisti ao filme Aonde Sonham as Formigas Verdes e fiquei ligeiramente perturbado. O que quero dizer é que, tive várias idéias sobre o filme, e gostaria de expô-las. E é o que farei nesse post.
Tem duas questões principais que vejo no filme: o propósito da existência e alteridade. Elas surgem na medida em que o personagem Hackett se desenvolve ao longo do filme, porque ele está entre os dois mundos, o mundo dos aborígenes e o europeu, cristão, ocidental. No começo do filme, ele faz parte desse segundo, mas conforme a história se desenrola, motivado pela necessidade e pelo interesse de conhecer os aborígenes, ele começa uma transição na sua maneira de pensar e perceber a realidade, que culmina na impossibilidade dele continuar a aceitar o seu referencial cultural, mas também na impossibilidade dele aceitar a cultura aborígene. Ou seja, ele se perde.
Tem duas cenas que acho significante para pensar essa questão da compreensão do outro. Uma delas é a cena em que ele tenta negociar com o líder local para ter permissão de continuar as atividades mineradoras na região. Essa negociação falha, porque ele tenta oferecer coisas, que para nós ocidentais, fazem sentido, mas não para os moradores daquele local: como um museu a ser administrados pelos locais, dinheiro, porcentagem nos lucros,... Ou seja, Hackett negocia nos termos europeus, sem levar em consideração a cultura do outro, e não consegue compreender porque a recusa ocorre várias vezes de maneira tão incisiva. A outra cena é quando Hackett conversa com Miliritbi sobre o universo. A maneira como ele explica, para nós, próximos da cultura dele, até faz sentido e é aceitável a hipótese que ele levanta e os questionamentos que ele faz. Mas, para Miliritbi, um aborígene, são apenas questões tolas e sem sentido. Esse comentário adiciona uma nova perspectiva na fala de Hackett, que mostra sua natureza subjetiva e frágil. É uma tentativa de explicar a realidade, que no fundo, é uma busca de um propósito de existir. Mas esse propósito, talvez, é tão real ou tão artificial quanto o daquele povo perdido no meio da Austrália. Para eles, o propósito de existir é vinculado a realidade que eles conhecem e vivenciam, no caso as formigas verdes. Enquanto para Hackett, sua visão de mundo é vinculado a uma realidade ocidental: a física, a matemática, a geografia.
Bom, retorno então, a idéia de que Hackett está entre esses dois mundos e, na tentativa, de compreender o outro, ele se perde na sua própria maneira de compreender o mundo e no seu propósito de existir. Essa transição fica mais clara depois do julgamento dos aborígenes. O que é uma cena interessante, pois mostra o processo de dominação de uma cultura sobre a outra. Uma, que tenta julgar a outra através dos seus termos. E, é quando Hackett percebe isso, que ele se revolta. Não consegue mais aceitar e fazer parte do mundo alemão, europeu, ocidental, cristão, branco. Mas ele não consegue e não pode aceitar a cultura aborígene, logo, ele simplesmente fica sem referencial, o que nos leva a cena final do filme, que é ele simplesmente ignorando o seu mundo e andando por aquel deserto de formigueiros. Ele fica no meio do nada, nas trevas. E aqui é interessente repensarmos no começo do filme, quando surge a idéiadas trevas: a velha pedindo para o Hackett resgatar o cachorrinho dela que se perder no tunel. Esse cachorro é quase uma metafora a situação final de Hackett, ele entra numa escuridão da qual não tem mais saída.


Uma hipótese de estudo/análise que não levarei adiante e nem tenho embasamento teórico para refletir muito profundamente: tem uma cena no filme em que Hackett, Ferguron, Miliribt e Dayipu ficam presos no elevador quando estão subindo para o andar 19. Talvez, nessa cena, Herzog tenha a idéia de que ainda estamos presos no século XIX ou rumo ao século XIX nos assuntos de domínio cultural. E ai entra questões como colonialismo, neocolonialismo, racismo,...

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sexta-feira, 8 de abril de 2011

Filme - Paranoid Park [Gus Van Sant - 2007]


Assisti o filme Paranoid Park no final de semana passado e resolvi escrever sobre ele para organizar meu pensamento sobre o filme, porque, sinceramente, não sei se é um bom filme ou não. Fico realmente em dúvida. Mas não tentarei responder isso. O ponto é que, algumas questões passaram pela minha mente enquanto eu o assistia e escreverei sobre elas. Cabe ao leitor dizer se estou delirando ou se faz sentido.

