quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Citações: Bachelard e Álcool

"[...] Para compreender um gênio literário original, convém não se dirigir muito apressadamente às construções da razão. O inconsciente, ele próprio, é um fator de originalidade. Em particular, o inconsciente alcoólico é uma realidade profunda. Enganamo-nos ao imaginar que o álcool vem simplesmente excitar possibilidades espirituais. Ele cria verdadeiramente essas possibilidades. Incorpora-se, por assim dizer, àquilo que se esforça por se exprimir. Sem dúvida nenhuma, o álcool é um fator de linguagem. Enriquece o vocabulário e libera a sintaxe."

Bachelard, Gaston. A Psicanálise do Fogo, Martins Fontes, SP, 2008, 3a edição, p.128

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Considerações sobre O Amante, de Marguerite Duras


Uma menina branca de 15 anos vivendo na Indochina francesa. O pai já está morto. Ela, a mãe e os dois irmãos mais velhos não se olham, mal se falam. A mãe sofre, percebe o crescimento dos filhos pelas fotografias, tem obsessão por fotografias e fotografa apenas os filhos, mais nada. Apenas por fotografia eles se olham, demoradamente.

Tudo está relacionado à morte, sobretudo o sexo. A menina branca descobre que subitamente envelheceu muitos anos; é em seus olhos que se pode ver esse envelhecimento. Com seu corpo ela descobriu verdades sobre a existência. Ela sabe de algo que as outras meninas do internato não sabem. Seu amante é um chinês rico, profundamente investido do sentimento de inferioridade que constitui a natureza de um nativo diante de uma mulher branca. É com esse sentimento que ele a possui, sem dizer nada. Eles quase nunca conversam. O irmão mais velho é mau. Ele é o guardião do silêncio, da impossibilidade dos olhares, das distâncias. Ele não fala e não ri, contamina com sua presença todos os que estão por perto; contamina com a morte. Ele é o preferido da mãe, o único que ela chama de filho. A morte do irmão mais novo foi este irmão mais velho quem criou, destruindo a vida, pairando como ameaça constante. Quando veio a invasão japonesa morreu o irmão mais novo que, no entanto, já estava morto. Ela temia a proximidade do corpo do irmão mais velho, tanto quanto adorava o mais novo.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Subdesenvolvimento e fragmentação


1- Estava sozinho em casa para o almoço e de repente percebi que não ligar a televisão enquanto comia teria a total aparência de um hábito de gente louca.

2- Vocação para a auto-ajuda: É importante gastar o dinheiro todo com bobagens muito logo, porque no fim sempre se o acaba gastando com quimioterapias.

3- Descobri que a fé de vovó baseia-se na capacidade de tirar um cartãozinho da caixinha de cartõezinhos de salmos e diariamente lê-lo em silêncio sem, contudo, sentir-se idiota.

4- Parece ameaçadora toda essa luminosidade amena que preenche as ruas lá fora. Um azul intenso manchado por raras nuvens, e o silêncio. Meus olhos já não podiam mais manter-se abertos, iam pesando mais e mais e tornando vão o esforço para manter a atenção. Bem desistido no cochão velho da sala, o tempo valioso da tarde foi descendo pelo ralo, desperdiçando-se inevitavelmente no sono macio e maldoso.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

O Idiota, 1951 (direção de Akira Kurosawa)





O filme discute o amor, como ele funciona, como se define em relação aos demais sentimentos. A discussão acontece a partir de um tipo ideal de bondade, Kameda, que, na verdade, traz em si um elemento de desconforto, o fato de que o homem capaz da bondade mais pura é (talvez necessariamente) um idiota. O idiota é incapaz de malícia, de mesquinhez, de inveja. Ele aprendeu a amar todos os seres humanos, sem restrição, no momento em que esteve diante da morte e, no último minuto pode escapar. O choque de ser salvo foi o que o tornou idiota, e ele tinha consciência disso, de ser idiota e puramente bom.

Kameda é apresentado em seu primeiro encontro com Akama. O personagem de Akama reforça o de Kameda. Akama apresenta uma expressão com traços fortes, que contrastam com a fragilidade de Kameda. Akama entende a si mesmo como alguém que não é muito confiável, alguém que não é bom, suas atitudes o caracterizam de acordo ao longo do filme. Mas Akama não pode ser inteiramente mau, e é justamente sua disposição especificamente em relação a Kameda que coloca em seu personagem um elemento de ambiguidade no funcionamento de seus sentimentos.

Sobre o sentimento que Kameda desperta nas pessoas, acontece ao longo de todo o filme, o encontro que os personagens têm com algo oculto dentro de si mesmos, que apenas Kameda, em sua bondade idiota é capaz de revelar. Kameda consegue descobrir o que há verdadeiramente no coração das pessoas. Isso é colocado claramente quando surge a personagem central para as reações emocionais de todos os personagens, Taeko. Antes que ela apareça em pessoa, Kameda vê uma pintura sua na vitrine de uma loja da cidade de Saporo, sempre coberta de neve. Kameda chora ao ver a pintura e diz que vê nos olhos daquela mulher uma grande infelicidade.

