sexta-feira, 28 de junho de 2013
Tróia, 2004 (dirigido por Wolfgang Petersen)
Estão bem assinaladas as questões que devem vigorar como aspectos fundantes da civilização ocidental.
A motivação de Aquiles, que existe como revelação e como destino, ou seja, a busca pela glória imortal tendo como preço a condição de não retornar à Grécia, constitui o fundamento de uma consciência muito forte de sua individualidade. Os propósitos de Agamenon e Menelau, como a união dos gregos, pouco lhe importam. Essa busca de satisfações individualistas está, em Aquiles, articulada com um sentimento intenso de eternidade fundado no valor da perpetuação pela memória e da concepção de que a memória preserva os grandes nomes. Existe, contudo uma tensão nesta concepção, uma vez que Aquiles, ao considerar-se um guerreiro, não pode admitir as pretensões de Agamenon, aliás baseadas nas mesmas concepções e valores de perpetuação da memória, de ter seu nome imortalizado como conquistador de Tróia. Contra os argumentos de Aquiles, que quer sustentar que são os soldados que, de fato farão a conquista, Agamenon afirma categoricamente que é o nome dos reis que são lembrados pela posteridade. Neste momento, Ulisses aconselha a Aquiles que não dê ouvidos, que na guerra os jovens morrem e os velhos falam.
Ainda contribuem com a formação do caráter de Aquiles e de seu individualismo, reflexões cujo centro é o desapego da vida e a convicção resignada de que todos os homens morrem, hoje ou depois de muitos anos, não há diferença.
O individualismo ainda é central, mesmo na própria causa da guerra, o amor entre Páris e Helena. No entanto, aí há um conflito, igualmente colocado como fundante da civilização ocidental, os limites entre os desejos individuais, movidos pelos sentimentos, e os interesses coletivos. Os interesses coletivos, além do mais estão baseados no valor da tradição das muralhas de Tróia, que nunca foram ultrapassadas e da espada da realeza troiana, que há muitas gerações garante as conquistas da cidade e que deve continuar a garantir sua existência e sua grandeza. O individualismo de Páris é afetado por sua extrema fragilidade, e Páris sente-se desonrado por ela, como também sente a responsabilidade de ter causado a guerra. É justamente Páris, o mais frágil dos homens, que matará Aquiles, o mais próximo da invencibilidade. Isso porque Aquiles, em Tróia, descobriu também suas próprias fragilidades ao apaixonar-se pela prima de Páris. Ao salvá-la, Aquiles ficou vulnerável às flechas de Páris. De todo modo, mesmo antes disso, ela, uma sacerdotisa de Apolo – com a recorrente personalidade forte das mulheres que, no cinema hollywoodiano, amolecem os homens rudes – mostra a Aquiles a fraqueza que há em ter como única qualidade a capacidade de matar. Nisso ressalta o amor como qualidade, o que legitima também a guerra causada por Páris – inclusive reforçando as palavras do rei Príamo a respeito de fazer guerra por amor, em vez de fazer pelo poder – apesar da sobreposição das disposições individuais sobre o interesse coletivo.
Outro personagem central é Heitor, que apresenta complicações importantes que se articulam às questões já apresentadas nas caracterizações dos demais personagens. Sobretudo, Heitor apresenta recorrentemente objeções aos presságios dos deuses. Aquiles também faz isso em alguns momentos – inclusive corta a cabeça da estátua e profana o templo de Apolo – mas por orgulho, certamente. Em Heitor, parece despontar uma visão laica e materialista, que aposta exclusivamente na força dos exércitos e quer desconsiderar as decisões baseadas nos juízos dos leitores de presságios. Nas vezes em que isso acontece, Heitor sempre é repreendido pelo rei Príamo, que insiste em confiar nos presságios e, a todo momento, toma, por isso, decisões erradas. De modo geral é difícil de tomar um partido entre gregos e troianos. A simpatia por ambos os lados é inclusive resultante da preocupação central com a perpetuação da memória dos grandes homens que colocaram com seus valores individuais as bases da civilização ocidental. A conclusão é explicitada nas palavras finais do narrador, Ulisses, confirmando a honra de ter vivido no tempo de Heitor e de Aquiles, cuja glória os tornou miticamente eternos.