Minha primeira questão é com a montagem do filme. A história não é contada de maneira linear, mas fragmentada. Isso me tras três problemas em mente: 1-) é necessário e contribui para dar significado a história contada?; 2-) é simplesmente um gosto estético do diretor?; 3-) é uma maneira de tentar mais filosófico algo que talvez não tenha nada de interessante?. Bom, para esse post, eu parto da hipótese que é algo necessário e significativo, q que me leva a um problema de memória, porque, querendo ou não, ela também não é linear. A memória atua de maneira fragmentada, vários estilhaços de momentos perdidos no espaço e no tempo, que surgem de maneira desconexa na mente, e se formam de maneira desconexa. As vezes, você se lembra de algo pelo fim, e vai pro meio, e continua no meio, e volta pro fim, e vai pro meio de novo, e vai pro começo, e termina no meio. Então, é uma hipótese que faz sentido, ainda mais que ela também é uma questão para o personagem principal, Alex, já que durante o filme quer achar uma maneira de esquecer, de tirar da sua mente o evento traumático que motiva o filme. Para esquecer, ele tenta escrever suas lembranças, repensando e recriando o ocorrido pela escrita. Mas, ao mesmo tempo, o fato dele escrever suas memórias é contado de maneira fragmentada no filme, o que é interessante, porque o processo de escrever faz parte da memória. Durante o presente, e durante esse repensar, existem significados ganhos que interagem com o passado. E o próprio repensar é reapropriado de maneira desconexa.

Minha segunda questão é a atuação do personagem principal. Me pareceu um pouco amadora. Não sei se foi proposital ou não. Mas ela é interessante, quando pensamos na falta de responsabilidade e falta de propósito que movem a existência do Alex. É tenso, quando pensamos que, ele simplesmente fodeu a vida de alguém, acidentalmente, mas fodeu e tem que lidar com isso pro resto da vida. Mas, no fundo, sua relação com o ocorrido é quase de desimportância total pelo que fez com o outro, e mais uma preocupação com não ser pego e simplesmente esquecer para todo o sempre o que ele fez. São preocupações egoístas de certa maneira. É tentar voltar para um estado anterior ao acidente. Ao mesmo tempo, é esse acidente que talvez leve ele a tomar a única atitude responsável do filme, que é terminar com a namorada. Claramente, um relacionamento sem futuro, que mesmo ele não está tão empolgado. Mas continua, por inércia talvez. Numa questão mais pontual, a reação que ela tem quando ele termina o namoro é interessante: ela simplesmente ignora todas as vontades, desejos e motivações dela, para jogar a culpa nele, como se ele a tivesse usado simplesmente para sexo. Quando o sexo era algo que ela claramente queria, motivada, aparentemente, pelo desejo de contar para as amigas. Mas era algo que ela queria, e ela nega esse desejo, nega sua responsabilidade no ato para culpá-lo. Ela simplesmente não reconhece a sua própria motivação nas suas ações. Ou escolhe ignorá-las.

Bom. Essas foram minhas idéias desconexas sobre o filme que eu precisava expor =P.

Conflituosidades de situações atravessadas

1.
-Ela foi lá reclamar, viu?
-O que?
-Ela foi reclamar! Você atropelou ela com esse carrinho aí!
-Ué! Era hora do meu almoço...
-Por isso vai atropelar a mulher?!
-Ué! Era hora do meu almoço! Eu tava com fome, fí!
-Num tem nada a ver! Tem que respeitar os clientes!
-Tava com fome, fí! Era hora do meu almoço, num to nem aí não, fí...
2.
Esses muleke ouvindo funk no fundo do busão tá foda. Puta alienação! Idiotice! Putaputaria...
Cultura legítima, cultura legítima...
conversa fiada...
Conversa afiada?
é! Da sua mãe!
3.
Mas os anão são anão porque nascem pequenos ou por...
Cala boca...
Não...qual é o critério
-Científico?
-Isso
4.
A:-Acho que não tem nada a ver isso daí! Dalí desenhava essas fita por nada. Chegou em casa..."vou desenhar qualquer coisa!" e boa!
B: -Mas, veja, não importa. De qualquer forma, mesmo o aleatório está dentro da história. Ou então, mesmo sob efeito de drogas, todo tipo de representação artística, por mais irreal - aceitando uma concepção tradicional de real - dispõe, necessariamente dos elementos historicamente existentes na cultura do indivíduo que a realiza. Necessariamente ela parte de uma estrutura mental compartilhada. Todas as relações simbólicas tem como motivo, ao menos em alguma medida, referentes socialmente compreensíveis.
A: -To ligado
C: -Peraí... eu num sei se dá pra relacionar de forma tão direta coisas tão distintas entre si mesmas?

