segunda-feira, 25 de março de 2013

Sonata de outono, 1978 (dirigido por Ingmar Bergman)


O ódio que é possível sentir pela mãe. Eva tem todos os atributos que fazem ser possível expressar com toda a força e toda a clareza este sentimento. Há um fator implícito, é a classe da família em questão. Trata-se de uma classe alta que tem familiaridade com a cultura, provavelmente em contato com um círculo de escritores e músicos. Eva escreveu dois livros; seu marido também é escritor. Charlotte, mãe de Eva é uma pianista de grande sucesso internacional.

Eva, portanto, é uma pessoa sensível e intelectualmente capaz de identificar e definir as complexas redes emocionais que existem entre ela, o marido, – que ela não ama – o filho morto, a irmã deficiente que vive em sua casa e a mãe. Ao mesmo tempo, Eva é ingênua, ou pelo há algo em sua expressão que a coloca deste modo diante dos outros, tem um forte complexo de inferioridade e auto rejeição. Tudo isso define uma disposição ao sofrimento intenso.

As tensões são reveladas aos poucos e os dramas familiares podem ser compreendidos de forma geral tendo em vista filmes que trazem conflitos centrais da mesma natureza como Cenas de um casamento, Saraband, O Silêncio e Persona. A grande animação com que Charlotte é recebida, aos poucos é pontuada por elementos de incômodo que indicam a transformação que acontecerá na disposição de Eva. O primeiro elemento é a revelação de que Helena, a irmã deficiente estava vivendo naquela casa. Esta revelação muda a disposição de Charlotte, até então uma mulher apresentada como uma artista, uma pessoa talentosa, orgulhosa de si, feliz por rever a família. Ao ouvir falar de Helena ela fica perturbada. Ao entrar no quarto de Helena ela lida perfeitamente com a situação controlando-se ao máximo diante das contorções da menina, incapaz de falar e de andar sem enormes dificuldades. Estas mudanças súbitas no comportamento de Charlotte anunciam o traço de seu caráter que será assinalado ao longo do filme, a incapacidade de demonstrar sentimentos, a tendência à dissimulação. Essa característica que, por Eva será entendida como falha imperdoável, em alguns momentos parece, no entanto, algo que foge ao conhecimento de Charlotte, uma vez que esta característica está sempre associada ao seu sucesso como pianista, não apenas pelos compromissos que a tiravam do convívio da família quando Eva ainda era uma criança, mas por um amor profundo à música, uma devoção à arte que parece absorver completamente as atenções e os afetos de Charlotte.

Sobre este aspecto há uma cena central, na qual Charlotte pede a Eva que toque uma peça de Chopin ao piano. A insegurança e a relutância de Eva já indicam o sentimento de inferioridade que sua técnica limitada produz em relação ao modo intenso como a mãe compreende a música e à forma precisa como a executa. Quando Eva termina de tocar e Charlotte, assumindo o piano, mostra a ela como deve ser, a expressão de Eva é inequívoca quanto ao sentimento de inferioridade que se expande na direção do ódio, do ressentimento, etc.

De fato, nas cenas em que Charlotte fala sozinha no quarto, preparando-se para o jantar, convencendo-se de que não pode chorar, evidencia-se o desprezo que a tem por Eva, pela personalidade fraca de Eva, sua ingenuidade, sua autopiedade, sua tendência a falar de modo dramático sobre o próprio sofrimento.