Taeko foi uma concubina e aparece pela primeira vez quando está sendo negociado o valor para casar-se com ela. Um homem oferece 600 mil ienes, aparece Akama e oferece um milhão de ienes. O ambiente e o clima é de degradação e Kameda, com sua expressão de pureza entra em cena estabelecendo contraste com a disposição predominante. O sarcasmo de Taeko se dissolve quando Kameda diz a ela que sabe que ela não é daquele tipo de mulher. Revela a Taeko a essência de seu próprio ser. Começa a primeira sequência de ambiguidade forte de sentimentos. Taeko chora, diz que ficará com Kameda, depois aceita o milhão de ienes de Akama e casa-se com ele. Ela não se considera merecedora de Kameda. Todos os presentes riem. Ao longo do filme Kameda é sempre motivo de riso, por ser idiota. Essa disposição muda à medida que sua bondade revela sua superioridade sobre todos os não idiotas. No final do filme essa impressão é colocada claramente quando, após a morte de Kameda, Ayako declara que ela é que é idiota, que não deu o devido valor à sua bondade.

Ayako é a personagem que equilibra as relações já estabelecidas entre Kameda, Akama e Taeko. Desde o início, Ayako é colocada como uma mulher de temperamento forte, um pouco arrogante, que costuma dizer o contrário do que realmente quer... Essa visão é colocada principalmente pela mãe de Ayako, personagem que caracteriza a si mesma como uma pessoa muito franca naquilo que diz. As ambiguidades de Ayako são reforçadas pela influência de Taeko, que sem deixar de amar Kameda, por cartas incentiva Ayako a casar-se com ele. A personagem de Taeko é revestida por elementos para a composição de uma personalidade trágica, que quer a felicidade de Kameda, privando-o de si mesma, que não consegue libertar-se da culpa e do sentimento de indignidade que lhe traz seu passado. Uma sequência de cenas em que Ayako fala e Kameda apenas ouve deixa clara sua ambiguidade, sua dúvida sobre se deve ou não casar-se com ele, considerando todos os aspectos de seu amor por ele e do amor dele por Taeko.

Por fim eles se casam, mas Ayako quer conhecer pessoalmente Taeko, mostrar-se vitoriosa. É o momento em que são satisfeitas as expectativas criadas ao longo de todo o filme, para ver colocados diretamente em confronto os elementos que causam tensões e ambiguidades com as quais os personagens não conseguem lidar facilmente para tomar decisões. Taeko diz a Ayako para ir embora e levar com ela Kameda, explicitando o medo que ela sabe que inspira a Ayako. Após um instante de hesitação, Taeko diz que mudou de ideia (mas tudo já estava, provavelmente, premeditado) e desafia Ayako, dizendo que terão que disputar o amor de Kameda, que ela pedirá a Kameda que ele abandone Ayako e ela irá terá que ir embora sozinha. Enquanto isso já se vê ao fundo Akama calado e perplexo, com a raiva crescendo em sua expressão. Esse enquadramento já indica o desfecho da cena.

A identificação entre amor e compaixão, enunciada várias vezes ao longo do filme, é explicitada. Kameda é obrigado a escolher. A câmera oscila entre o rosto de Taeko e de Ayako e a expressão de Kameda. A expressão de Taeko é de dor, de alguém profundamente infeliz, justamente o que comoveu tanto a bondade do idiota desde o início ao ver o quadro de Taeko na vitrine. Kameda não pode evitar de escolher Taeko, e Ayako correu para a rua, no meio da tempestade de neve. No desfecho já anunciado, Kameda foi atrás de Ayako e não a encontrou. Ao retornar Akama já havia matado Taeko.

É importante a relação entre Kameda e Akama. Akama tem vontade de matar Kameda desde o primeiro momento em que Taeko entra em suas vidas. Entretanto, sempre que estão cara a cara, Kameda inspira a Akama simpatia e bons sentimentos. É seu poder de idiota. No momento em que Akama revela esse sentimento ambíguo a Kameda, Kmeda sorri, e os dois vão tomar chá na casa da mãe de Akama, que é como um santuário, onde a velha passa seus dias rezando a Buda. A mãe de Akama contribui para a definição do idiota e de sua bondade. Ela também é idiota, em certo sentido. Recebe os dois, permanece sorrindo em silêncio o tempo todo e por simpatizar com Kameda oferece-lhe um pedaço do bolo oferecido a Buda. Akama é filho da santa, mas convencido de sua maldade. Diz a Kameda que ele aprendeu com a mãe a rezar e carrega com ele um talismã. Kameda não acredita em Deus, mas carrega consigo uma pedra que guardou no momento em que ficou idiota ao escapar da morte à qual estava condenado. Eles trocam os talismãs sem nenhum motivo, mas para Kameda isso significou um pacto de confiança, baseado no qual ele não temeu quando, depois disso Akama ameaçou matá-lo.

