quarta-feira, 27 de abril de 2011

george orwell

"O fato que precisa ser encarado é que abolir as divisões de classe significa abolir uma parte de você mesmo. Aqui estou eu, um membro típico da classe média. Para mim é fácil dizer que desejo que as distinções de classe desapareçam, mas quase tudo o que penso e faço é resultado das distinções de classe. Todas as minhas ideias - meus conceitos sobre o bem e o mal, o agradável e o desagradável, o engraçado e o sério, o feio e o bonito - são, essencialmente, conceitos de classe média; meu gosto para livros, comida, roupas, meu senso de honra, minhas boas maneiras à mesa, as expressões que uso ao falar, meu sotaque, até mesmo os movimentos característicos de meu corpo, são produtos de certo tipo de educação e de certo nicho que fica mais ou menos na metade da hierarquia social. Quando me dou conta disso, percebo que não adianta dar tapinhas nas costas de um proletário e dizer que ele é um bom homem, tanto quanto eu; se eu desejar ter contato real com ele, tenho que fazer um esforço para o qual, muito provavelmente, estou despreparado. Pois para sair do esquema de classes eu teria que suprimir não apenas meu esnobismo particular, mas também a maior parte dos meus demais gostos e preconceitos. Tenho que modificar a mim mesmo tão completamente que no fim mal serei reconhecido como a mesma pessoa. O que está implícito aí não é simplesmente melhorar as condições da classe proletária nem evitar as formas mais estúpidas de esnobismo, e sim abandonar por completo as atitudes da classe superior e da classe média em relação à vida. E quanto a isso, direi sim ou não? Provavelmente depende de até que ponto eu percebo o que se exige de mim.
Muita gente, porém, imagina que consegue abolir as distinções de classe sem fazer nenhuma mudança desconfortável em seus próprios hábitos e na sua 'ideologia'. Vêm daí as impetuosas iniciativas para romper as barreiras de classe que podemos ver por todo lado. Em toda parte há pessoas de boa vontade que acreditam sinceramente que estão trabalhando para derrubar as distinções de classe. O socialista de classe média se entusiasma com o proletariado e organiza 'escolas de verão' onde o proletário e o burguês arrependido devem cair um no braço do outro e se tornar irmãos para sempre; e os visitantes burgueses saem de lá dizendo como tudo aquilo é maravilhoso e inspirador (os proletários saem dizendo coisas bem diferentes). E há também aquele tipo de burguês piedoso e benemérito, relíquia do período de William Morris e do socialismo cristão, mas ainda surpreendetemente comum, que vive dizendo: 'Mas por que deveríamos nivelar por baixo? Por que não nivelar por cima?', e propõe subir o nível da classe trabalhadora (até alcançar o seu próprio) por meio de higiene, suco de frutas, controle de natalidade, poesia etc. Até mesmo o duque de York (hoje rei George VI) organiza um acampamento anual onde se espera que jovens das public schools [na Inglaterra, "public school" é uma escola particular de elite, com elevados custos para o aluno] e garotos da favela se misturem em termos exatamente iguais - e, aliás, de fato se misturam nesse período -, mais ou menos como os animais nessas gaiolas do tipo 'Família Feliz', onde um cachorro, um gato, duas doninhas, um coelho e três canários mantêm uma trégua armada enquanto o olho do treinador está bem firme em cima deles.
Todos esses esforços deliberados e conscientes para romper as divisões de classe são, creio, um equívoco muito sério. Às vezes são apenas fúteis, mas, quando apresentam um resultado definido, em geral só servem para intensificar o preconceito de classe. E isso, pensando bem, é o que se poderia esperar. Você forçou o ritmo e armou uma igualdade incômoda, e nada natural, entre uma classe e outra; o atrito resultante traz à superfície todo tipo de sentimentos que sem isso teriam permanecido enterrados, talvez para sempre. [...] O sujeito de classe média que vota no ILP [Independent Labour Party] e o barbudo que toma suco de frutas são totalmente a favor de uma sociedade sem classes, contanto que enxerguem o proletariado pela outra ponta do telescópio; basta forçá-los a ter algum contato real com um proletário - entrar em uma briga com um estivador bêbado em um sábado à noite, por exemplo - e eles são capazes de voltar bem rápido a um esnobismo de classe média do tipo mais vulgar. A maioria dos socialistas de classe média, porém, não tem a menor probabilidade de entrar em brigas com estivadores bêbados; e quando fazem algum contato genuíno com a classe trabalhadora, em geral é com a intelligentsia da classe trabalhadora. Mas a intelligentsia da classe trabalhadora pode ser dividida nitidamente em dois tipos. Há o tipo que continua sendo da classe trabalhadora, que vai trabalhar como mecânico, operário braçal, ou seja lá o que for, e não se dá ao trabalho de mudar seu sotaque e seus hábitos proletários, mas que trata de 'educar a mente' em seu tempo livre e milita no ILP ou no Partido Comunista; e há o tipo que de fato modifica seu modo de vida, pelo menos exteriormente, e que, por meio de bolsas de estudo do Estado, consegue subir para a classe média. O primeiro é um dos melhores tipos de homem que temos por aqui. Lembro-me de alguns que conheci; nem mesmo o tory mais rígido e conservador poderia deixar de admirar esses homens e gostar deles. O outro tipo, com exceções - D.H. Lawrence, por exemplo -, é menos admirável.
[...]
Assim, é este o resultado da maioria dos encontros entre proletário e burguês; eles deixam a nu um antagonismo real, intensificado pelos clichês do 'proletariado', os quais também são produto de contatos forçados entre as classes. O único procedimento sensato é ir devagar e não forçar o ritmo. Se você se considera, secretamente, um cavalheiro e, enquanto tal, superior ao garoto de entregas do armazém, é muito melhor dizer isso às claras do que mentir. No fim você vai ter que largar mão do esnobismo; mas é fatal fingir que largou mão dele antes de estar realmente pronto para isso.
..."

Trechos da segunda parte de O caminho para Wigan Pier, escrito em 1936, tradução de Isa Mara Lando.

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