sexta-feira, 21 de junho de 2013
terça-feira, 18 de junho de 2013
sábado, 8 de junho de 2013
Eu e você, 2012 (dirigido por Bernardo Bertolucci)
O amor entre irmãos aparece, nas condições que estão colocadas, como uma impossibilidade que a ordem de apresentação das coisas parciais que o representam desmente aos poucos. Eles são filhos de mães diferentes e é este o centro de seus aspectos problemáticos mais evidentes. As mães diferentes e, no caso de Olívia, um ressentimento em relação ao pai, que a abandonou com sua mãe, para viver com Sonia, com quem teve outro filho, Lorenzo. Este pai não aparece em momento algum.
As consequências aparecem antes dos atos que as desencadearam. Isso, de forma não tão fragmentada. As coisas, na verdade, se explicam aos poucos. As palavras do psicólogo a Lorenzo na primeira vez em que ele aparece, indicam que ele seja um adolescente problemático, como também o fato em si de estar diante de um psicólogo. As palavras do psicólogo, não é possível saber, no entanto, num primeiro momento, a que especificamente se referem. O personagem de Lorenzo vai se caracterizando pela articulação desta primeira impressão com aspectos que se podem deduzir das atitudes que se seguem. Ele visita a loja de animais exóticos, compra coca-cola e bobagens para comer, tudo em número de sete unidades. Fica claro, conforme as coisas acontecem, que isso foi uma preparação para a execução de seu plano de passar alguns dias no porão da casa em vez de ir para a viagem com a escola. Lorenzo é organizado ao extremo. Essa organização soma-se à sua inclinação para o isolamento que, mais que isso, é um esconder-se da vida. É um narcisista, como dizem dele seus pais num sonho. Olívia diz que ele precisa parar de se esconder e começar a viver.
Já no porão, pouco tempo depois aparece Olívia, sua meia irmã, numa situação improvável e providencial para o desdobramento da trama. Neste momento ainda não se sabe que são irmãos. Lorenzo se esconde em meio às tralhas do porão, Olívia o encontra. Eles têm uma discussão meio impessoal, que não permite saber da existência de laços entre eles, até que Olívia diz algo como “o dinheiro que seu pai me deu” e, então “ele é seu pai também!” responde Lorenzo. “Mas sua mãe roubou minhas coisas”, e por dizer isso Olívia ganha um empurrão de Lorenzo, “não fala assim da minha mãe!” São meio irmãos. Olívia vai embora e Lorenzo sente o prazer de estar novamente sozinho, lendo o livro sobre o vampiro Lestat. Ele lê de cabeça para baixo, até que Olívia diz que vai acabar, desse jeito, acumulando sangue na cabeça.
Olívia volta no meio da noite e Lorenzo é obrigado a abrir para evitar que seus gritos revelem a presença dele no porão. Olívia era viciada em heroína e estava, neste momento, passando por uma crise de abstinência. Ao cuidar de Olívia Lorenzo desenvolve maturidade, uma possibilidade de saída de seu narcisismo. Os irmãos começam a se aproximar, mas o amor de irmãos continua improvável pela expectativa de que os sinais da forma como acontece essa aproximação entre meio irmãos confirmem a aparência de que o que está para acontecer é a atração sexual entre eles, ainda mais que conseguem álcool durante a noite e Olívia, mais velha, convence o irmão a beber também um pouco. Essas expectativas são alimentadas pelo fato das fragilidades afetivas aparentes de Lorenzo, pelos preconceitos desencadeados pela personalidade de Olívia, dada a drogas e às artes e pela ideia formada sobre as escolhas estéticas recorrentes de Bertolucci. Além disso, o primeiro diálogo de Lorenzo com a mãe indica uma disposição nesse sentido. Eles estavam num restaurante e Lorenzo diz “você acha que as pessoas podem pensar que somos um casal?” A mãe responde que é claro que não, que veriam que são mãe e filho. Lorenzo propõe à mãe uma hipótese sobre o que aconteceria se todas as pessoas do mundo morressem e sobrassem apenas os dois. A mãe fica desconcertada, e Lorenzo diz que seria uma questão de sobrevivência para a humanidade...
