terça-feira, 3 de novembro de 2009

último lamento

A madrugada anda longe pela noite. Observo um corpo imóvel no chão frio de um quarto: uma mente perturbada descansando. Quantas vezes já presenciei essa cena? Minha reação mudou nos últimos anos? Não consigo definir. Gostava de subir em árvores quando criança, essa é a única coisa que me lembro nesse momento, penso mais um pouco, não sei por quê. Não subo mais em árvores: exercício gratuito, pois não tenho coisa alguma para fazer em cima de uma árvore, a não ser cair, mas cansei-me disso, também. Talvez conversar com alguém ajude.

Chego perto do meu dormente amigo, dou-lhe um chute nas costelas e ele acorda gemendo e tentando soltar suas amarras e virando para um lado e para outro e desesperando. Espero até que se canse. Retiro-lhe a fita adesiva dos lábios, um puxão rápido e doloroso: um grito sincero escapa junto com a fita. Pergunto-lhe como está hoje e ele chora. Aguardo. Quinze minutos depois ele está com ânimo para conversar:

-- Por que está fazendo isso? Por favor, deixe-me sair daqui. Eu não fiz nada de errado. Por favor. O que você vai fazer comigo? Deixe-me ir. Por que está fazendo isso? Deixe-me sair daqui?

Tudo isso demorou uns bons cinco minutos para ser dito, pois meu amigo soluçava demais entre uma palavra e outra. Com algum desânimo, respondo:

-- Lamentar e fugir: você só consegue pensar nisso?

Após controlar seus engasgos e lágrimas, articula algumas palavras: -- Eu não fiz nada para você, deixe-me ir. Ainda não está tudo acabado, eu tenho certeza.

-- Está acabado sim. Ou melhor, logo estará. Não há discussão; parece que nunca houve. Vivemos milhares de anos multiplicando nossos monólogos e achávamos que perduraríamos para além do tempo. Ledo engano: ainda bem. Diga-me: não estava cansado de tudo?

Olha-me, desamparado, resigna-se. Entendeu (ou desistiu).

Ausento-me por alguns instantes e retorno com um martelo, uma estaca de ferro e um serrote. Meu amigo esboça um grito, mas sabe que ninguém pode ouvi-lo. Penso em um mundo melhor.

Momentos depois, estou olhando para a lua, no meu corpo nu sangue morno ainda escorre antes de começar a coagular, respiro aliviada. Matei o último homem e sou a última mulher (ou seríamos nós os primeiros de uma realidade cíclica?). Deito e espero a morte da humanidade e a libertação do mundo.

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Para espairecer, alguns sons:
Versão original:


Cover:

6 comentários:

  1. Último lamento. Não sei se entendi, mas pretendo que sim. De qualquer, qualquer interpretação é válida pelo que dizem por ai. Ainda mais que uma mente psicótica rcmiana.
    O que me faz pensar, se só sobraram uma mulher e um homem na Terra, por que a mulher toma tal atitude? Talvez o cara fosse um filho da puta. Um necessitado que quisesse ir com tudo até ela. E ele não era o amor puro e sincero. Logo, só restava um fim. Um fim para tudo. A humanidade estava condenada. Deus escolheu o homem errado para sobreviver. O casal não era perfeito.
    Mas a descrença na humanidade é grande. E a única salvação é o fim desta.

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  2. vermes sobre um enorme queijo..eh incrivel como, para alguns, a putrefacao cheira a ar puro da liberdade..por isso a fuga d um futuro indesejado

    deixe-a no chao acreditando que voa..

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  3. nem feder, o queijo, fede mais: a crosta é dura e ríspida. mas a fuga não foi individual, ainda bem.

    do chão ela decola.

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  4. Acho que seu questionamento não faz sentido Mr Wolf. Se por acaso entendi o que o rcma quiz dizer e onde sua filosofia nos leva. Na realidade o julgamento moral com relação a atitude da mulher não faz sentido nenhum se somos apenas vermes no queijo. Se descartamos Deus e esses monologos da eternidade não temos onde sustentar qualquer principio do que é certo ou errado a não ser na subjetividade. O que de nada adianta. E o que seria também o amor puro senão uma falsa construção do cristianismo?

    A putrefação não cheira a ar puro de liberdade, mas sentir esse cheiro como algo negativo indica que há em nós um senso de justiça que não provém da nossa experiencia.

    Essa mulher não espera a morte da humanidade, porque nela já não há nenhuma humanidade.
    Quanto a vc rcma, vc é muito melhor do que a sua filosofia.

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. é. a mulher abjurou a humanidade, não há sentido em julgá-la a partir de preceitos morais; até onde eu consigo pensar, a moral é algo humano e a personagem nega-se isso, ou melhor, destrói.

    Quanto a "minha" filosofia (haha, eu tenho alguma filosofia?!) e eu "mesmo" (bem, eu existo, acho que isso é inegável) serem componentes "contraditórios" (com hierarquia de qualidade ou não... não entro nesse mérito). Explico. Não, necessariamente, pratico e/ou defendo aquilo que escrevo nessas histórias; assim simplificaria demais as coisas. Explico, de novo. A possibilidade de debater, ou simplesmente estar-presente, com outros indivíduos diminui um pouco meu "radicalismo" (ai que petulância de minha parte...). Ainda não consigo suster as conseqüências de um individualismo extremado (e nem sei se pretendo realizar isso algum dia); (e a sociedade, atualmente, ao meu ver, prega esse tipo de individualismo, com a diferença de que há algumas "regras" e "convenções"...). Paro por aqui. Continuo em outra ocasião, ou não.

    O melhor do mundo é o silêncio.

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