terça-feira, 30 de março de 2010

raymond carver

Um conto alheio. Um breve vislumbre de um futuro possível e, talvez, próximo.

--

"O bebê estava deitado no berço ao lado da cama, usando um gorro branco e macacão. O berço tinha sido pintado recentemente e enfeitado com fitas azul-claro e forrado com colcha também azul. As três irmãzinhas e também a mãe, que tinha acabado de levantar da cama e ainda não estava totalmente acordada, bem como a avó, estavam em volta do bebê, observando seu olhar e a mãozinha, que às vezes levava à boca. Ele ainda não sorria, mas, de vez em quando apertava os olhinhos e mexia a língua entre os lábios, quando uma das meninas mexia em seu queixo.

O pai estava na cozinha e podia ouvi-las brincando com o bebê.

-- De quem você gosta mais, nenê? -- perguntou Phyllis, apertando-lhe suavemente o queixo.

-- Ele gosta de todos nós -- Phyllis disse --, mas acho que ele prefere o papai, porque ele também é homem.

A avó sentou-se na beirada da cama e disse:

-- Olhe seus bracinhos. Tão gordinhos. E os dedinhos... iguaizinhos ao da mamãe.

-- Ele não é uma fofura? -- perguntou a mãe. -- Tão saudável meu garotinho. -- E, curvando-se, beijou a testa do bebê e puxou a manta sobre seus bracinhos. -- Nós também o amamos muito.

-- Mas com quem ele é parecido, com quem? -- gritou Alice e todas se aproximaram mais do berço, para ver com que o bebê se parecia.

-- Os olhos dele são bonitos -- disse Carol.

-- Todos os bebês têm olhos bonitos -- retrucou Phyllis.

-- Ele tem os lábios do avô -- observou a avó. -- Olhe bem o desenho dos lábios.

-- Não sei -- disse a mãe. -- Realmente, não sei.

-- O nariz, o nariz -- disse Alice.

-- O que tem o nariz dele? -- a mãe perguntou.

-- Parece com o nariz de alguém -- a menina respondeu.

-- Não, não sei -- dise a mãe. -- Acho que não.

-- Esses lábios... -- a avó murmurrou. -- Estes dedinhos... -- disse, descobrindo as mãozinhas e acariciando os pequenos dedos.

-- Com quem o bebê é parecido?

-- Ele não se parece com ninguém -- Phyllis disse. E todas se aproximaram ainda mais.

-- Já sei, eu já sei -- disse Carol. -- Ele parece com o papai. -- E todas olharam mais atentamente para o bebê.

-- E com quem o papai se parece? -- perguntou Phyllis.

-- É. Com quem o papai parece? -- Alice repetiu e todas olharam ao mesmo tempo em direção à cozinha, onde o pai estava sentado à mesa, de costas para elas.

-- Com ninguém -- disse Phyllis começando a chorar.

-- Psiu -- fez a avó, voltando-se para olhar o bebê.

-- O papai não se parece com ninguém -- disse Alice.

-- Mas ele tem que parecer com alguém -- disse Phyllis, passando uma das fitas na frente de seus olhos. E todos, exceto a avó, olharam para o pai, sentado à mesa.

Ele se virara na cadeira e seu rosto estava pálido e sem expressão."


Carver, Raymond. "O pai" In Fique quieta, por favor [tradução de Maria Helena Torres]. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

Um comentário: