quarta-feira, 15 de setembro de 2010

exercício trivial, adorno e ke$ha

A gratuidade aparente de elementos díspares dispostos em um mesmo espaço nada mais é do que a revelação (sagrada) da dialética da existência humana no presente, um diálogo entre mortos, enterrados em si próprios, apenas ressuscitados para consumir mercadorias, outros (tornados mercadorias), e o próprio Ser (finalmente fixado, fixado enquanto mercadoria).

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“Primeira medida precaucional do escritor: inspecionar em cada texto, em cada passagem, em cada parágrafo se o motivo central surge suficientemente claro. Quem quer expressar algo encontra-se tão impelido pelo motivo que se deixa levar sem sobre ele reflectir. ‘No pensamento’ está-se demasiado perto da intenção, e esquece-se de dizer o que se pretende dizer.
Nenhuma correcção é demasiado pequena ou fútil para não se dever realizar. Entre cem alterações, cada uma isoladamente poderá parecer pueril ou pedante; juntas podem determinar um novo nível do texto.
Nunca ser mesquinho com as riscaduras. A extensão é indiferente, e o receio de que o escrito não seja bastante, pueril. Por isso, nada ter por valioso pelo facto de estar aí, escrito sobre papel. Se muitas frases parecem variações da mesma ideia, amiúde significam apenas diferentes tentativas de plasmar algo de que o autor ainda não se apropriou. Deve então escolher-se a melhor formulação e continuar com ela a trabalhar. Uma das técnicas do escritor é poder renunciar inclusive a ideias fecundas, quando a construção o exige. Para a sua plenitude e força contribuem justamente as ideias suprimidas. Tal como à mesa não se deve comer até ao último bocado nem beber o copo até ao fundo. De outro modo, torna-se suspeito de pobreza.
Quem deseja evitar os clichês não deve limitar-se às palavras, se não quiser incorrer em vulgar coqueteria. A grande prosa francesa do século XIX era nisto particularmente susceptível. A palavra isolada raramente se revela banal: também na música o som isolado resiste à erosão. Os clichês mais odiosos são antes uniões de palavras do tipo das que Karl Kraus proferiu: plena e totalmente, para o melhor ou para o pior, construídas e aprofundadas. Nelas cicia, por assim dizer, o fluxo inerte da linguagem batida, em vez de o escritor, mediante o rigor da expressão, asserir a resistência exigida onde a linguagem se deve realçar. Isto não vale só para as uniões de palavras, mas também para a construção de formas inteiras. Se um dialéctico, por exemplo, quisesse assinalar a mudança do pensamento no seu avanço, começando após cada cesura com uma ‘mas’, o esquema literário desmentiria o propósito esquemático do raciocínio.
O matagal não é nenhum bosque sagrado. É um dever eliminar dificuldades que surgem simplesmente da comodidade na auto-compreensão. Não basta distinguir sem mais entre a vontade de escrever em forma densa e adequada à profundidade do objecto, a tentação do particular e a pretensiosa despreocupação: a insistência suspeitosa é sempre saudável. Quem não quiser fazer nenhuma concessão à estupidez do sadio senso comum deve resguardar-se de adornar estilisticamente ideias que de per si induzem à banalidade. As trivialidades de Locke não justificam o giro críptico de Hamann.
Se houver apenas objeções mínimas contra um trabalho concluído, indiferentemente da sua extensão, há que encara-las com uma seriedade incomum, fora de toda a relação com a relevância que possam ter. A carga afectiva do texto e a vaidade tendem a minimizar todo o escrúpulo. O que se deixa passar como uma dúvida mínima pode denotar o escasso valor objetivo do todo.
[...] A prudência que proíbe ir demasiado longe numa sentença quase sempre é agente do controlo social e, portanto, da estupidificação.
Cepticismo frente à objecção predilecta de que um texto ou uma formulação são ‘demasiado belos’. O respeito pelo tema, ou até pelo sofrimento, facilmente racionaliza apenas o rancor contra aquele para quem é insuportável encontrar, na forma reificada da linguagem, o vestígio do que os homens padecem, da indignidade. O sonho de uma existência sem ignonímia, que se afirma na paixão lingüística, quando já lhe é proibido visualizar-se como conteúdo, deve ser dissimuladamente estrangulado. O escritor não pode aceitar a distinção entre a expressão bela e expressão exacta. Não devem presumi-la num crítico timorato nem tolera-la em si mesmo. Se consegue dizer cabalmente o que se pensa, há nisso já beleza. Na expressão, a beleza pela beleza nunca é ‘demasiado bela’, mas ornamental, artificial, odiosa. Mas quem com o pretexto de estar absorvido no tema renuncia à pureza da expressão, o que faz é atraiçoá-lo.
Os textos assaz elaborados são como as teias de aranha: densos, concêntricos, transparentes, bem arquitravados e firmes. Absorvem em si tudo quanto ali vive. As metáforas que esquivamente passam por eles convertem-se em presa nutritiva. A elas acodem todos os materiais. A solidez de uma concepção pode julgar-se segundo o recurso às citações. Onde o pensamento abriu um compartimento da realidade, deve penetrar sem violência do sujeito na câmara contígua. Preserva sua relação com o objecto, logo que outros objectos se cristalizam à sua volta. Com a luz que dirige para o seu objecto determinado começam outros a brilhar.
O escritor organiza-se no seu texto como em sua casa. Comporta-se nos seus pensamentos como faz com seus papéis, livros, lápis, tapetes, que leva de um quarto para o outro, produzindo uma certa desordem. Para ele, tornam-se peças de mobiliário em que se acomoda, com gosto ou desprazer. Acaricia-os com delicadeza, serve-se deles, revira-os, muda-os de sítio, desfá-los. Quem já não tem nenhuma pátria, encontra no escrever a sua habitação. E aí inevitavelmente produz, como outrora a família, desperdícios e lixo. Mas já não dispõe de desvão e é-lhe muitíssimo difícil livrar-se da escória. Por isso, ao tirá-la da sua frente, corre o risco de acabar por encher com ela as suas páginas. A exigência de resistir à auto-compaixão inclui a exigência técnica de defrontar com extrema atenção o relaxamento da tensão intelectual e de eliminar tudo quanto tenda a fixar-se como uma crosta no trabalho, tudo o que decorre no vazio, o que talvez suscitasse, num estádio anterior, como palavriado, a calorosa atmosfera em que emerge, mas agora permanece bafiento e insípido. Por fim, já nem sequer é permitido ao escritor habitar nos seus escritos.”


Trechos de “Atrás do espelho”, de Theodor W. Adorno, presente em Minima moralia, tradução de Artur Morão.

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obs: para assitir ao vídeo dessa canção, e não apenas apreciar a letra, confira este link:
http://www.youtube.com/watch?v=oGhQNUCdQLU

2 comentários:

  1. Hum.. Esse texto do Adorno poderia se chamar "Sobre o Perfeccionismo da Escrita e sua Beleza" uhahuahua =P

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