terça-feira, 18 de maio de 2010

Despercebido

João Carlos preferia passar despercebido. Aos 23 anos, ao sair da faculdade, começou a trabalhar em um escritório de contabilidade de uma empresa média, ganhando um salário médio.
No escritório, escolheu um cantinho no fundo da sala, onde podia trabalhar sem fazer parte das conversas e piadinhas sem sentido dos colegas. O fato das conversas e piadinhas não terem sentido, não levava João Carlos a pensar que os colegas fossem ruins. Mas também não os achava bons. João Carlos não achava nada; nada sobre coisa alguma.
No fim do expediente:
- Ow, Carlitos! Vamo pro buteco!
- Não. Obrigado.
-Ah! Vamo ae, brother!
-...tenho que chegar cedo em casa...
Na verdade, João Carlos não precisava chegar cedo em casa, a não ser para esquentar o macarrão do dia anterior e assistir mecanicamente ao Jornal Nacional. Ainda assim, essa não era uma desculpa consciente, dada para evitar os colegas. João Carlos realmente acreditava que precisava chegar cedo em casa.
Uma ou duas vezes, João Carlos acabou aceitando o convite, mas não bebeu. Certamente o álcool faria com que ele se expusesse, falasse demais...E João Carlos preferia passar despercebido. Então, sairia do bar antes dos outros. Sem se despedir de todos, para não incomodar, mas tomando o cuidado de fazer ao menos um aceno aos que estivessem sentados mais próximos, para não passar por arrogante.
Então chegaria cedo em casa, a tempo de ver o jogo de futebol, ainda que nem mesmo o futebol lhe despertasse grandes paixões; apenas assistia. Teria feito tudo isso se, no caminho para casa, não tivesse passado ao seu lado um cachorro tão grande e tão veloz, justo no momento em que atravessava uma ponte. Caiu da ponte, e debaixo dela havia um córrego. João Carlos bateu a cabeça nas pedras pontudas, que racharam-lhe o crânio como se fosse isopor. Os miolos sujaram a água e alimentaram os peixes; João Carlos passou despercebido por mais seis horas e meia, até que crianças de rua acharam seu corpo ensopado e já livre de cérebro.

Um comentário:

  1. suprir a necessidade de alimentação dos peixes com meus miolos talvez seja mais interessante do que utilizar meus miolos para interagir com outros "iguais" a mim.
    viver e morrer sem ser percebido, interessante filosofia e modo de vida [ou filosofia enquanto modo de vida].

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