terça-feira, 7 de maio de 2013

Cidade dos Sonhos [Mulholland Drive - 2001]



Reflexão sobre Três Cenas do Filme Cidade dos Sonhos de David Lynch




               Cidade dos Sonhos é um filme confuso quando se assiste pela primeira vez, isso porque David Lynch desafia a narrativa tradicional ao fazer com que a história se divida em duas partes bem distintas entre si, mas que ao mesmo tempo estão em completa relação. Estabelecer essa relação é um desafio que Lynch deixa para os espectadores, fazendo com que o filme seja interpretado de diversas formas. A minha interpretação é a de que a primeira parte do filme é um sonho de Diane/Betty, no qual ela tenta lidar com o fato de ter mandado matar sua amante, Camilla/Rita, e com aspiração fracassada de se tornar uma grande atriz de cinema. Ao despertar desse sonho, ela é obrigada a enfrentar a realidade novamente. Não só a história tem uma mudança, mas também a maneira como ela é contada. Assim, por exemplo, a primeira parte apresenta uma narrativa bem linear, sem muitos segredos, enquanto na segunda, tempo e espaço se mesclam, e a mesma personagem, que num momento está numa cena, de repente está em outra completamente diferente. Nesse texto pretendo analisar três cenas do filme para refletir sobre como a história é contada: a abertura, o teatro Silencio e o despertar de Diane.

O início de Cidade dos Sonhos é confuso e até mesmo sem sentido quando se vê pela primeira vez. O filme começa com um grupo de pessoas dançando em roupas aproximadamente da década de 40 nos EUA com uma tela roxa no fundo e grandes sombras projetadas [imagem 1]. Esse começo se divide em vários planos, aonde vemos um casal dançando na frente, outros casais em um segundo plano, sombras enormes dos casais que dançam em um terceiro plano e casais dentro das sombras dançando. Esses casais também se repetem nos vários planos. Então vemos um casal no primeiro plano, que também está presente entre aqueles que dançam num segundo e que tem sua sombra projetada no fundo roxo, em cada uma dessas aparições, o casal está num ângulo diferente. Já aqui, David Lynch questiona a temporalidade linear, ao permitir que um mesmo casal exista simultaneamente em divesas temporalidades diferentes e em diversos pontos de vista. O que é bem significativo ao que se vê no filme como um todo, pois é possível ler a história de diversos pontos se vistas que se alteram conforme o espectador descobre novos detalhes. Além disso, na segunda parte, como veremos quando eu analisar a cena do despertar, é possível, devido a técnicas cinematográficas, brinca com a temporalidade das cenas, e faz num mesmo alternar, alternar entre presente e passado.

Retornando a abertura do filme, outro aspecto importante, é a ambigüidade das sombras, ou, mais especificamente do preto. A cor preta pode ser vista de duas maneiras: em relação as planos que estão mais a frente ela é uma sombra projetada no fundo roxo. Mas para as figuras que estão em planos mais afastados, o preto é o seu fundo, e só pode ser visto através de um recorte no roxo, com o formato das figuras no primeiro plano. Nesse segundo caso, o fundo é obscurecido pelo recorte das figuras, e não podemos vê-lo direito. Ele se torna algo misterioso, justamente por não podermos vê-lo em sua plenitude, diferente do fundo roxo, que temos um acesso quase completo, e não exerce essa força misteriosa. De novo, temos algo similar ao que ocorre no filme, cada personagem possui uma camada que parecemos compreender, aquela sombra refletida em fundo roxo, da qual temos completa visão. Um fundo roxo que é gerado pelo cinema. Essa é a primeira parte do filme, com sua narrativa tradicional e sobre a qual parecemos ter algum entendimento do que está ocorrendo. Mas quando adentramos nas sombras, ou seja, entramos na segunda parte do filme, elas se tornam o fundo obscurecido dessas figuras e percebemos que, aquilo que sabiamos sobre elas não é mais o que parecia e não temos mais certezas, não temos mais capacidade de ver claramente. O fundo roxo se torna um outro tipo de limite para nossa visão, ele não é mais o lugar até onde ela alcança, mas um obstáculo ao fundo negro.

A relação de tamanho da sombra e das figuras também pode ser vista de um ponto de vista simbólico. As sombras seriam, então, um reflexo de nós mesmos, de nossos segredos interiores, muito maiores do que a imagem de nós mesmos. Em contraste a isso, na cena parece Betty pela primeira vez [imagem 2], e ela está coberta em luz, uma luz extremamente forte, que a obscurece. Temos então dois elementos que obscurecem, a escuridão das sombras e o excesso de luz projetada em Betty. Essa luz remete aos brilhos das câmeras e dos holofotes que uma super estrela do cinema recebe, que é o sonho de Diane/Betty. Assim, podemos dizer que temos dois aspectos da ilusão, um vinculado a luz, que são os sonhos e outro, vinculado as sombras, que é o de mistério e incertezas.

Em termos de narrativa, essa cena remete a algo que é dito no final do filme, na cena do jantar, quando Diane diz que participou de um torneio de Jitterbug e foi sua vitória nele que fez com que ela tivesse desejo de se tornar um atriz. A cena mostra a dança tradicional, com pessoas em roupas antigas, mas Diane surge como se estivesse vestida para uma cerimônia de premiação dos melhores no cinema. Além disso, surge de uma maneira bem fora de foco, que hora ganha foco, hora perde, a imagem dela com dois velhos. Uma imagem que poderia muito bem ser uma foto numa sala de estar de uma casa de família. Esse conjunto todo remete então, a essa possível concurso de Jitterbug e a origem do desejo de Diane/Betty, o qual não temos como saber se é real ou apenas uma invenção da personagem. Em seguida a cena vai para outro lugar, começa desfocada e aos poucos ganha foco, como alguém que devagar ganhasse consciência do lugar em que está, ela se move, quase em primeira vista, e revela uma cama, que só posteriormente, descobriremos ser a cama de Diane. A câmera chega até o travesseiro e se aproxima até escurecer tudo. Temos, então, a transição de um devaneio, que é abertura do filme, para o início do sonho, que é o começo da primeira parte do filme. Lynch não nos dá pistas nessa cena sobre quem é essa pessoa e qual o seu estado, nem se há uma pessoa, que só é sugerida pela maneira como a filmagem é feita, o lento ganhar de foco e sua movimentação, como se estivesse em primeira pessoa. Só posteriormente compreendemos essa cena e, então, podemos interpretar que a primeira parte do filme é o sonho dessa personagem, Diane.



A segunda cena que pretendo analisar é o teatro Silencio. Essa cena é uma transição entre as duas partes do filme: o momento em que o sonho começa a desmoronar. Ela acontece após o auge da relação entre Betty e Rita, ou seja, depois que elas fazem sexo. Talvez não exista mais razão para Diane sonhar após ter conquistado completamente seu objeto de desejo, que no sonho é Rita. O teatro é introduzido de uma maneira bem sombria. As duas personagens chegam de taxi e vemos tudo através de um plano de conjunto, em seguida, conforme as personagens entram no teatro, a câmera faz um travelling em direção a elas. A maneira como a câmera se movimenta é desordenada, como se fosse um animal. Isso cria um suspense, como se algo as perseguisse. Essa cena externa ao teatro tem uma predominância de cores frias e é bem azulado. Em contraste, o interior do teatro tem o predomínio de cores quentes, principalmente do vermelho [imagem 3].

Ao entrar no teatro as duas personagens observam um homem de terno no palco que afirma: "No hay banda! There is no band! Il n’est pas de orquestra!” Ele revela explicitamente a ilusão do cinema, de que, apesar de ouvir o som de um trombone, o que ouvimos, na verdade é a gravação do som de um trombone e não um trombone real. Isso é demonstrado por um homem tocando um instrumento, mas, apesar dele parar de tocar, o som continua. Em seguida, o apresentador some, e entra Rebekah del Rio para cantar uma música sobre um coração partido, uma música que parece refletir bem a situação de Diane em relação a Camille. A maneira como Lynch constrói essa cena é praticamente com closes. Começa com um plano médio, mostrando Rebekah ao entrar no palco e começar a cantar, em seguida segue-se vários closes, alternando entre os rostos da cantora, de Betty e de Rita. Cada vez que foca no rosto de uma das personagens mostra elas cada vez mais emocionadas, até que Rebekah desmaia, mas a música continua, e as personagens saem desse transe emocional e se reestabelecem emocionalmente. Nessa construção, Lynch trabalha bem com o jogo de câmera, com o que ele mostra e não mostra para criar uma surpresa no espectador. Ao se manter só em closes, o espectador perde a noção do espaço e o que passa a importar são as emoções que as personagens sente. Além disso, o espectador não tem noção do que está acontecendo na cena como um todo, então, por exemplo, enquanto Rebekah já parou de cantar e está desmaiando, o close está em Rita e Betty, logo, o espectador está ouvindo a música e acredita que Betty está ainda cantando, para descobrir, em seguida, surpreso, como as personagens, que não é o caso. O interessante dessa surpresa é que Lynch acabou de nos avisar sobre a ilusão do cinema, e mesmo assim somos imersos na cena.

O teatro Silencio trata, então, sobre a ilusão em diversos níveis. Em um primeiro, temos o relativo a história de Betty, e o fato que toda aquela primeira parte do filme é apenas o sonho dela, uma ilusão que ela está vivendo e da qual tem que despertar. Em um segundo nível, Lynch dialoga sobre a ilusão do próprio cinema, e sua capacidade de nos fazer acreditar que aquilo que vemos é real, embora seja apenas uma gravação. Em um terceiro nível, temos as emoções que o cinema no causa, que são bem reais enquanto dura o espetáculo, mas das quais nos recuperamos rapidamente quando a peça acaba. Essa cena me faz pensar na pintura “Isso Não é um Cachimbo” de Magritte enquanto conceito. Ambas produzem esse ato de revelar a arte como representação, e não como o objeto em si.



Por fim, temos a última cena que pretendo analisar, que é o despertar de Diane. A cena ocorre pouco depois das personagens visitarem o teatro Silencio. O Cowboy entra no quarto de Diane, que está caída na cama, morta, e fala que é hora dela acordar. Temos um retrocesso no tempo, e a personagem levanta e percebemos que é a mesma atriz que interpretava Betty. Nessa hora, a construção de personagens é impressionante. Temos a mesma atriz, mas com o jogo de luz, maquiagem e interpretação, elas se tornam personagens bem diferentes [imagem 4]. Quando Betty é introduzida, ela está num ambiente claro, parece uma garota ingênua e pura de família, a maneira dela falar, assim como dos velhos que estão com ela soa bem falsa e a cena possui um caráter de sonho. Ao contrário, quando Diane é introduzida, ela está no escuro, acabou de acordar, é até possível se pensar em alguém que usa drogas, e a cena possui um caráter de realidade, talvez pelas cores menos vivas.

Em seguida, Lynch realiza uma seqüencia que é linear no espaço, mas que atravessa diversas temporalidades. Diane acorda e atende a porta, sua ex-colega de casa aparece para pegar as coisas de volta. Entre as coisas que ela leva está um cinzeiro com formato de piano na mesinha da sala. Ao mostrar ela pegando-o, Lynch dá um close numa chave azul que está na mesa, a qual, posteriormente, sabemos que significa que Camille está morta. A ex-colega sai da casa e Diane vai para cozinha e entra num estado de depressão no qual alucina com Camille e depois com ela mesma, tudo acontece em closes. Como já disse acima, Lynch se utiliza dos closes não só para focar na figura e suas emoções, mas também para ocultar algo do espectador e gerar sua ilusão. Nessa cena, existe uma troca de olhares entre um close e outro que conecta as duas Diane. A principio, pensamos que a segunda é uma ilusão, mas quando Lynch passa para o plano médio, percebemos que ela é a personagem e que a primeira Diane sumiu. Estamos na mesma cozinha, mas em outro tempo, um tempo anterior. Essa transição entre o presente e o passado é bem sútil e é possível através desse jogo de um close para outro e, em seguida, o plano médio. A personagem prepara o café e se dirige para o sofá, a câmera faz um travelling e, ao se aproxima do sofá foca nele para mostrar uma Camille nua deitada. Em seguida, devido ao corte, pela mudança de angulo, Diane está subindo no sofá semi-nua, não mais com o roupão. Em vez de uma xícara de café, ela carrega um copo de uísque, que ao colocar na mesa, revela novamente o cinzeiro-piano, mas não há mais a chave.

Essa seqüência é bem significativa no que se refere a quebra da temporalidade linear da narrativa. Na primeira parte do filme ela existe e ocorre a todo momento. A história é misteriosa, mas não possui uma narrativa confusa ou mescla de cenas. Na segunda as cenas se mesclam ao ponto que você não sabe aonde começou uma e aonde terminou outra. Lynch se utiliza muito bem da linguagem do cinema e da alternância entre planos, principalmente do close para um mais afastado para criar esse efeito. Isso gera uma confusão no espectador, que não possui mais a clareza dos cortes claros de uma cena para outra, elas estão juntas.


Imagens






Imagem 1 – Abertura do Filme
Imagem 2 – Betty com a figura desfocada dela com dois velhos, parentes seus provavelmente.

Imagem 3 – Teatro Silencio [Parte externa]
Imagem 3 – Teatro Silencio [Parte interna]
Imagem 4 – Betty (esquerda) e Diane (direita)

Nenhum comentário:

Postar um comentário