Na casa de Akama, Kameda demonstrou uma obcessão pela faca nova colocada em cima de mesa. Esta cena já indicava que com essa mesma faca, mais tarde, Akama mataria Taeko. Com Taeko morta no quarto, Akama e Kameda perdiam o juízo e conversavam sobre como a faca entrou no corpo de Taeko sem sangrar muito. Aparentemente de loucura e dor os dois morreram.

sábado, 5 de janeiro de 2013

fotos muito velhas de um passado recente

Imagem I

Um sobrado. Num grande letreiro, acima da terceira fileira de janelas, lê-se "Hotel 2000". Em primeiro plano uma rodovia, ou algo que assim pareça. Um pouco ao fundo se percebe um posto de gasolina. O ambiente em torno desse hotel de beira de estrada está descuidado. Não é descuido no sentido de abandono. Talvez a construção ainda sirva como hotel. Mas quem administra e cuida daquele lugar é do tempo de quando 2000 ainda era futuro; de quando 2000 inspirava modernidade, mistério. Um velho, quem sabe.

Imagem II

Da direita para a esquerda: um par de rodas e pneus ao lado de uns tambores tombados, enferrujados; um pátio de terra batida; um ônibus velho, ou sua carcaça, tombado de lado, sem vidros, faróis, rodas. Até a tinta parece ter sido removida e reaproveitada. Chama a atenção: a única peça que restou na velha lataria, e, talvez, o único indício de que aquilo tenha sido um ônibus um dia, foi o letreiro na parte superior do buraco que antes ocupava o para-brisas. Nele, através de um vidrinho empoeirado, lê-se "SUMIDENSO", em letras exageradamente grandes, como se fosse um lugar onde não se deveria ter dúvidas sobre ir ou não.

Imagem III

Eu. Eu sentado no que parece ser um banco ou uma banqueta. Roupas negras: calça e camisa de mangas longas. Corpo encurvado e cotovelos apoiados nas pernas. As duas mãos se encontram e os dedos se entrelaçam de forma estranha. O que denunciam? O olhar encara a câmera, inseguro, incomodado, ou talvez seja apenas confiança excessiva. Petulância? Ao fundo um balcão com cabeças brilhantes, brancas. Cinco, das seis, estão cobertas com cabelos, claramente perucas, penteados de formas distintas. Em pé, atrás do balcão, um senhora observa a cena e parece alheia à fotografia. Em suas mãos, um maço negro que parece ter como destino a cabeça careca da fileira sobre o balcão.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Fireworks










O Circo, 1928 (direção de Charles Chaplin)


A discussão principal do filme é a exploração do dono do circo sobre o sucesso de Charlie. Charlie aparece como quem não sabe que é engraçado, ele entra em no palco fugindo da polícia e a plateia ri das coisas que ele faz espontaneamente. Quando o dono do circo chama Charlie para trabalhar com ele, a sequência na qual ele aprende os números ensaiados com os palhaços reforça o sentido da graça na espontaneidade e a impossibilidade de ensiná-lo a fazer os números.

Este momento é importante pois é aí que se enfatiza a percepção do dono do circo de que Charlie não sabe que os risos e aplausos são para ele e transmite a seu supervisor que é preciso que manter Charlie trabalhando, mas sem que ele tome consciência de sua importância.

Cria-se com isso o incômodo em relação à injustiça feita contra Charlie. Outra personagem maltratada pelo dono do circo é sua filha, que por partilhar da mesma condição de exploração de Charlie, é a personagem encarregada de satisfazer o desejo de que Charlie possa ter seu reconhecimento. É ela, portanto, que diz que ele não deveria ser obrigado a trabalhar tanto e revela que todo o sucesso do circo se deve a ele e, com isso Charlie renegocia seu salário para permanecer no circo.

Neste ponto, como quebra da harmonia que mantém o equilíbrio entre a satisfação de algumas expectativas e a tensão em relação ao desfecho, aparece uma nova atração no circo, um artista que anda sobre a corda bamba, e a filha do dono se apaixona por ele no momento em que Charlie apaixonou-se por ela. Isso faz com que o sucesso de Charlie acabe, a plateia não acha mais graça em seu número. Essa situação gera uma decepção. Fica estabelecido o contraste entre Charlie, pobre e desalinhado, e o artista da corda bamba, elegante, bem articulado.

Para salvar a moça da opressão do pai, Charlie, após seu fracasso, planeja que o artista da corda bamba se case com ela. À decepção acrescenta-se mais um elemento de simpatia a Charlie, uma nobreza ingênua: Charlie sai da igreja pulando atrás dos noivos jogando arroz, conseguiu que a moça fosse agora bem tratada pelo pai. Os elementos patéticos se articulam e criam um final angustiante que contrasta com o humor investido sobre o filme inteiro. É o desfecho da construção de um personagem inteiramente espontâneo, que faz sucesso e não percebe, vive a vida de improviso. O circo todo vai embora e Charlie fica sentado sozinho no chão. Depois ele se levanta e também se vai, segue seu caminho, como se nada lhe tivesse acontecido de mal.