segunda-feira, 5 de abril de 2010

pardais, pombos e fim dos homens

Como estou impedido por força maior de sair do meu estado de reclusão, decidi narrar para mim mesmo (e talvez para algum improvável afortunado que tenha oportunidade de ler o que agora escrevo) alguns acontecimentos notáveis dos últimos tempos. Preciso exercitar minha memória e a arte da escrita com meu braço esquerdo, pois o direito, mais apto para meus afazeres diversos do dia-a-dia, foi brutalmente arrancado (fato prodigioso que pretendo explicar, caso eu não padeça de morte terrível antes do fim da narrativa ou caso estas rememorações não desgastem minha paciência ao ponto de causar minha desistência de tão nobre intento).

Pensei em estruturar meu relato em versos dodecassílabos, mas, infelizmente, lembrei-me, quando encostei a caneta no papel, de que meus conhecimentos em versificação são restritos a sonetos que mais parecem estrofes de verso livre, como os que eu elaborava na infância quando da minha insensata paixão pela professora de biologia (ela tinha mais de 50 anos, ensinava piamente o design inteligente, era fanha, coxa e dava-me esporros toda santa aula, ou seja, minha estupidez amorosa vem de longa data). Também lembrei-me que a coisa mais perto de um épico que eu conhecia era a filmagem de "Tróia" na qual Brad Pitt interpreta Aquiles. Então, percebendo que qualquer esforço vão de pedantismo de minha parte seria muito mais do que vão, pois seria inegavelmente babaca, resolvi ater-me aos fatos, com o máximo que a prudência permite-me.

O mundo começou a acabar para os homens antes do tão comentado 2012. As primeiras notícias de que me lembro datam do início de 2011. O acontecimento memorável que muito ocupa minha imaginação ocorreu na Polônia: durante uma missa, a igreja repleta de fiéis, uma pomba com pouco mais de um metro e sessenta de altura e uma envergadura de asas de mais de dois metros e meio entra em um rompante, estilhaçando os vitrais e embasbacando todo o público que, por um instante, imaginou presenciar o milagre da aparição do espírito santo; quando a pomba decepou e comeu, como uma migalha de pão, como uma óstia sagrada profanada, como o corpo não ressuscitado de cristo, a cabeça do padre (peço desculpas por esse barroco mequetrefe, não pude evitar, afinal, provavelmente, esta é minha última manifestação textual), o entusiasmo geral diminuiu e todos buscaram a saída o mais rápido possível, porém, para desgraça da congregação, fora da igreja havia uma aglomeração de pardais, cada qual contando com oitenta centímetros de altura, pesando aproximadamente vinte e cinco quilos e sedentos por sangue.

Por mais pitoresca que pareça essa lembrança, o resultado global é trágico: pombos e pardais gigantes surgiram por todas as partes do planeta e ameaçaram a humanidade com seus modos anti-naturais. As nações fraquejaram perante esta invasão bárbara armada com cloacas e bicos afiados e, em poucas semanas, os governos e a infra-estrutura da humanidade estavam em colapso. Boatos de brutalidades, tais como pombos sodomitas em asilos de idosos e pardais cropofágicos em creches, eram recorrentes. Os sobreviventes, eu um deles, organizaram-se em pequenas células e tentaram, com técnicas de guerrilha adaptadas à caça de passarinhos, opor alguma resistência contra o domínio inumano dos pombos e pardais. Em uma dessas missões, na qual matamos três pardais e ferimos gravemente um pombo, eu perdi meu braço direito.

[...]

Há duas semanas estou isolado, sozinho, em um esconderijo que não sei bem caracterizar, meu único alimento tem sido carne mal passada de pardal, algo não muito digestivo. No começo de todo esse caos alguns predicavam ser essa calamidade uma punição divina contra a fornicação cloacal, algo que, dizem, era praticado por mais pessoas do que se poderia imaginar. Meu pai dizia que era o merecido castigo pelas centenas de pardais e outros pássaros estilingados durante a infância de milhares de pimpolhos pelo mundo. Pessoalmente, agora, podendo colocar calmamente as idéias em ordem na minha cabeça, acho que um mundo dominado por pombos e pardais sanguinários e pederastas (sim, constatou-se pederastia entre estes seres empenados) não pode ser pior do que o estado das coisas anterior. Aceito, complacente, ser estuprado e trucidado de uma vez por todas por pássaros. O mundo tem grandes chances de melhorar.

Um comentário:

  1. Conto do fim. Gostei bastante, principalmente do primeiro paragráfo, que achei bastante inspirante. Mas o texto realmente te incentiva a continuar lendo. E tem toda a graça da escrita rodolfiana =P.

    E o fim da humanidade, única resposta aceitável para salvar o mundo. Ou seja, salvar o mundo não está em resistir ao Pardais e Pombos assassinos. Mas em deixar-se ser morto. Só assim o mundo se tornará um lugar melhor.

    "Do you feel the pain that I feel? The pain that lives inside."

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