quarta-feira, 9 de junho de 2010

variação

Mais um. Era conhecido como número 14, um irmão. Participava das discussões, prevenia sobre desvios de conduta, estabelecia normas, acreditava. Tinha conhecimentos sobre os costumes antigos de nosso povo, sabia bons conselhos para dinamizar a mudança. Era um dos poucos confiáveis, se é que essa noção ainda era válida [no momento não acredito que fosse possível, mas... muitos são os que caracterizam suas alucinações individuais como verdades absolutas]. Isolado percebi minha doença, curei-me dela e, consciente, morro pela cura.
Chovia, confrontei Saloth Sar, o número um, expus algo, não sei o que, alguma insanidade, não havia mais lucidez, hoje percebo. Reuniões insanas, éramos comunistas? Éramos um partido? Representávamos quem? A morte. As mortes. Trágico demais? Antes fosse tragicômico. Não era, não foi, até onde estive presente. Vi corpos, ou melhor, transformei vidas em corpos: posso esclarecer, um exemplo banal, uma criança que seja, seu pai era suspeito de transgressão, cortei metade de um dedo antes de qualquer “oi”, meu sorriso era a introdução para a morte de... [lamento não saber o nome de todos que matei]; apenas gritos, choro e sangue; o pai também morreu; a mãe, estuprada e morta. Eu sorria, satisfeito.
Muitos foram os que torturei. Uma cova coletiva recebeu meu nome, orgulhei-me disso quando soube. A consciência da tortura, o conhecimento da tortura, o saber-fazer de desumanizar um semelhante: assumi isso como profissão, e com um sorriso, por algum tempo. A morte era minha constante, parte de minha vida, mas apenas como morte dos outros. Percebi minha parcela neste jogo de caminho certo, a vida para a morte, quando duvidei no momento de concordar. Ambição? Não sei, talvez estivesse cansado, questionei Saloth Sar, apontei para ele e gritei algum insulto leve. Estou em Tuol Sleng, ou S-21 para os mais íntimos [eu um deles, doce ironia], tenho meu espaço, pequeno, desconfortável e penso. Sim, ainda penso, agora penso, ainda sorrio, sorrio para mim mesmo, sou minha morte, sei o que me espera. Nada mais, tudo mais, estou morto, estou vivo, sei disso, espero, encaro o pouco de chão que me resta. Sorrio.



“III – Contra a obsessão da morte, os subterfúgios da esperança revelam-se tão ineficazes como os argumentos da razão: sua insignificância só faz exacerbar o apetite de morrer. Para triunfar sobre este apetite só há um único ‘método’: vivê-lo até o fim, sofrendo todas as suas delícias e tormentos, nada fazer para escamoteá-lo. Uma obsessão vivida até à saciedade anula-se em seus próprios excessos. De tanto insistir sobre o infinito da morte, o pensamento chega a gastá-lo, a nos enojar dele, negatividade demasiado plena que não poupa nada e que, mais do que comprometer e diminuir os prestígios da morte, desvela-nos a inanidade da vida.
Quem não se entregou às volúpias da angústia, quem não saboreou em pensamento os perigos da própria extinção nem degustou aniquilamentos cruéis e doces, não se curará jamais da obsessão da morte: será atormentado por ela, por haver-lhe resistido; enquanto quem, habituado a uma disciplina de horror, e meditando sua podridão, reduziu-se deliberadamente a cinzas, esse olhará para o passado da morte e ele próprio será apenas um ressuscitado que não pode mais viver. Seu ‘método’ o terá curado da vida e da morte.
Toda experiência capital é nefasta: as camadas da existência carecem de espessura; quem as escava, arqueólogo do coração e do ser, encontra-se, ao cabo de suas investigações, ante profundidades vazias. Em vão terá saudades do ornamento das aparências.
[...]”.
Emil Cioran, trecho de “Variações sobre a morte”, tradução de José Thomaz Brum.

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