terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

notas dispersas anacrônico-carnavalescas

Noite de carnaval, camarote em um ponto estrategicamente elevado para melhor observação e possíveis comentários respeitosos sobre as atividades festivas de uma legião incontrolável de pessoas a pular, dançar, esfregar, bolinar, cantar. Nós, arautos da prudência e da discrição, mantínhamos o bom comportamento, devidamente assentados em nossas poltronas, com as extremas demonstrações de animação sendo alguns dedos indicadores em riste balançando pelo ar ou um leve tamborilar de mãos sobre a superfície em que sentávamos ou de pés sobre o chão em que pisávamos. As coisas estavam dispostas conforme a razão, no camarote, e estávamos contentes com isso.
Contudo, a incontinência do verbo fez-se presente no momento em que Hugo de Fleury comentou estarem os membros dos corpos dos foliões em estado revoltoso, os aguilhões ardentes da concupiscência carnal atormentando as carnes contra a vontade dos indivíduos. Agostinho sorriu vitorioso com essa intervenção inesperada do caro colega e logo começou a predicar sobre a natureza decaída do homem desde o pecado original e da conseqüente necessidade de coerção para atingirmos a salvação.
Pelágio, percebendo o olhar nervoso do eloqüente Agostinho fixo nele, tentou defender sua opinião segundo a qual a liberdade da humanidade estava assegurada pela virtude do batismo e que todos aqueles foliões pimpões exerciam o mais perfeito domínio de si, sendo o movimento dos membros ali observado algo justo entre os bons cristãos.
A euforia e a discórdia tomaram conta do camarote. Entre acusações de heresia e exercícios de exegese, Tomás perdeu o rebolado e, num frenesi nunca dantes presenciado na escola escolástica, começou a arremessar tomos e mais tomos da sua Suma contra tudo e contra todos. Apesar de tantas imprecações sobre a ordem divina, quem interveio foi a ordem pública: fomos todos, santos ou não, muito bem espremidos em dois camburões, para a delegacia prestar depoimento sobre nossos desvios de conduta.
Nem as mais bem construídas expressões em latim foram capazes de convencer o delegado, calvinista convicto, sobre nossa inocência e boa índole cristã. João de Salisbury ligou para Aristóteles e este apareceu com presteza para quitar nossa fiança, pois ninguém aceitava passar a noite na única cela da delegacia, na qual, resoluto e profano, repousava Maquiavel, detido sob a acusação de urinar em público.

Um comentário:

  1. Em sua fase jovem, Agostinho jamais resistiria a um bom carnaval.
    Em breve: "As aventuras de carnaval do jovem Agostinho"

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