Mas a ligação sexual entre Olivia e Lorenzo não acontece. Olívia quer se libertar da heroína e Lorenzo descobre possibilidades de viver fora de seu isolamento. O apoio que encontram um no outro tem como conclusão o amor inesperado entre irmãos, para além dos ressentimentos gerados pelas divisões familiares e das tensões sexuais incestuosas que se insinuam.
sexta-feira, 31 de maio de 2013
O Homem Urso (Werner Herzog, 2005)
O filme é um documentário que reúne, numa narrativa, várias horas de filmagem produzidas por Timothy Treadwell, ativista morto em 2003. Timothy passou os últimos 13 verões de sua vida em uma remota região do Alasca. Lá estudava, observava e convivia com vários ursos pardos, produzindo material e campanhas de defesa dos ursos e seus habitats em nível nacional nos EUA. O documentário vai além de mostrar apenas a beleza das paisagens, o amor de Treadwell pelos animais e pela natureza. Também não se limita a explorar o incidente que leva à morte do ativista e de sua namorada no acampamento em outubro de 2003. As questões levantadas dizem respeito a limites entre homem e natureza; abordam o conflito entre um ideal e uma sociedade; criam oposições que são verdadeiros paradoxos, nos quais cada posição é uma armadilha.
O documentário é repleto de passagens marcantes e tocantes. Cada cena desperta uma reflexão não necessariamente bem processada pelo expectador quando outra já lhe é oferecida. Entre a meticulosidade de Treadwell na produção das filmagens, seu convívio com os ursos, seus discursos inflamados e seus contratempos no acampamento vemos florescer um protagonista involuntário. Um personagem complexo, bem desenhado, pensado em seus mínimos detalhes e completo de tal forma que despertaria a inveja de muitos roteiristas. Daqueles personagens que amo porque não sei o que são: não sei como encaixá-los num padrão maniqueísta típico de romance barato, não sei como interpretá-lo, nem consigo tecer julgamentos sobre sua pessoa. E funciona tão bem que, ao fim do filme, quase elogiei o criador do personagem. E aquela consciência de sua veracidade, de que não se tratava de um personagem inventado, que me assombrou o filme todo (e que tentei abstrair o filme o todo), aflora. Constrange. Treadwell viveu. Circulou entre nós. Entre os ursos. Morreu. Acho que é seu fim trágico que me sugeria vê-lo como fruto de uma mente criativa brilhante.
Como praticamente toda sua vida com os ursos era registrada, o momento de sua morte também acaba gravado. A câmera, com as lentes cobertas (porque ninguém se prepara para filmar a própria morte), grava o som ambiente do ataque de um dos ursos a sua cabana. Herzog, como diretor e narrador do documentário, tem acesso às gravações mas não as reproduz. Há uma cena que mostra Herzog com fones acompanhando o áudio e depois ele conversa com uma das amigas de Treadwell, que tem posse do material deixado por ele. O diretor recomenda que esta amiga nunca mais escute aquela gravação e também não veja as fotos feitas pelas autoridades do acampamento onde foram encontrados os corpos. Ela não faz menção em momento algum de que tenha vontade de se expor aos últimos gritos de Treadwell ou às fotos de seu corpo mutilado. Na verdade, sua comoção e seu estado emocional nas cenas não sugere uma pessoa muito à vontade. E Herzog lhe recomenda destruir a fita para que ela possa se libertar e poder seguir adiante com sua vida. No fim, estou indo longe demais. Essa atitude de Herzog, essa relação que ele estabelece com o material de seu documentário e com a vida dos envolvidos, faz refletir sobre o seu (o nosso, porque não?) olhar diante da matéria bruta do filme que, no fundo, é a natureza social e a identidade humana. E, exatamente esse tipo de questão, o filme coloca o tempo todo:
Quais são os limites que nos impomos? Quais são os limites que nos impõem? Quais são os limites que cruzamos todos os dias? Quais limites deveríamos estabelecer? Relutamos, mas no final fica parecendo que o homem é o urso do homem.
sexta-feira, 17 de maio de 2013
2001: Uma odisseia no espaço, 1968 (dirigido por Stanley Kubrick
É a questão do devir que está colocada como discussão central. O monolito é a ponte para o devir, especificamente no momento em que é tocado pelo macaco, no início do filme, e no final, quando está próximo à nave na qual estava David, na órbita de Júpiter.
A forma como são dispostos os elementos que compõem essas conclusões vão conduzindo o entendimento do argumento por meio de associações. Ao toque do macaco no monólito, segue a sequência na qual ele olha para os ossos com expressão de quem reflete pela primeira vez. A ideia da passagem evolutiva, do devir, do monolito como ponte entre o macaco e o homem é reforçada pela música Assim falou Zaratustra, que começa a tocar no momento em que que o macaco interage com os ossos demonstrando os primeiros sinais de raciocínio. No ápice da música, o macaco destrói justamente o crânio de anta depositado junto aos demais ossos, no que imediatamente é feito o corte para a imagem da anta caindo morta. A sequência seguinte deixa evidente o argumento de que ao aprender a matar, o macaco deu seu primeiro passo na direção do homem, no momento em que aparecem, pela primeira vez, comendo carne. Tudo isso fica enfatizado em contraposição ao que veio antes, longas sequências monótonas, entremeadas por questões de sobrevivência: aos macacos nesse momento, restava espantar as antas que disputavam os arbustos que serviam de alimento a ambos. Essa condição completamente instável fica ainda mais evidente quando, ao final da sequência, um leopardo ataca um dos macacos. Esta sequência representa, certamente, milhões de anos durante os quais não era certo que o homem em seu estágio primitivo sobrevivesse ao risco de extinção. À capacidade de matar como símbolo de um momento de passagem acrescenta-se a capacidade de matar, no contexto do conflito com um grupo rival de macacos. Este conflito já havia sido apresentado antes, na forma de um ritual de preservação do território próximo à água que ocorrera durante milhões de anos da mesma forma, estática no tempo. Após o toque no monolito este conflito tem um desfecho, um passo adiante, quando o osso, usado como arma serve para matar o macaco inimigo; e é justamente este osso que, jogado para cima pelo macaco vitorioso, torna-se, por um corte brusco, uma nave no espaço. A guerra, portanto, como ponto de partida da civilização.
A segunda discussão que se coloca diz respeito ao controle que o homem tem sobre suas criações. Especificamente, Hal, o sistema de inteligência artificial que controla toda a nave onde estão Frank e David, sobre o qual se enfatiza sua perfectibilidade, o que o coloca, tendo em vista a discussão central do filme, de certo modo, adiante do homem. Este aspecto fica ainda mais evidente no momento em que inicia a tensão que conduz esta segunda parte do filme, quando o erro de avaliação de Hal sobre o funcionamento da nave é por ele entendido como, sem nenhuma dúvida, um erro humano, uma vez que a série de computadores à qual ele pertencia jamais havia cometido erros anteriormente. Simbolicamente, está colocado o dilema a respeito dos limites do progresso tecnológico, quando este pode representar um risco à existência seus criadores – debate amplamente abordado na produção de ficção científica da época. Essa discussão é colocada no momento em que, percebendo que Hal poderia estar com alguma falha de sistema, Frank e David cogitam desligá-lo. Neste momento a lei de autopreservação de Hal sobrepõe-se a lei de cooperação com os humanos, ainda mais, segundo argumenta Hal, a missão – de levar a nave até a órbita de Júpiter - era importante para ele, e os humanos, se o desligassem colocariam, em seu modo de avaliar, a missão em risco.
Todo esse desdobramento tem como fator de reflexão uma questão colocada antes, a respeito dos sentimentos de Hal. Se Hal, como máquina, poderia ter sentimentos. [ Nesse ponto eu penso – relacionando com algumas discussões do Eu robô, de Isaac Asimov – que uma máquina com atributos de racionalidade complexos até o limite, ou seja, que a programação do sistema seja capaz de emular até os mínimos detalhes o funcionamento da mente humana, tem os sentimentos como desdobramento inevitável dessa própria racionalidade. A inteligência artificial é, de fato uma reprodução da mente humana e, deste modo, seus dilemas são os dilemas humanos, só que amplificados. Essa amplificação é, justamente, a infalibilidade, a supressão da possibilidade de erros, que é, ao mesmo tempo o ideal humano e a causa dos riscos de sua destruição pela máquina: a relação entre a racionalidade humana e a racionalidade humana sem erros.]. A afirmação de que, sim, Hal tem sentimentos, está em suas atitudes desesperadas de auto-preservação, quando mata Frank e o restante da tripulação, exceto David, mas também nos closes em Hal que apesar de ser apenas uma luz vermelha, pelo modo como é produzida a imagem, dá a sensação de que Hal tem expressão. Em segundo lugar, obviamente, o lamento de Hal, quando David consegue desligá-lo. Quando a nave, tripulada apenas por David, sem Hal, chega a Júpiter, recomeça a discussão sobre o devir, que envolve a presença do monolito. Tanto na ocasião em que o monolito aparece para os macacos como nessa – e, no meio do filme, na lua – ele está alinhado com o sol e com a terra. Na sequência final ele está alinhado ainda com a nave, com Júpiter e com outros planetas. Este alinhamento propicia a transcendência que, nesse momento, na órbita de Júpiter, conduz David até sua velhice e por fim, novamente com Assim falou Zaratustra, ao devir, desta vez para um além-do-homem, a criança estelar, que retorna à órbita da terra, de
sexta-feira, 10 de maio de 2013
Amor
O amor é doce
Doce ilusão decisória
Mandatória do não
Alusão
Mais nada será
Desse porvir
Mártir
Que recrimina
Alucina
Doce ilusão decisória
Mandatória do não
Alusão
Mais nada será
Desse porvir
Mártir
Que recrimina
Alucina
terça-feira, 7 de maio de 2013
Cidade dos Sonhos [Mulholland Drive - 2001]
Reflexão sobre Três Cenas do Filme Cidade dos Sonhos de David Lynch
Cidade
dos Sonhos é um filme
confuso quando se assiste pela primeira vez, isso porque David Lynch desafia a
narrativa tradicional ao fazer com que a história se divida em duas partes bem
distintas entre si, mas que ao mesmo tempo estão em completa relação.
Estabelecer essa relação é um desafio que Lynch deixa para os espectadores,
fazendo com que o filme seja interpretado de diversas formas. A minha
interpretação é a de que a primeira parte do filme é um sonho de Diane/Betty,
no qual ela tenta lidar com o fato de ter mandado matar sua amante,
Camilla/Rita, e com aspiração fracassada de se tornar uma grande atriz de
cinema. Ao despertar desse sonho, ela é obrigada a enfrentar a realidade
novamente. Não só a história tem uma mudança, mas também a maneira como ela é
contada. Assim, por exemplo, a primeira parte apresenta uma narrativa bem
linear, sem muitos segredos, enquanto na segunda, tempo e espaço se mesclam, e
a mesma personagem, que num momento está numa cena, de repente está em outra
completamente diferente. Nesse texto pretendo analisar três cenas do filme para
refletir sobre como a história é contada: a abertura, o teatro Silencio e o despertar de Diane.
O início de Cidade dos Sonhos é confuso e até
mesmo sem sentido quando se vê pela primeira vez. O filme começa com um grupo
de pessoas dançando em roupas aproximadamente da década de 40 nos EUA com uma
tela roxa no fundo e grandes sombras projetadas [imagem 1]. Esse começo se
divide em vários planos, aonde vemos um casal dançando na frente, outros casais
em um segundo plano, sombras enormes dos casais que dançam em um terceiro plano
e casais dentro das sombras dançando. Esses casais também se repetem nos vários
planos. Então vemos um casal no primeiro plano, que também está presente entre
aqueles que dançam num segundo e que tem sua sombra projetada no fundo roxo, em
cada uma dessas aparições, o casal está num ângulo diferente. Já aqui, David
Lynch questiona a temporalidade linear, ao permitir que um mesmo casal exista
simultaneamente em divesas temporalidades diferentes e em diversos pontos de
vista. O que é bem significativo ao que se vê no filme como um todo, pois é
possível ler a história de diversos pontos se vistas que se alteram conforme o
espectador descobre novos detalhes. Além disso, na segunda parte, como veremos
quando eu analisar a cena do despertar, é possível, devido a técnicas
cinematográficas, brinca com a temporalidade das cenas, e faz num mesmo
alternar, alternar entre presente e passado.
Retornando a abertura do filme, outro aspecto
importante, é a ambigüidade das sombras, ou, mais especificamente do preto. A
cor preta pode ser vista de duas maneiras: em relação as planos que estão mais
a frente ela é uma sombra projetada no fundo roxo. Mas para as figuras que
estão em planos mais afastados, o preto é o seu fundo, e só pode ser visto
através de um recorte no roxo, com o formato das figuras no primeiro plano.
Nesse segundo caso, o fundo é obscurecido pelo recorte das figuras, e não
podemos vê-lo direito. Ele se torna algo misterioso, justamente por não
podermos vê-lo em sua plenitude, diferente do fundo roxo, que temos um acesso
quase completo, e não exerce essa força misteriosa. De novo, temos algo similar
ao que ocorre no filme, cada personagem possui uma camada que parecemos
compreender, aquela sombra refletida em fundo roxo, da qual temos completa
visão. Um fundo roxo que é gerado pelo cinema. Essa é a primeira parte do
filme, com sua narrativa tradicional e sobre a qual parecemos ter algum
entendimento do que está ocorrendo. Mas quando adentramos nas sombras, ou seja,
entramos na segunda parte do filme, elas se tornam o fundo obscurecido dessas
figuras e percebemos que, aquilo que sabiamos sobre elas não é mais o que
parecia e não temos mais certezas, não temos mais capacidade de ver claramente.
O fundo roxo se torna um outro tipo de limite para nossa visão, ele não é mais o
lugar até onde ela alcança, mas um obstáculo ao fundo negro.
A relação de tamanho da sombra e das figuras também
pode ser vista de um ponto de vista simbólico. As sombras seriam, então, um
reflexo de nós mesmos, de nossos segredos interiores, muito maiores do que a
imagem de nós mesmos. Em contraste a isso, na cena parece Betty pela primeira
vez [imagem 2], e ela está coberta em luz, uma luz extremamente forte, que a
obscurece. Temos então dois elementos que obscurecem, a escuridão das sombras e
o excesso de luz projetada em Betty. Essa luz remete aos brilhos das câmeras e
dos holofotes que uma super estrela do cinema recebe, que é o sonho de
Diane/Betty. Assim, podemos dizer que temos dois aspectos da
ilusão, um vinculado a luz, que são os sonhos e outro, vinculado as sombras,
que é o de mistério e incertezas.
Em
termos de narrativa, essa cena remete a algo que é dito no final do filme, na
cena do jantar, quando Diane diz que participou de um torneio de Jitterbug e foi sua vitória nele que fez
com que ela tivesse desejo de se tornar um atriz. A cena mostra a dança
tradicional, com pessoas em roupas antigas, mas Diane surge como se estivesse
vestida para uma cerimônia de premiação dos melhores no cinema. Além disso,
surge de uma maneira bem fora de foco, que hora ganha foco, hora perde, a
imagem dela com dois velhos. Uma imagem que poderia muito bem ser uma foto numa
sala de estar de uma casa de família. Esse conjunto todo remete então, a essa
possível concurso de Jitterbug e a
origem do desejo de Diane/Betty, o qual não temos como saber se é real ou
apenas uma invenção da personagem. Em seguida a cena vai para outro lugar,
começa desfocada e aos poucos ganha foco, como alguém que devagar ganhasse
consciência do lugar em que está, ela se move, quase em primeira vista, e
revela uma cama, que só posteriormente, descobriremos ser a cama de Diane. A
câmera chega até o travesseiro e se aproxima até escurecer tudo. Temos, então,
a transição de um devaneio, que é abertura do filme, para o início do sonho,
que é o começo da primeira parte do filme. Lynch não nos dá pistas nessa cena
sobre quem é essa pessoa e qual o seu estado, nem se há uma pessoa, que só é
sugerida pela maneira como a filmagem é feita, o lento ganhar de foco e sua
movimentação, como se estivesse em primeira pessoa. Só posteriormente
compreendemos essa cena e, então, podemos interpretar que a primeira parte do
filme é o sonho dessa personagem, Diane.
A
segunda cena que pretendo analisar é o teatro Silencio. Essa cena é uma transição entre as duas partes do filme:
o momento em que o sonho começa a desmoronar. Ela acontece após o auge da
relação entre Betty e Rita, ou seja, depois que elas fazem sexo. Talvez não
exista mais razão para Diane sonhar após ter conquistado completamente seu
objeto de desejo, que no sonho é Rita. O teatro é introduzido de uma maneira
bem sombria. As duas personagens chegam de taxi e vemos tudo através de um
plano de conjunto, em seguida, conforme as personagens entram no teatro, a
câmera faz um travelling em direção a
elas. A maneira como a câmera se movimenta é desordenada, como se fosse um
animal. Isso cria um suspense, como se algo as perseguisse. Essa cena externa ao
teatro tem uma predominância de cores frias e é bem azulado. Em contraste, o interior
do teatro tem o predomínio de cores quentes, principalmente do vermelho [imagem
3].
Ao
entrar no teatro as duas personagens observam um homem de terno no palco que
afirma: "No hay banda! There is no band! Il n’est pas de orquestra!” Ele
revela explicitamente a ilusão do cinema, de que, apesar de ouvir o som de um
trombone, o que ouvimos, na verdade é a gravação do som de um trombone e não um
trombone real. Isso é demonstrado por um homem tocando um instrumento, mas,
apesar dele parar de tocar, o som continua. Em seguida, o apresentador some, e
entra Rebekah del Rio para cantar uma
música sobre um coração partido, uma música que parece refletir bem a situação
de Diane em relação a Camille. A maneira como Lynch constrói essa cena é
praticamente com closes. Começa com
um plano médio, mostrando Rebekah ao entrar no palco e começar a cantar, em
seguida segue-se vários closes, alternando
entre os rostos da cantora, de Betty e de Rita. Cada vez que foca no rosto de
uma das personagens mostra elas cada vez mais emocionadas, até que Rebekah
desmaia, mas a música continua, e as personagens saem desse transe emocional e
se reestabelecem emocionalmente. Nessa construção, Lynch trabalha bem com o
jogo de câmera, com o que ele mostra e não mostra para criar uma surpresa no
espectador. Ao se manter só em closes, o
espectador perde a noção do espaço e o que passa a importar são as emoções que
as personagens sente. Além disso, o espectador não tem noção do que está
acontecendo na cena como um todo, então, por exemplo, enquanto Rebekah já parou
de cantar e está desmaiando, o close está em Rita e Betty, logo, o espectador
está ouvindo a música e acredita que Betty está ainda cantando, para descobrir,
em seguida, surpreso, como as personagens, que não é o caso. O interessante
dessa surpresa é que Lynch acabou de nos avisar sobre a ilusão do cinema, e
mesmo assim somos imersos na cena.
O
teatro Silencio trata, então, sobre a
ilusão em diversos níveis. Em um primeiro, temos o relativo a história de
Betty, e o fato que toda aquela primeira parte do filme é apenas o sonho dela,
uma ilusão que ela está vivendo e da qual tem que despertar. Em um segundo
nível, Lynch dialoga sobre a ilusão do próprio cinema, e sua capacidade de nos
fazer acreditar que aquilo que vemos é real, embora seja apenas uma gravação.
Em um terceiro nível, temos as emoções que o cinema no causa, que são bem reais
enquanto dura o espetáculo, mas das quais nos recuperamos rapidamente quando a
peça acaba. Essa cena me faz pensar na pintura “Isso Não é um Cachimbo” de Magritte enquanto conceito. Ambas
produzem esse ato de revelar a arte como representação, e não como o objeto em
si.
Por
fim, temos a última cena que pretendo analisar, que é o despertar de Diane. A
cena ocorre pouco depois das personagens visitarem o teatro Silencio. O Cowboy entra no quarto de
Diane, que está caída na cama, morta, e fala que é hora dela acordar. Temos um
retrocesso no tempo, e a personagem levanta e percebemos que é a mesma atriz
que interpretava Betty. Nessa hora, a construção de personagens é
impressionante. Temos a mesma atriz, mas com o jogo de luz, maquiagem e
interpretação, elas se tornam personagens bem diferentes [imagem 4]. Quando
Betty é introduzida, ela está num ambiente claro, parece uma garota ingênua e
pura de família, a maneira dela falar, assim como dos velhos que estão com ela
soa bem falsa e a cena possui um caráter de sonho. Ao contrário, quando Diane é
introduzida, ela está no escuro, acabou de acordar, é até possível se pensar em
alguém que usa drogas, e a cena possui um caráter de realidade, talvez pelas
cores menos vivas.
Em
seguida, Lynch realiza uma seqüencia que é linear no espaço, mas que atravessa
diversas temporalidades. Diane acorda e atende a porta, sua ex-colega de casa
aparece para pegar as coisas de volta. Entre as coisas que ela leva está um
cinzeiro com formato de piano na mesinha da sala. Ao mostrar ela pegando-o,
Lynch dá um close numa chave azul que
está na mesa, a qual, posteriormente, sabemos que significa que Camille está
morta. A ex-colega sai da casa e Diane vai para cozinha e entra num estado de
depressão no qual alucina com Camille e depois com ela mesma, tudo acontece em closes. Como já disse acima, Lynch se
utiliza dos closes não só para focar
na figura e suas emoções, mas também para ocultar algo do espectador e gerar
sua ilusão. Nessa cena, existe uma troca de olhares entre um close e outro que conecta as duas Diane.
A principio, pensamos que a segunda é uma ilusão, mas quando Lynch passa para o
plano médio, percebemos que ela é a personagem e que a primeira Diane sumiu.
Estamos na mesma cozinha, mas em outro tempo, um tempo anterior. Essa transição
entre o presente e o passado é bem sútil e é possível através desse jogo de um close para outro e, em seguida, o plano
médio. A personagem prepara o café e se dirige para o sofá, a câmera faz um travelling e, ao se aproxima do sofá
foca nele para mostrar uma Camille nua deitada. Em seguida, devido ao corte,
pela mudança de angulo, Diane está subindo no sofá semi-nua, não mais com o
roupão. Em vez de uma xícara de café, ela carrega um copo de uísque, que ao
colocar na mesa, revela novamente o cinzeiro-piano, mas não há mais a chave.
Essa
seqüência é bem significativa no que se refere a quebra da temporalidade linear
da narrativa. Na primeira parte do filme ela existe e ocorre a todo momento. A
história é misteriosa, mas não possui uma narrativa confusa ou mescla de cenas.
Na segunda as cenas se mesclam ao ponto que você não sabe aonde começou uma e
aonde terminou outra. Lynch se utiliza muito bem da linguagem do cinema e da
alternância entre planos, principalmente do close
para um mais afastado para criar esse efeito. Isso gera uma confusão no
espectador, que não possui mais a clareza dos cortes claros de uma cena para
outra, elas estão juntas.
Imagens
Imagem
1 – Abertura do Filme
Imagem 3 – Teatro Silencio [Parte externa]
Imagem 4 – Betty (esquerda)
e Diane (direita)
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