quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

O Idiota, 1951 (direção de Akira Kurosawa)





O filme discute o amor, como ele funciona, como se define em relação aos demais sentimentos. A discussão acontece a partir de um tipo ideal de bondade, Kameda, que, na verdade, traz em si um elemento de desconforto, o fato de que o homem capaz da bondade mais pura é (talvez necessariamente) um idiota. O idiota é incapaz de malícia, de mesquinhez, de inveja. Ele aprendeu a amar todos os seres humanos, sem restrição, no momento em que esteve diante da morte e, no último minuto pode escapar. O choque de ser salvo foi o que o tornou idiota, e ele tinha consciência disso, de ser idiota e puramente bom.

Kameda é apresentado em seu primeiro encontro com Akama. O personagem de Akama reforça o de Kameda. Akama apresenta uma expressão com traços fortes, que contrastam com a fragilidade de Kameda. Akama entende a si mesmo como alguém que não é muito confiável, alguém que não é bom, suas atitudes o caracterizam de acordo ao longo do filme. Mas Akama não pode ser inteiramente mau, e é justamente sua disposição especificamente em relação a Kameda que coloca em seu personagem um elemento de ambiguidade no funcionamento de seus sentimentos.

Sobre o sentimento que Kameda desperta nas pessoas, acontece ao longo de todo o filme, o encontro que os personagens têm com algo oculto dentro de si mesmos, que apenas Kameda, em sua bondade idiota é capaz de revelar. Kameda consegue descobrir o que há verdadeiramente no coração das pessoas. Isso é colocado claramente quando surge a personagem central para as reações emocionais de todos os personagens, Taeko. Antes que ela apareça em pessoa, Kameda vê uma pintura sua na vitrine de uma loja da cidade de Saporo, sempre coberta de neve. Kameda chora ao ver a pintura e diz que vê nos olhos daquela mulher uma grande infelicidade.

Taeko foi uma concubina e aparece pela primeira vez quando está sendo negociado o valor para casar-se com ela. Um homem oferece 600 mil ienes, aparece Akama e oferece um milhão de ienes. O ambiente e o clima é de degradação e Kameda, com sua expressão de pureza entra em cena estabelecendo contraste com a disposição predominante. O sarcasmo de Taeko se dissolve quando Kameda diz a ela que sabe que ela não é daquele tipo de mulher. Revela a Taeko a essência de seu próprio ser. Começa a primeira sequência de ambiguidade forte de sentimentos. Taeko chora, diz que ficará com Kameda, depois aceita o milhão de ienes de Akama e casa-se com ele. Ela não se considera merecedora de Kameda. Todos os presentes riem. Ao longo do filme Kameda é sempre motivo de riso, por ser idiota. Essa disposição muda à medida que sua bondade revela sua superioridade sobre todos os não idiotas. No final do filme essa impressão é colocada claramente quando, após a morte de Kameda, Ayako declara que ela é que é idiota, que não deu o devido valor à sua bondade.

Ayako é a personagem que equilibra as relações já estabelecidas entre Kameda, Akama e Taeko. Desde o início, Ayako é colocada como uma mulher de temperamento forte, um pouco arrogante, que costuma dizer o contrário do que realmente quer... Essa visão é colocada principalmente pela mãe de Ayako, personagem que caracteriza a si mesma como uma pessoa muito franca naquilo que diz. As ambiguidades de Ayako são reforçadas pela influência de Taeko, que sem deixar de amar Kameda, por cartas incentiva Ayako a casar-se com ele. A personagem de Taeko é revestida por elementos para a composição de uma personalidade trágica, que quer a felicidade de Kameda, privando-o de si mesma, que não consegue libertar-se da culpa e do sentimento de indignidade que lhe traz seu passado. Uma sequência de cenas em que Ayako fala e Kameda apenas ouve deixa clara sua ambiguidade, sua dúvida sobre se deve ou não casar-se com ele, considerando todos os aspectos de seu amor por ele e do amor dele por Taeko.

Por fim eles se casam, mas Ayako quer conhecer pessoalmente Taeko, mostrar-se vitoriosa. É o momento em que são satisfeitas as expectativas criadas ao longo de todo o filme, para ver colocados diretamente em confronto os elementos que causam tensões e ambiguidades com as quais os personagens não conseguem lidar facilmente para tomar decisões. Taeko diz a Ayako para ir embora e levar com ela Kameda, explicitando o medo que ela sabe que inspira a Ayako. Após um instante de hesitação, Taeko diz que mudou de ideia (mas tudo já estava, provavelmente, premeditado) e desafia Ayako, dizendo que terão que disputar o amor de Kameda, que ela pedirá a Kameda que ele abandone Ayako e ela irá terá que ir embora sozinha. Enquanto isso já se vê ao fundo Akama calado e perplexo, com a raiva crescendo em sua expressão. Esse enquadramento já indica o desfecho da cena.

A identificação entre amor e compaixão, enunciada várias vezes ao longo do filme, é explicitada. Kameda é obrigado a escolher. A câmera oscila entre o rosto de Taeko e de Ayako e a expressão de Kameda. A expressão de Taeko é de dor, de alguém profundamente infeliz, justamente o que comoveu tanto a bondade do idiota desde o início ao ver o quadro de Taeko na vitrine. Kameda não pode evitar de escolher Taeko, e Ayako correu para a rua, no meio da tempestade de neve. No desfecho já anunciado, Kameda foi atrás de Ayako e não a encontrou. Ao retornar Akama já havia matado Taeko.

É importante a relação entre Kameda e Akama. Akama tem vontade de matar Kameda desde o primeiro momento em que Taeko entra em suas vidas. Entretanto, sempre que estão cara a cara, Kameda inspira a Akama simpatia e bons sentimentos. É seu poder de idiota. No momento em que Akama revela esse sentimento ambíguo a Kameda, Kmeda sorri, e os dois vão tomar chá na casa da mãe de Akama, que é como um santuário, onde a velha passa seus dias rezando a Buda. A mãe de Akama contribui para a definição do idiota e de sua bondade. Ela também é idiota, em certo sentido. Recebe os dois, permanece sorrindo em silêncio o tempo todo e por simpatizar com Kameda oferece-lhe um pedaço do bolo oferecido a Buda. Akama é filho da santa, mas convencido de sua maldade. Diz a Kameda que ele aprendeu com a mãe a rezar e carrega com ele um talismã. Kameda não acredita em Deus, mas carrega consigo uma pedra que guardou no momento em que ficou idiota ao escapar da morte à qual estava condenado. Eles trocam os talismãs sem nenhum motivo, mas para Kameda isso significou um pacto de confiança, baseado no qual ele não temeu quando, depois disso Akama ameaçou matá-lo.

Na casa de Akama, Kameda demonstrou uma obcessão pela faca nova colocada em cima de mesa. Esta cena já indicava que com essa mesma faca, mais tarde, Akama mataria Taeko. Com Taeko morta no quarto, Akama e Kameda perdiam o juízo e conversavam sobre como a faca entrou no corpo de Taeko sem sangrar muito. Aparentemente de loucura e dor os dois morreram.

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