quarta-feira, 6 de abril de 2011

georges perec

“Imaginemos uma pessoa cuja fortuna seja comparável apenas à indiferença por tudo quanto a fortuna em geral propicia, e cujo desejo fosse, de maneira muito mais arrogante, apreender, descrever, esgotar não a totalidade do mundo – projeto cujo simples enunciado já acarretaria sua ruína – mas determinado fragmento deste; diante da inextricável incoerência do mundo, tratar-se-ia então de cumprir até o fim um programa, restrito, sem dúvida, mas inteiro, intacto, irredutível.
Em outros termos, Bartlebooth resolvera um dia organizar toda a sua vida em torno de um projeto único, cuja necessidade arbitrária não teria outro fim a não ser ela mesma.
Essa ideia surgiu quando tinha vinte anos. A princípio, era uma ideia vaga, uma pergunta que nascia – que fazer? –, uma resposta que se esboçava – nada. O dinheiro, o poder, a arte, as mulheres, nada interessava a Bartlebooth. Nem a ciência, nem sequer o jogo. Quando muito, gravatas e cavalos ou, se se prefere, imprecisa mas palpitante sob essas ilustrações fúteis (embora alguns milhares de pessoas ordenem suas vidas eficazmente em torno de gravatas e um número ainda maior em torno de cavalos de corrida), certa ideia de perfeição.
Desenvolveu-se nos meses, nos anos que se seguiram, articulando-se em torno de três princípios diretivos:

O primeiro foi de ordem moral: não se trataria de um feito, de um recorde, de um pico a escalar, de uma profundidade a atingir. O que Bartlebooth faria não devia ser nem espetacular nem heroico; seria simplesmente, discretamente, a realização de um projeto, difícil, é verdade, mas nada irrealizável, controlado de um extremo ao outro, que, como recompensa, governaria, em todos os seus detalhes, a vida de quem a ele se consagrasse.

O segundo foi de ordem lógica: porque excluía qualquer recorrência ao acaso, a empresa faria o tempo e o espaço funcionar como coordenadas abstratas nas quais se viriam inscrever, com recorrência inelutável, os eventos idênticos que se produzissem inexoravelmente em seu próprio lugar, em sua data certa.

O terceiro, enfim, foi de ordem estética: sendo inútil, sua gratuidade constituindo a garantia única de seu rigor, o projeto destruiria a si próprio à medida que se concretizasse; sua perfeição seria circular: uma sucessão de eventos que, encadeando-se, se anulariam; partindo do nada, Bartlebooth retornaria ao nada, mediante transformações precisas de objetos finitos.

Dessa forma, organizou-se concretamente um programa que poderia, em termos sucintos, ser enunciado assim:
Durante dez anos, de 1925 a 1935, Bartlebooth se iniciaria na arte da aquarela.
Durante vinte anos, de 1935 a 1955, percorreria o mundo, pintando, à razão de uma aquarela a cada quinze dias, quinhentas marinhas do mesmo formato (65 x 50, dito real), as quais representariam portos marítimos. Ao terminar cada uma dessas marinhas, ela seria enviada a um artista especializado (Gaspard Winckler), que a colaria sobre finíssima placa de madeira e a recortaria num puzzle de setecentas e cinquenta peças.
Durante vinte anos, de 1955 a 1975, Bartlebooth, de volta à França, reconstituiria, na mesma ordem, os puzzles assim preparados, à razão, novamente, de um a cada quinze dias. À medida que os puzzles fossem reorganizados, as marinhas seriam ‘retexturadas’, de modo que se pudesse descolá-las de seus suportes, transportá-las para os próprios locais onde – vinte anos antes – haviam sido pintadas e ali mergulhá-las numa solução detergente da qual saísse apenas uma folha de papel Whatman, intacta e virgem.

Nenhum traço, assim, haveria de restar dessa operação que, durante cinquenta anos, mobilizaria inteiramente seu autor.”

Trecho do livro A vida modo de usar, de Georges Perec

domingo, 3 de abril de 2011