sexta-feira, 9 de julho de 2010

Adversidade .3

Quando eu era criança eu me sentia como se eu fosse um personagem de Kafka ou de Graciliano. Isso era foda porque por mais que eu fizesse fitas de sofrer imensamente, sempre tinha o almoço feito pela mãe na hora certa; sempre tinha trocados mensais dados pelo pai para a compra de figurinha da copa, da Tiazinha, cachaça, Nietzsche, Dostoievski, pastel na esquina e só. Por mais que eu afetasse complexidades na minha visão de mundo, eu não podia deixar de me entreter, nas horas vagas, com o melhor da música, do cinema e do vídeo game de massas.
Então era assim, eu jamais seria como personagens profundamente deprimidos e decadentes. Isso porque, na verdade, eu era mentalmente são, não era miserável, estudava em boa escola, nem corno era - tinha uma namoradinha na vizinhança, a Mariazinha -, tinha muitos amigos, enquanto que os bons sofredores da literatura são solitários. No entanto eu nem me dava conta dessas diferenças, pois estava convencido de que estilo de verdade era permanecer no portão de casa olhando para o vazio, falar sozinho, ter idéias fixas, fumar e beber compulsivamente, crer na desgraça inescapável de um futuro obscuro e trágico.
Nesses tempos eu saia pela rua e encontrava Joaquim sentado na calçada. "Oh Joaquim... que merda hein! Merda de vida...", "É...", respondia Joaquim jogando mini-game. "O jeito é beber e morrer....e se fuder.", "É..." Depois disso escutava vir de dentro de casa: "Filhinho, o almoço tá pronto!" era minha mãe chamando.
Aí entrava em casa e sentava à mesa. "Construirei minha vida como uma obra de arte: um monumento em homenagem ao fracasso... Oh mãe, você falou que tava pronto o almoço, né?!", "Já to indo!", aí vinha a mãe com o almoço. Eu olhava triste para o prato. "Ah, mãe, a Mariazinha deve estar me traindo com o Joaquim. Minha vida não vale nada." Nessa hora o irmão, sentado há tempos à mesa, explodia: "Cala boca, você não sabe o que é sofrer!" O irmão tinha 32 anos, estava desempregado, solteiro e fazendo cursinho para o vestibular. Perdera uma perna e meio cérebro durante a guerra.
Então eu ia pro bar beber.
Depois cresci, tudo mudou, fiquei justo.
fim

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