quarta-feira, 6 de abril de 2011

georges perec

“Imaginemos uma pessoa cuja fortuna seja comparável apenas à indiferença por tudo quanto a fortuna em geral propicia, e cujo desejo fosse, de maneira muito mais arrogante, apreender, descrever, esgotar não a totalidade do mundo – projeto cujo simples enunciado já acarretaria sua ruína – mas determinado fragmento deste; diante da inextricável incoerência do mundo, tratar-se-ia então de cumprir até o fim um programa, restrito, sem dúvida, mas inteiro, intacto, irredutível.
Em outros termos, Bartlebooth resolvera um dia organizar toda a sua vida em torno de um projeto único, cuja necessidade arbitrária não teria outro fim a não ser ela mesma.
Essa ideia surgiu quando tinha vinte anos. A princípio, era uma ideia vaga, uma pergunta que nascia – que fazer? –, uma resposta que se esboçava – nada. O dinheiro, o poder, a arte, as mulheres, nada interessava a Bartlebooth. Nem a ciência, nem sequer o jogo. Quando muito, gravatas e cavalos ou, se se prefere, imprecisa mas palpitante sob essas ilustrações fúteis (embora alguns milhares de pessoas ordenem suas vidas eficazmente em torno de gravatas e um número ainda maior em torno de cavalos de corrida), certa ideia de perfeição.
Desenvolveu-se nos meses, nos anos que se seguiram, articulando-se em torno de três princípios diretivos:

O primeiro foi de ordem moral: não se trataria de um feito, de um recorde, de um pico a escalar, de uma profundidade a atingir. O que Bartlebooth faria não devia ser nem espetacular nem heroico; seria simplesmente, discretamente, a realização de um projeto, difícil, é verdade, mas nada irrealizável, controlado de um extremo ao outro, que, como recompensa, governaria, em todos os seus detalhes, a vida de quem a ele se consagrasse.

O segundo foi de ordem lógica: porque excluía qualquer recorrência ao acaso, a empresa faria o tempo e o espaço funcionar como coordenadas abstratas nas quais se viriam inscrever, com recorrência inelutável, os eventos idênticos que se produzissem inexoravelmente em seu próprio lugar, em sua data certa.

O terceiro, enfim, foi de ordem estética: sendo inútil, sua gratuidade constituindo a garantia única de seu rigor, o projeto destruiria a si próprio à medida que se concretizasse; sua perfeição seria circular: uma sucessão de eventos que, encadeando-se, se anulariam; partindo do nada, Bartlebooth retornaria ao nada, mediante transformações precisas de objetos finitos.

Dessa forma, organizou-se concretamente um programa que poderia, em termos sucintos, ser enunciado assim:
Durante dez anos, de 1925 a 1935, Bartlebooth se iniciaria na arte da aquarela.
Durante vinte anos, de 1935 a 1955, percorreria o mundo, pintando, à razão de uma aquarela a cada quinze dias, quinhentas marinhas do mesmo formato (65 x 50, dito real), as quais representariam portos marítimos. Ao terminar cada uma dessas marinhas, ela seria enviada a um artista especializado (Gaspard Winckler), que a colaria sobre finíssima placa de madeira e a recortaria num puzzle de setecentas e cinquenta peças.
Durante vinte anos, de 1955 a 1975, Bartlebooth, de volta à França, reconstituiria, na mesma ordem, os puzzles assim preparados, à razão, novamente, de um a cada quinze dias. À medida que os puzzles fossem reorganizados, as marinhas seriam ‘retexturadas’, de modo que se pudesse descolá-las de seus suportes, transportá-las para os próprios locais onde – vinte anos antes – haviam sido pintadas e ali mergulhá-las numa solução detergente da qual saísse apenas uma folha de papel Whatman, intacta e virgem.

Nenhum traço, assim, haveria de restar dessa operação que, durante cinquenta anos, mobilizaria inteiramente seu autor.”

Trecho do livro A vida modo de usar, de Georges Perec

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