quarta-feira, 28 de julho de 2010

variação

Parte 1

Primeiro ocaso:
No asfalto gasto rachaduras estendiam suas veias, ainda sem expor a terra, componente interior em constante luta inerte para impor-se. Raiz rumo ao fundo na terra, ramos arrastam-se pelo asfalto, uma planta cresce solitária. Cansou de ser semente em descanso por anos, brotou, para baixo e para cima. Rara erva-daninha em solo inóspito e desabitado, uma estrada vazia, nas margens, terra arrasada. Dia após dia após dia após dia, centímetro a centímetro a centímetro buscando algo além do asfalto ou do solo seco, apenas desolação. Não conseguia secar e morrer, persistia, alargando sua área por espaços repetitivos, prolongava-se no isolamento sem saber onde acabar, até abraçar o mundo na esperança de estrangular a si mesma.

Segundo ocaso:
Apenas um maquinismo, desconheciam os outros o seu passado. Ele lembrava: uma infância divertida, escola, namoradas, tardes de domingo a quebrar vidraças com estilingue. Um carro ou um ônibus ou um avião, pouco importa: uma pancada, um arremesso, o chão e depois escuridão. Todos diziam coitado, um menino tão bom, deveria ter sido mais cuidadoso ao atravessar a rua, tinha tanto futuro, não, não que estejamos querendo que ele morra, por Deus, torço para que ele recupere-se, é muito triste, coitadinho, melhoras, não abaixem a cabeça, a vida segue, é quase como naquela novela. Enquanto isso, olhos fechados, porém observando, o menino compreendia claramente as palavras e os gestos de todos que transitavam no quarto de hospital em que se perpetuava em seu coma. Dotado de outra forma de lucidez, não era mais criança, esta sua parte estava extinta, não partilhava das esperanças dos adultos, esperava não a sua morte, mas o sepultamento do mundo, poder continuar quieto em si mesmo e apenas isso.

Terceiro ocaso:
-- O tempo está nublado hoje. Será que chove?
-- De que me importa esse clima, estamos de qualquer forma condenados, seja sob o sol que nos racha o crânio, seja sob a chuva que nos afoga a angústia, pouco muda, a constância de nosso sofrimento nem ao menos se contenta em morrer conosco, aguarda paciente e espalha-se por todos quando lhe convém.
-- Imagino que chova, olhe, os pássaros estão voando baixo.
-- Espero que suas asas queimem e tornem-se bolas de fogo a incendiar todo o globo terrestre.
-- Deu-me vontade de fumar, tens isqueiro?
-- Usa o fogo do teu rabo, seu pulha!
-- Melhor corrermos enquanto podemos.
-- Para onde?
-- É... não sei.
-- E quem sabe?
E os estranhos seguiram cada qual um rumo.

Ruína edificada:
Conseguia perder-me em pensamentos sobre como seria melhor reatar relações com uma ex-namorada, como poderia reconciliar-me com o meu avô, como poderia ganhar muito dinheiro sem muito esforço, até que o despertador insistia, lá pelo seu terceiro minuto sem pausa, em lembrar-me que sonhos não convinham, menos ainda estando acordado. Na rua, tudo muito quieto, ou eu muito distraído, ou muito concentrado, certamente indeciso. Construções havia, mas pouco me lembro delas, pouco me lembro de onde acordei nesta manhã, apenas resta o som do despertador como último apoio para minha memória, constante reforço do meu esquecimento. No presente, agora, vejo algo, presumo, sim, consigo, é isso, uma colina, não, aplainou-se, um vale, um prado talvez, a relva secando lentamente enquanto observo, as raízes lentamente recolhem as folhas e caules para dentro da terra numa tentativa de esconder algo que não me cabe compreender, lentamente todo o ambiente ao meu redor é circundado por paredes improváveis pelas quais a luminosidade consegue adentrar. Nada muda e tudo parece alterar-se, sou facilmente enganado pela minha percepção. Sinto o meu corpo em farelos, sinto ser eu mesmo a parede, paradoxo, sou a parede que impede a mim mesmo, sou a causa de minha imobilidade quando esboço alguma reação. Ao que parece, conservo-me, desprendido totalmente dos elementos que um dia achei necessário conservar. Sem ódio, raiva ou desprezo, aceito a situação e aguardo.

