sábado, 17 de julho de 2010

dalton trevisan

“Ele está cansado, é quase meia-noite, e pode afinal voltar para casa. No beco, entre as úmidas manchas coleantes na calçada, os eternos casais enlaçados à sombra do muro. No edifício da esquina, o mesmo cachorro de focinho enterrado na lata de lixo. Ao passar sob as árvores, ao menor arrepio do vento, gotas borrifam-lhe o rosto, que ele não se incomoda de enxugar.
Ao mexer no portão, o cachorrinho late duas vezes – estou aqui, meu velho – e, por mais que saltite ao seu lado, procurando alcançar-lhe a mão, ele não o agrada. Afasta-o com o pé, abre a porta e avança devagarinho pelo corredor. Aquela noite não tivera sorte: uma luz ainda no quarto.
Prevenido, desvia-se do aquário sobre o piano: o peixinho dourado conhece os seus passos e de puro exibicionismo entrega-se às mais loucas evoluções.
Ele respira fundo e, cabisbaixo, entra no quarto. A mulher, sentada na cama, a folhear sempre uma revista (é a mesma revista antiga), olha para ele, mas ele não a olha.
No banheiro, veste em surdina o pijama e, ao lavar as mãos, recolhe da pia os longos cabelos alheio. Escova de leve os dentes, sem evitar que sangrem as gengivas.
-- Ai, como é triste a velhice... – confessa para o espelho, e são palavras que não querem dizer nada.
Aperta as torneiras da pia, do chuveiro e do bidê – se uma delas pingasse ele já não poderia dormir.
Na passagem, apanha o livro sobre o guarda-roupa – ele a olhou de relance, mas ela não o olhou – e dirige-se para sala, onde acende a lâmpada ao lado da poltrona. Em seguida, descalço, sobre na cadeira e com a chave dá corda ao relógio. Entra na cozinha e, ao abrir a luz, pretende não ver a mesma barata na sua corrida tonta pelos cantos. Deita um jarro d’água no filtro e bebe meio copo, que enxuga no pano e põe de volta no armário.
Antes de se sentar na poltrona, detém-se diante do quarto da filha – a porta está aberta, mas ele não entra. Esboça um aceno e presto recolhe a mão. Por mais que afine o ouvido não escuta o bafejo da criança em sossego – e se ela deixou de respirar?
Em luta contra o pânico, deixa-se cair na poltrona, a luz amarela do abajur aquece-lhe a face esquerda. Abre o livro e concentra-se na leitura: frases sem nenhum sentido.
Na casa silenciosa, apenas o voltear das folhas lá no quarto, às suas costas o peixinho estala o bico a modo de um velho que rumina a dentadura. Por vezes, cansado demais, cabeceia e o livro cai-lhe no joelho – enquanto não se apaga a luz do quarto ele não vai deitar.
Nunca mais ela perguntou: Você não vem? Nem ele respondeu: Já vou – e sem se mexer do seu cantinho. Uma noite ou outra, certo, ela assoava o nariz – seria para disfarçar as lágrimas? Não ela, para quem a noite é sem problema, palavra esta que, com grande irritação dele, pronuncia sem o erre. Para não se comover, ele espia ora a fruteira sobre a mesa (as frutas berrantes de cera) ora o quadro bordado na parede (o medonho galo verde).
Está salvo desde que ignore a porta do quarto da filha; ergue, com esforço, as pálpebras pesadas de sono e lê mais algumas linhas, evitando levar a mão ao rosto, onde um músculo dispara de repente a tremer no canto da boca. As pesadas pálpebras não o enganam: basta que recoste a cabeça no travesseiro a fim de entender os passos furtivos do sono que se perde ao longe.
Ao extinguir-se enfim a outra luz, ele deixa passar alguns minutos e, arrastando os pés no tapete, recolhe-se ao quarto, acende a lâmpada do seu criado-mudo, com cautela infinita para não encarar a esposa que, voltada para o seu lado, pode estar com um olho aberto ou, quem sabe, até com um sorriso nos lábios. Despindo o roupão, fecha a lâmpada e estende-se com um suspiro na sua cama, radiante por não a ter olhado.
Será uma grande demora até que na rua clarinem as primeiras buzina – os galos da cidade. Não tem esperança de dormir e queda-se a revirar as memórias de infância como faz a cozinheira sobre a chama azul do álcool com o frango de pescoço quebrado. Prepara-se para a noite em que há de entrar numa casa deserta e, ao abrir a porta, assobiará duas notas, uma breve, outra longa: todos os quartos vazios, o assobio é para a sua alma irmã, a baratinha no canto escuro.
Emergindo de um pesadelo, senta-se na cama com grito estrangulado. Em vão se esforça para distinguir algum sopro no quarto da filha – se ela deixou de respirar sem ninguém para acudi-la?
A mulher agita-se na cama e com um gemido – Ai, meu Deus do céu – afasta as cobertas e, instantes depois, ele escuta lá no banheiro o jorro poderoso da urina. Longe vai a manhã, mas resta-lhe o consolo de que, ao saltar do leito, esquecerá entre os lençóis o fantasma do seu terror noturno. Outra vez ergue-se no quarto o ressonar tranqüilo da esposa; cuidadoso de não ranger o colchão, ele volta-se para o outro lado. Pouco importa se nunca mais chegar a dormir. Afinal você não pode ter tudo”.

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"A arte da solidão", de Dalton Trevisan, em A guerra conjugal.

3 comentários:

  1. estética do cansaço cotidiano da vida. parece que é isso que a gente tah construindo aqui..

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  2. ou que estamos construindo em nossas vidas e amargurando aqui.

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  3. Nada disso! Só algumas palavras bonitas arrumadas pra causar ao leitor a sensação de amargura cotidiana cansada. Sem relação com o real-verdadeiro-concreto.

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