segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Variação aleatória inicial: Céline

Não estruturei trecho e escrita própria. Não proponho manifesto. Cito a cama quentinha, o que já basta.

Obs: o tempo gerou uma ambigüidade, mantida pela minha preguiça.

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Bernardo precisava sentir algo que lhe pertencesse. Há dias não aturava sua própria presença, menos ainda a minha, seu irmão, morto na Primeira Guerra – uma medalha e um resto de farda queimada, únicas lembranças materiais restantes, guardadas em uma gaveta, a dialogar com a poeira – memória presente assombrando todas suas madrugadas insones. O corredor escuro servia como passarela para o desfile do tempo, e ele caminhava noite adentro, vai e volta, vai e volta, até a estafa aniquilar sua vontade e o chão frio tornar-se o refúgio para a espera do pôr-do-sol. Chego e sento-me ao seu lado:

─ ...

Lábios movem-se, não há som. Encaro meu velho conhecido: hoje estou decidido; recuperarei algo. Preciso. Não posso esperar o sol. Não posso agüentar essa solidão com um fantasma morto por um obus.

Bernardo levanta-se com esforço e caminha com dificuldade até seu quarto. Nada pode ajudá-lo; só paliativos, breves instantes de consciência tranqüila antes do fim. Abre uma gaveta, atira uma medalha contra mim, o som dela batendo na parede ecoa por momentos longos demais. Resigno-me e olho fixamente para frente, aprecio a dissolução do tempo.

Ainda sobraram na gaveta um traste de pano queimado e uma velha faca artesanal, herança da família. O morto, eu e uma faca; o que poderia ser mais propício? Algo meu, recuperarei.

Ainda antes do sol nascer, antes de que eu desaparece por hoje, pude ver Bernardo colocar sua mão sobre o armarinho e cortar lentamente seu dedo indicador, sem gritos nem lágrimas, apenas com um sorriso sincero dirigido à mim, satisfeito consigo mesmo. Passou por dentro de mim, sangue escorria pelo seu caminho tortuoso até sua cama quentinha: dormiria, após muito tempo.

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“Ainda assim, o homem conseguiu desembuchar alguma coisa de articulado:
─ O segundo-sargento Barousse acaba de ser morto, coronel ─ disse de um só fôlego.
─ E daí?
─ Ele morreu indo buscar o furgão de pão na estrada das Etrapes, coronel!
─ E daí?
─ Um obus o estraçalhou!
─ E daí, Deus do céu!
─ E é isso! Coronel...
─ Só isso?
─ É, só isso, coronel.
─ E o pão? ─ perguntou o coronel.
[...]”. [1]

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[1] Céline, Louis Ferdinand. Viagem ao fim da noite [1932]. São Paulo: Cia das Letras, 1994.




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