Parte 2

“I
...
30. Esta é a criação do mundo, que a dor de divisão é como nada, e a alegria da dissolução tudo.
31. Por estes tolos dos homens e suas penas de todo não te cuides! Eles sentem pouco; o que é, é balançado por fracas alegrias; mas vós sois meus escolhidos.
...
II
...
7. Eu sou o Mago e o Exorcista. Eu sou o eixo da roda, e o cubo no círculo. ‘Vinde a mim’ é uma palavra tola; pois sou Eu que vou.
...
23. Eu sou só: não existe Deus onde Eu sou.
...
56. Ide! vós escarnecedores; apesar de que rides em minha honra vós não rireis novamente: então quando estiverdes tristes sabei que Eu vos abandonei.
57. Ele que é correto será correto ainda; ele que é imundo será imundo ainda.
...
68. Endurece! Conserva-te a prumo! Levanta tua cabeça! não respires tão fundo – morre!
...
III
...
50. Maldição sobre eles! Maldição sobre eles! Maldição sobre eles!
...”.
Trechos de LIBER AL vel LEGIS.

Parte 3

1:


2:

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Brincadeira de Criança 3 - O Presente

Bom, já que esses personagens são um pouco.. velhos uhaahuahu... uma pequena nota explicativa:
O único garoto e a primeira garota a aparecer na história amam Boxe mais do que tudo =P.. Bleh.

Não sei como está de letra, se está legível ou não, espero que sim haha =P

E é um post para quebrar com o pessimismo geral disso aqui! Huahahaha!






quinta-feira, 22 de julho de 2010

Adversidade .4

Meu vizinho se fudeu, ultimamente. Tinha uns 50 e poucos anos, vivia com seus filhos e com um cachorro muito pequeno chamado Minsk. O cachorro era tão pequeno que não dava nem pra saber com certeza se ele existia realmente. Os filhos perderam a voz e a visão por causa da poeira dos arquivos históricos, quando pesquisavam uma documentação muito antiga sobre o movimento operário. Isso significa que esse vizinho falava muito pouco com eles, pois do jeito que as coisas estavam quase nunca se podia obter respostas coerentes.
Mesmo assim, nem tudo estava perdido, pois havia Minsk, o pequeníssimo cachorro, que apesar do tamanho ínfimo, tinha alegria... in-fi-ni-ta. Então, o tal vizinho chegava do trabalho e era recebido por Minsk, que pulava sobre ele. O cachorro entrava no bolso da camisa e fazia "hoa! hoa!", "Como vai, Minsk?", "hoa! hoa!", "Como foi seu dia?", "hoa! hoa!" E o diálogo continuava assim durante toda a noite. Os filhos permaneciam no sofá, diante da tv, pois, evidentemente, não viam a chegada do pai. De qualquer modo, não poderiam dizer-lhe nada, a não ser que encontrassem um modo razoável.
O vizinho se fudeu de verdade, quando certa vez adormeceu no sofá, diante da tv. Minsk, que era muito apegado, dormia ao seu lado, como já era costume. O que fudeu é que justamente nesse dia, o sono do tal vizinho era pesado demais. Tão pesado que, sonhando sobre problemas do trabalho, rolou sobre o cachorro, que teve seus ossos todos quebrados. O sangue manchou a camiseta branca do vizinho, o sofá e o chão. "Minsk!", "hoa! hoa!", Minsk!", "ho.." Os filhos permaneceram em seus lugares diante da tv, pois não viram a morte de Minsk, e não poderiam dizer facilmente suas impressões sobre ela.

Adaptação/distorção/plágio do conto de Graciliano Ramos chamado "Minsk" in Insonia

sábado, 17 de julho de 2010

dalton trevisan

“Ele está cansado, é quase meia-noite, e pode afinal voltar para casa. No beco, entre as úmidas manchas coleantes na calçada, os eternos casais enlaçados à sombra do muro. No edifício da esquina, o mesmo cachorro de focinho enterrado na lata de lixo. Ao passar sob as árvores, ao menor arrepio do vento, gotas borrifam-lhe o rosto, que ele não se incomoda de enxugar.
Ao mexer no portão, o cachorrinho late duas vezes – estou aqui, meu velho – e, por mais que saltite ao seu lado, procurando alcançar-lhe a mão, ele não o agrada. Afasta-o com o pé, abre a porta e avança devagarinho pelo corredor. Aquela noite não tivera sorte: uma luz ainda no quarto.
Prevenido, desvia-se do aquário sobre o piano: o peixinho dourado conhece os seus passos e de puro exibicionismo entrega-se às mais loucas evoluções.
Ele respira fundo e, cabisbaixo, entra no quarto. A mulher, sentada na cama, a folhear sempre uma revista (é a mesma revista antiga), olha para ele, mas ele não a olha.
No banheiro, veste em surdina o pijama e, ao lavar as mãos, recolhe da pia os longos cabelos alheio. Escova de leve os dentes, sem evitar que sangrem as gengivas.
-- Ai, como é triste a velhice... – confessa para o espelho, e são palavras que não querem dizer nada.
Aperta as torneiras da pia, do chuveiro e do bidê – se uma delas pingasse ele já não poderia dormir.
Na passagem, apanha o livro sobre o guarda-roupa – ele a olhou de relance, mas ela não o olhou – e dirige-se para sala, onde acende a lâmpada ao lado da poltrona. Em seguida, descalço, sobre na cadeira e com a chave dá corda ao relógio. Entra na cozinha e, ao abrir a luz, pretende não ver a mesma barata na sua corrida tonta pelos cantos. Deita um jarro d’água no filtro e bebe meio copo, que enxuga no pano e põe de volta no armário.
Antes de se sentar na poltrona, detém-se diante do quarto da filha – a porta está aberta, mas ele não entra. Esboça um aceno e presto recolhe a mão. Por mais que afine o ouvido não escuta o bafejo da criança em sossego – e se ela deixou de respirar?
Em luta contra o pânico, deixa-se cair na poltrona, a luz amarela do abajur aquece-lhe a face esquerda. Abre o livro e concentra-se na leitura: frases sem nenhum sentido.
Na casa silenciosa, apenas o voltear das folhas lá no quarto, às suas costas o peixinho estala o bico a modo de um velho que rumina a dentadura. Por vezes, cansado demais, cabeceia e o livro cai-lhe no joelho – enquanto não se apaga a luz do quarto ele não vai deitar.
Nunca mais ela perguntou: Você não vem? Nem ele respondeu: Já vou – e sem se mexer do seu cantinho. Uma noite ou outra, certo, ela assoava o nariz – seria para disfarçar as lágrimas? Não ela, para quem a noite é sem problema, palavra esta que, com grande irritação dele, pronuncia sem o erre. Para não se comover, ele espia ora a fruteira sobre a mesa (as frutas berrantes de cera) ora o quadro bordado na parede (o medonho galo verde).
Está salvo desde que ignore a porta do quarto da filha; ergue, com esforço, as pálpebras pesadas de sono e lê mais algumas linhas, evitando levar a mão ao rosto, onde um músculo dispara de repente a tremer no canto da boca. As pesadas pálpebras não o enganam: basta que recoste a cabeça no travesseiro a fim de entender os passos furtivos do sono que se perde ao longe.
Ao extinguir-se enfim a outra luz, ele deixa passar alguns minutos e, arrastando os pés no tapete, recolhe-se ao quarto, acende a lâmpada do seu criado-mudo, com cautela infinita para não encarar a esposa que, voltada para o seu lado, pode estar com um olho aberto ou, quem sabe, até com um sorriso nos lábios. Despindo o roupão, fecha a lâmpada e estende-se com um suspiro na sua cama, radiante por não a ter olhado.
Será uma grande demora até que na rua clarinem as primeiras buzina – os galos da cidade. Não tem esperança de dormir e queda-se a revirar as memórias de infância como faz a cozinheira sobre a chama azul do álcool com o frango de pescoço quebrado. Prepara-se para a noite em que há de entrar numa casa deserta e, ao abrir a porta, assobiará duas notas, uma breve, outra longa: todos os quartos vazios, o assobio é para a sua alma irmã, a baratinha no canto escuro.
Emergindo de um pesadelo, senta-se na cama com grito estrangulado. Em vão se esforça para distinguir algum sopro no quarto da filha – se ela deixou de respirar sem ninguém para acudi-la?
A mulher agita-se na cama e com um gemido – Ai, meu Deus do céu – afasta as cobertas e, instantes depois, ele escuta lá no banheiro o jorro poderoso da urina. Longe vai a manhã, mas resta-lhe o consolo de que, ao saltar do leito, esquecerá entre os lençóis o fantasma do seu terror noturno. Outra vez ergue-se no quarto o ressonar tranqüilo da esposa; cuidadoso de não ranger o colchão, ele volta-se para o outro lado. Pouco importa se nunca mais chegar a dormir. Afinal você não pode ter tudo”.