A sequência central do filme vem após o pesadelo que faz Charlotte acordar no meio da madrugada. A cena do pesadelo cria sensações complicadas. Uma mão acaricia a mão de Charlote, depois passa para o rosto e, em seguida começa a sufocá-la. A cena remete talvez a descrição mórbida de Eva, que frequentemente ainda sente a presença e o toque do filho morto. Depois do desfecho, a cena pode ser entendida como representação da culpa. Pode ser a mão de Helena, ou mesmo a de Eva. Charlotte se levanta após o pesadelo e nisso começa uma conversa na qual Eva está disposta a dizer tudo o que sente. É uma sequência importante para o entendimento do modo como o personagem fraco, consciente de ser fraco se coloca diante do forte, mais precisamente, diante de seu opressor, diante daquele que o tornou fraco e, irreversivelmente, impotente e insensível: Eva considera-se incapaz de amar.

terça-feira, 5 de março de 2013

A festa de Babette, 1987 (dirigido por Gabriel Axel)


O filme discute a relação entre as transformações dos costumes e a tendência à imobilidade das comunidades tradicionais.

Desde o início a presença de Babette na casa humilde de Martina e Philippa é um elemento de estranhamento. Babette é uma cozinheira francesa, Martina e Philippa são mulheres muito simples, profundamente religiosas, filhas do pastor de uma aldeia isolada da Dinamarca, fundador de uma igreja própria que segue dos preceitos de Cristo. Estes atributos, assim como a expressão sempre serena, as roupas sem cor, o trabalho de caridade, caracterizam as irmãs.

Quando Babette se dispõe a preparar um jantar francês para a comemoração do centenário do pastor, coloca-se a situação de contraste de realidades. A comida da aldeia é caracterizada como todas as outras coisas: sem cor, invariável e na medida do suficiente. Quando chegam os produtos encomendados por Babette, é a variedade e a diversidade que causam espanto e terror às pessoas da aldeia. Os ingredientes são apresentados em uma profusão de itens exóticos: uma tartaruga morrendo sobre a pia, uma cabeça de boi, pés de galinha, uma gaiola com codornas vivas. Esta profusão de animais e partes de animais horríveis chega ao nível do delírio no pesadelo de uma das irmãs, em que a cabeça de boi a tartaruga e todas as coisas se misturam. No pesadelo aparece também o vinho como elemento central do medo.

A natureza do horror é explicitada e traduzida pelas irmãs em termos religiosos. O desejo de agradar Babette permitindo que preparasse o jantar, acabou colocando em risco a comunidade, colocando a comunidade em contato com forças do mal. Os convidados para o jantar são os poucos seguidores restantes da religião do velho pastor. Suas considerações antes do jantar são importantes para a tensão que se criará durante o jantar e, para a satisfação das expectativas sobre o que deve vir depois. Nessas considerações os religiosos entram em acordo de que ninguém dirá uma palavra sobre a comida. Eles irão comer, mas a comida não importa, é alimento do corpo, mera prisão material e temporária da alma.

Quando é servido, evidencia-se o luxo da decoração, com grande quantidade e, variedade de candelabros, taças, pratos e talheres especializados. Cria-se o primeiro contraste em relação à simplicidade das vestes, expressões e gestos dos convidados. Um novo elemento de contraste aparece, é um novo convidado, o General Lorens vindo da corte da Suécia, é um homem que já esteve em Paris. Ele está fardado e tem a capacidade de distinguir as marcas e as safras dos vinhos, faz elogios e não esconde sua satisfação com a comida.

O comportamento dos convidados religiosos tem uma transformação gradual que conduz as expectativas criadas até seu desfecho. Eles comem, permanecem em silêncio, mas já é possível perceber em suas expressões uma satisfação que surge independente de seus esforços, prazer na comida. Seguem-se tentativas de resistência, nas quais citam a vida exemplar de fé e os ensinamentos do velho pastor. O vinho é o elemento desbloqueador final, que acelera a transformação das disposições em relação à comida.

De fato, Babette se considera uma artista e declara às irmãs, ao final do banquete, que para uma artista não há satisfação maior que fazer bem feita sua arte, portanto não se arrepende de ter gastado com o jantar todo seu dinheiro. Evidencia-se o lugar da preparação da comida como arte e o entendimento da arte como prática que transforma a partir da conquista das sensibilidades. Nesse caso, especificamente, a arte conquista em nome da civilização, do gosto francês abrindo aquelas mentes dinamarquesas obscuras.