quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Variação: Sartre e The Birthday Party

Mais uma brincadeira. Trecho, música e aquilo que escrevo dessa vez não são tão (ão ão ão, eco, eco) aleatórios. Descontextualizados, com certeza. Mas a vida é algo fora de contexto, então, tudo ok.

Caso alguém queira esclarecimentos ou insultar-me gratuitamente [ou não gratuitamente, vai saber], manifeste-se nos comentários. Caso tenha alguma proposta mais pessoal, peça meu cartão ou mande-me um email.

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“Hoje foi um ótimo dia. Sexta-feira mais agradável da minha vida: após o trabalho fui com os colegas do escritório para um bar e ficamos conversando por um bom tempo. Pude conhecer melhor a secretária do meu chefe... tanto tempo que eu queria conversar com ela, finalmente criei coragem. Poderemos ser bons amigos, espero. Ou quem sabe algo mais... acho que gosto dela [...]”.

Dez anos se passaram desde que escrevi essas palavras nesse caderno. Por que fui tirar a poeira disso? Hoje, sexta-feira, sete horas da manhã, quase na hora de ir para o escritório, e eu a encarar palavras vazias. Hoje, eu, casado, dois filhos, trabalho ainda no mesmo lugar. A secretária do chefe mudou: a do diário é agora minha esposa, largou o serviço para cuidar dos gêmeos e ajuda no orçamento como pode, vende bijuterias. Eu também mudei, e muito.

Foram-se os cabelos, boa parte. Desapareceu a paciência. Não mais tenho ereções. Não olho nos olhos de minha esposa, mas ainda beijo-lhe a testa. Vejo meu vazio refletido em meus filhos.

No serviço a nova secretária está cheia de gracejos para comigo: disse no meu ouvido que gosta de pais de família e que também gostaria de mostrar-me seus dotes, saiu sorrindo e rebolando. Nenhuma parte de mim manifestou-se.

Trabalho “minhas” oito horas com a dignidade de um inseto.

Estou decidido: não volto para casa após o serviço. Preciso de confirmações, saber se estou morto, ou moribundo a vagar pelo mundo a ser força de trabalho e criar descendentes e “ser feliz” e... quanto mais penso, mais obrigações, mais objetivos, mais justificativas para a vida surgem, e tudo isso está tão opaco, soa-me tão falso.

Mantenho minha decisão: tomo caminhos estranhos e tento me perder pela cidade, paro em alguns bares e bebo alguns tragos. Quase meia-noite e jogo meu relógio o mais longe que posso. Entro em uma boate, ou sei lá o que... é tudo tão iluminado e há pessoas semi-nuas e nuas dançando, homens, mulheres, homens-mulheres, mulheres-homens, não consigo definir muito bem, minha vista está embaçada, estou embaciado. Sento-me e alguém dança à minha frente: consigo discernir, acho, um rapaz movimentando-se, encarnação da libido: suas pernas ao ar, simetricamente trançando-se pelo poste: letargia e hipnose: pênis ereto e o rapazola sorri para mim em confidência: as três pernas dele dançam mais um pouco enquanto afogo-me com meu resquício de consciência.

Acordo nu em um quarto sujo. Sinto-me bem, pois não sinto nada. Transcendi o vazio. Em algum lugar alguém pode estar me esperando, mas eu não espero mais nada de mim, desapareci, ou melhor, todo o resto do mundo desapareceu. Sorrio.

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“Sentia-me cansado e superexcitado ao mesmo tempo. Não queria pensar no que ia acontecer de madrugada, na morte. Aquilo não tinha sentido, não encontrava senão palavras, um vazio. Desde, porém, que começava a pensar em outra coisa, via canos de fuzis apontados para mim. Vivi talvez umas vinte vezes seguidas a minha execução; numa delas cheguei mesmo a pensar que o fuzilamento tinha ocorrido; devia ter dormido um minuto. Eles me carregavam para o muro enquanto me debatia; pedia-lhes perdão. Acordei em sobressalto e olhei o belga; tinha medo de ter gritado durante o sono. Ele, porém, alisava o bigode e não notara nada. Creio que me esforçando teria dormido um pouco; havia quarenta e oito horas que estava em claro e me sentia esgotado. Mas não tinha vontade de perder duas horas de vida; viriam acordar-me de madrugada, segui-los-ia tonto de sono e estrebucharia sem um ai; não queria morrer como um animal, queria compreender. Além disso tinha medo de ter pesadelos. Levantei-me andei de um lado para o outro e, para afastar aquelas idéias, comecei a pensar no passado. Uma onda de lembranças surgiu em confusão. Havia-as boas e más – ou pelo menos eu as considerava assim antes. Via rostos e fatos. Revi a fisionomia de um toureiro que havia sido morto nos cornos de um touro em Valença durante a Feira, o rosto de um de meus tios, e o de Ramón Gris. Lembrei-me de alguns episódios: como passei quando estive desempregado durante três meses em 1926, como escapei de morrer de fome. Recordei-me de uma noite passada sobre um banco, em Granada; havia três dias que não me alimentava, sentia-me enraivecido e não queria morrer. Aquilo me fez sorrir. Com que ansiedade eu corria atrás da felicidade, atrás das mulheres, atrás da liberdade... A troco de quê? Tinha querido libertar a Espanha, admirava Pi y Margall, aderira ao movimento anarquista, discursava em comícios: levava tudo a sério, como se fosse imortal.

Nesse momento tive a impressão de sentir toda a minha vida à minha frente e pensei: ‘É uma grande mentira’. Não valia nada, pois havia acabado. Perguntei-me como tinha conseguido passear, divertir-me com mulheres; não teria mexido um dedo se houvesse imaginado que iria acabar desse jeito. Tinha minha vida diante de mim, fechada como um saco e entretanto tudo quanto estava lá dentro continuava inacabado. Tentei, num momento, julgá-la. Quisera dizer – foi uma bela vida. Mas não se podia fazer um julgamento, pois ela era apenas um esboço; havia passado o tempo todo a fazer castelos para a eternidade, não compreendera nada. Não tinha saudades de nada; havia uma porção de coisas das quais poderia sentir saudades, do gosto da manzanilla, dos banhos que tomava no verão numa enseadinha de Cádiz; a morte, porém, roubara o encanto de tudo”. [1]

Música: Nick the stripper, por The Birthday Party

"insect insect insect insect incest insect incest insect

Nick The Stripper
a-hideous to the eye
a-hideous to the eye
well he's a fat little insect
a fat little insect
a fat little insect
a fat little insect
and ooooooooh! here we go again

Nick The Stripper
a-dances on all fours
a-dances on all fours
he's in his birthday suit
he's in his birthday suit
he's in his birthday suit
he's in his birthday suit
and ooooooooh! a-here we go again

Nick The Stripper
a-hideous to the eye
a-hideous to the eye
well he's a fat little insect
a fat little insect
a fat little insect
a fat little insect
and ooooooooh! here we go again

well he's a fat little insect
a fat little insect
a fat little insect
a fat little insect
he's in his birthday suit
he's in his birthday suit
he's in his birthday suit
he's in his birthday suit

insect insect insect insect"



[1] Sartre, Jean-Paul. "O muro" In: O Muro [1939]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, pp. 21-2.

4 comentários:

  1. "Transcendi o vazio."
    Essa frase é simplesmente linda.

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  2. "as três pernas dele dançam mais um pouco enquanto afogo-me com meu resquício de consciência."
    Essa frase é simplesmente linda.

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  3. Mas três pernas?! Como assim?! [Olhar ingênuo]

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  4. vc num viu a terceira perna, Caetano?

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