--

"A arte da solidão", de Dalton Trevisan, em A guerra conjugal.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Tradução - Trecho do livro: "Um Estudo em Vermelho"

Tradução do trecho: Doyle, Conan A. Sherlock Holmes: The Complete Novels and Stories - Volume I. Bantam Dell, NY, pp. 63 - 65, 2003


Parte 2
O País dos Santos


Capítulo 1
Sobre a Grande Planície Alcalina


Na porção central do grande Continente Norte-Americano existe um deserto árido e repulsivo, que por muitos longos anos serviu de barreira contra o avanço da civilização. Da Sierra Nevada até o Nebraska, e do Yellowstone River no norte até o Colorado no sul, há umm local de desolação e silêncio. A Natureza não apresenta um único humor através desse distrito desagrádavel. Ela se constitui de altas montanhas com neve nos picos, e vales tenebrosos e profundos. Há rios velozes que correm através dos cânions irregulares; e há enormes planícies, que no inverno são brancas por causa da neve, e no verão são cinzas por causa da areia salgada e alcalina. Todos preservam, entretanto, as características comuns de aridez, inospitalidade e miséria.

Não existem habitantes destas terras de desespero. Grupos de Pawnees ou de Blackfeet ocasionalmente atravessam-na para atingir outros campos de caça, mas, mesmo os mais corajosos dos valentes ficam felizes de perderem de vista estas planícies imponentes e de se encontrarem de novo nas suas pradarias. Os coiotes se movem furtivamente entre as gramíneas, a águia bate suas asas sobre o ar, e o desajeitado urso pardo caminha pelas ravinas sombrias, e pega qualquer alimento que consegue encontrar entre as pedras. Esses são os únicos moradores na região selvagem.

Em todo o mundo não pode haver visão mais desoladora que aquela da encosta setentrional do Sierra Blanca. Até o alcance da visão se estende a vasta terra plana, toda salpicada de áreas alcalinas, e entrecortada por grupos de arbustos contorcidos. Na extremidade do horizonte erguem-se uma longa cadeia de montanhas, com seus cumes acidentados cobertos de neve. Nessa imensa extensão de terra não há sinais de vida, nem de qualquer coisa que se assemelhe a ela. Não há qualquer pássaro no céu azul, nenhum movimento em cima da terra dura e cinza – acima de tudo, existe o silêncio absoluto. Alguém pode tentar ouvir o quanto quiser, não há qualquer sombra de som em todo este impressionante deserto; nada, apenas silêncio – perfeito e opressivo silêncio.

Foi dito que não há nada que se assemelhe a vida nessa larga planície. Isto é dificilmente verdadeiro. Olhando de cima do Sierra Blanco, pode-se ver uma trilha feita através do deserto, que se vai e se perde na extrema distância. Ela é cheia de marcas de rodas e pisoteada pelos pés de muitos aventureiros. Aqui e ali há objetos brancos espalhados brilhando no sol e se sobressaindo ao depósito amortecido de alcalina. Se aproxime e os examine! São ossos: alguns largos e grossos, outros pequenos e delicados. Os primeiros pertenciam a bovinos, enquanto os últimos a homens. Por mil e quinhentas milhas é possível seguir a rota dessa caravana aterrotizante pelos restos dispersos daqueles que tombaram pelo caminho.

Olhando para este mesmo cenário, lá estava, no dia quatro de maio, 1847, um solitário viajante. Sua aparência era tal que ele poderia ser tanto o gênio como o demônio daquela região. Um observador acharia difícil dizer se ele estava mais próximo dos quarenta ou sessenta anos. Sua face era magra e cansada e sua pele morena, parecendo pegarminho, estava repuxada sobre os ossos salientes; sua barba e seus cabelos longos e castanhos continham vários fios brancos; seus olhos estavam enterrados em sua cabeça e queimavam com um brilho anormal; enquanto a mão que carregava o rifle não tinha muito mais carne que a de um esqueleto. Conforme ele se levantou, se inclinou sobre sua arma como apoio; e ainda assim, sua silhueta alta e estrutura óssea massiva sugeriam uma constituição forte e vigorosa. Sua face pálida, entretanto, e suas roupas, que pendiam folgadas sobre seus membros ressecados, eram o que davam a aparência tão sênil e decrépita. O homem morria – morria de fome e de sede.

Ele caminhara arduosamente ravina a baixo, e de lá até uma pequena elevação, na esperança vã de avistar sinais de água. Agora a grande planície salgada se estendia em frente aos seus olhos, e o distante cinturão de montanhas inóspitas, sem qualquer sinal de alguma planta ou árvore, que pudesse indicar a presença de umidade. Em toda a larga paisagem não havia brilho de esperança. Norte, e leste, e oeste, ele observava com olhos selvagens e inquiridores, e então ele percebeu que suas andanças haviam chegado a um fim, e que ali, naquele penhasco deserto, ele estava prestes a morrer. “Por que não aqui, assim como em um leito de plumas, daqui 20 anos?” ele murmurrou, enquanto se sentava ao abrigo de um rochedo.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Adversidade .3

Quando eu era criança eu me sentia como se eu fosse um personagem de Kafka ou de Graciliano. Isso era foda porque por mais que eu fizesse fitas de sofrer imensamente, sempre tinha o almoço feito pela mãe na hora certa; sempre tinha trocados mensais dados pelo pai para a compra de figurinha da copa, da Tiazinha, cachaça, Nietzsche, Dostoievski, pastel na esquina e só. Por mais que eu afetasse complexidades na minha visão de mundo, eu não podia deixar de me entreter, nas horas vagas, com o melhor da música, do cinema e do vídeo game de massas.
Então era assim, eu jamais seria como personagens profundamente deprimidos e decadentes. Isso porque, na verdade, eu era mentalmente são, não era miserável, estudava em boa escola, nem corno era - tinha uma namoradinha na vizinhança, a Mariazinha -, tinha muitos amigos, enquanto que os bons sofredores da literatura são solitários. No entanto eu nem me dava conta dessas diferenças, pois estava convencido de que estilo de verdade era permanecer no portão de casa olhando para o vazio, falar sozinho, ter idéias fixas, fumar e beber compulsivamente, crer na desgraça inescapável de um futuro obscuro e trágico.
Nesses tempos eu saia pela rua e encontrava Joaquim sentado na calçada. "Oh Joaquim... que merda hein! Merda de vida...", "É...", respondia Joaquim jogando mini-game. "O jeito é beber e morrer....e se fuder.", "É..." Depois disso escutava vir de dentro de casa: "Filhinho, o almoço tá pronto!" era minha mãe chamando.
Aí entrava em casa e sentava à mesa. "Construirei minha vida como uma obra de arte: um monumento em homenagem ao fracasso... Oh mãe, você falou que tava pronto o almoço, né?!", "Já to indo!", aí vinha a mãe com o almoço. Eu olhava triste para o prato. "Ah, mãe, a Mariazinha deve estar me traindo com o Joaquim. Minha vida não vale nada." Nessa hora o irmão, sentado há tempos à mesa, explodia: "Cala boca, você não sabe o que é sofrer!" O irmão tinha 32 anos, estava desempregado, solteiro e fazendo cursinho para o vestibular. Perdera uma perna e meio cérebro durante a guerra.
Então eu ia pro bar beber.
Depois cresci, tudo mudou, fiquei justo.
fim

domingo, 4 de julho de 2010

Foi ontem, broder!

Ontem tentei esmagar minha cabeça com minhas próprias mãos. Talvez seja impossível, como esses testes de tentar lamber o próprio cotovelo. A questão é que hoje eu acho que conseguiria. Foi ontem também que eu vi o Clark Gable pela primeira vez em "...E o vento levou". Aquele bigodinho de tarado e o sorrisinho de malandro no pé da escada não me encantaram como eu esperava. A questão é que, hoje, eu acho que deveria viver nos anos da Guerra de Secessão americana porque assim meu bigode ralo e minha presunção inócua, de quem acha que sabe muito, me daria um final honrado em algum filme dos anos 1930. Isso tudo com cobertura de lembrança até os anos 2000 como galã intocável de Hollywood. Não, eu não quero opção com batata frita, nem assada: limpe sua bunda com isso. Foi ontem, também, que eu sentei a lastimar meus insucessos e minhas desditas, por mais intelectualóide que isso soe. O problema é que, eu, hoje, continue nessa vibe, por mais perdedor que isso pareça. É isso aê, Gaê! [se me permite usar seu santo nome para uma ridícula rima que lima o ridículo coração que segue feito de migalhas]. Ontem parece mais interessante que hoje.