quinta-feira, 12 de agosto de 2010

domingos pellegrini jr.

"O muro no colégio, esfolado até perder a tinta; lixa grossa de areia e cimento. O vento lambe os sulcos, dilatando as sílabas. Nome sobre nome, um coração dentro de outro, letra dentro de letra, escritas a canivete, pedra aguda, fivela de latão.

Carlos Alberto e Maria Izabel (coração)
João e Márcia (coração e flecha)
Beto e Ana
Paulo e Cristina

Neste colégio de merda
aprendi coisa pra chuchu
estudei muita matemática
comi o primeiro cu

Paulo e Maria Izabel
Dona Clara filha duma puta
Suástica
Marcos e Maria Izabel
A foice e o martelo

Aqui no nosso colégio
a inteligência é profunda
os professores dão o rabo
as professoras dão a bunda

Escalação do time de 62 - invicto
Caralhos
A estrela de Israel
Bomba redonda com pavio
Revólver
Pedro e Paulo
Carlos, o Solitário

O homem está no pátio, barbado diante do muro. O vento arranha as lembranças, lambe as letras e volta; enlaça; o homem rodopia imóvel e se enxerga imberbe nos muros. O homem caminha; marionete entregue ao vento que vasculha o pátio, as salas, os corredores. O laboratório fede sapos sacrificados, o homem olha pela vidraça. As mesas. os armários, as paredes rabiscadas como numa caverna. Os nomes transpirando.
O homem divisa um sobrenome conhecido, lembra a cara do sujeito, era um loiro que sentava na primeira fileira; mas o nome não lembra.
Continua pelo pátio e os muros perguntam mudos: Voltou? O silêncio sem risadas, o pátio sem filas, a cantina fechada, ninguém, só o vento. O coral não está ensaiando, é o vento. Ninguém na quadra, essas pancadas de bola no chão são abacates caindo no vento; no meio do pátio continua o abacateiro. Ninguém nas salas, esses passos são do vento. E é o vento batendo portas.
O homem anda com as mãos nos bolsos, como se pudesse pendurar em si mesmo; até que de repente está correndo na quadra, está saltando alto para a cesta, arremessa a bola, aplaudem, ele volta correndo para a defesa, procura um rosto na assistência. mas está plantado no meio do silêncio, o vento confunde papéis na arquibancada.
Quando consegue entrar no prédio, o homem vai pelo corredor, escutando o próprio passo caminhar ao lado. As buzinas da rua chegam abafadas, as paredes são grossas de três palmos; o reboco, aqui e ali, com caralhos desenhados, bombas e suásticas. Mas o Reich ruiu, o livro de história tinha uma foto da Chancelaria em chamas, com aquela enorme suástica no topo. No entanto este colégio, dizia o professor de bengala, foi construído antes da Chancelaria de Hitler, e continua de pé. Os alunos então suspiravam em coro, de tédio; o colégio tinha um cheiro de eterno.
Antes do menino passar pelo colégio as paredes já tinham rachaduras, as portas rangiam, os passarinhos já tinham seus ninhos invisíveis e cagavam diariamente nos corredores. No entanto o homem respira e sente que o tempo fortaleceu o colégio. Abre os braços e respira fundo, mas há professoras olhando, inspetores estão vigiando, enfia desajeitado as mãos nos bolsos.

Silêncio. Só ouve mesmo a própria pulsação repercutindo no ouvido. Bate palmas, como um inspetor de alunos, pra quebrar o silêncio; depois sente-se imbecil.
Entra na classe, devagar, como se fosse a primeira vez; vai até o janelão acortinado. Poderia abrir a vidraça, rever o casario, a caixa d'água e as fábricas no horizonte; mas um colégio em férias não abre janelas.
Sente uma presença atrás, um olhar latejando na nuca. Ninguém. Bobagem. Mas virou e olhou.
Nenhum giz na lousa
Vai até o fundo da classe, abre o armário e está lá o giz, como um cigarro, enfiado na dentadura do esqueleto. Frente a frente com o esqueleto, o homem fica um minuto revendo as faces, ouvindo vozes, até que tira o giz da boca do outro e fecha o armário.
Com o giz na mão, diante da lousa, não acha o que escrever. Podia ser um palavrão, mas não tem mais graça. Ou podia escrever que ninguém precisa saber raiz quadrada ou raiz cúbica, isso a vida deixou mais que provado, ou podia escrever que reprovou em inglês dois anos, perdeu dois anos com o tal inglês até que turou o diploma e nunca mais falou nem escreveu em inglês. Podia pedir que acabem com as filas no pátio, fila pra entrar na classe, fila na cantina, fila pra desfilar, fila na educação física. Fila até pra cagar; o colégio tinha só duas privadas naquele tempo; oitocentos alunos, cada um com seu respectivo cu e só duas privadas. Até que enfiaram em cada delas uma bomba de dois dedos de grossura, com metade de um cigarro acesso em cada uma; explodiram quase juntas, ficou parecendo coisa de controle remoto; e voou caco de privada até o teto. O diretor foi pessoalmente de classe em classe, deu ordem pra cada professor levar a turma até o pátio -- e em dois minutos estavam lá os oitocentos de pé, enfileirados por ordem de altura. Então o direitor passeou no meio das filas, uma por uma, olhando nos olhos de um por um -- mas nenhum se abalou que ele pudesse dizer: é este. Isto levou uns dez minutos. Aí ele deu ordem para os inspetores de manter os oitocentos em posição de sentido, e foi se trancar no gabinete mais uns vinte minutos, tempo de pensar num discurso. Aí voltou e fez o discurso, que levou ns quinze minutos ou duas horas, dependendo da fome de cada um, porque já tinha passado a hora da saída; e o sol bem a pino. No discurso ele falou da tradição do colégio; ele mesmo tinha estudado ali; e no seu tempo também existiram os bons e os maus; então comparou o colégio com a pátria e perguntou se eles queriam ver a pátria dominada por maus elementos, e levantou os braços conclamando a todos para responder bem alto, vocês querem ou não ver a pátria dominada por maus elementos?! ao que os oitocentos responderam resmungando nem sim nem não, estavam com fome, as pernas bambas e o saco já arrastando no chão. Mas vocês querem ou não ver a pátria dominada por maus elementos? Responda alto, juventude brasileira! Aí os oitocentos responderam nem sim nem não num urro feroz porque o negócio estava ficando divertido. Mas aí o diretor baixou a voz e caiu na lengalenga normal, do patriotismo, da responsabilidade, da compreensão, do patrimônio que é de todos e por todos deve ser zelado, e convidou o culpado a ter a hombridade de se acusar, e depois do silêncio convidou qualquer um a ter a responsabilidade de acusar o culpado, e depois de um silêncio maior, com os passarinhos debochando, ameaçou suspender os oitocentos por uma semana, ficou esperando a ameaça assentar no silêncio, aí repetiu que suspendia todos com dor no coração mas tinha que cumprir seu dever, em vista de que ninguém cumpria o dever de acusar os maus elementos. Fez uma voz dolorida, com os passarinhos piando de piedade, e lembrou que era tempo de provas; e aluno suspenso leva zero em prova, lembrou de mansinho, não tem justificativa para aluno suspenso. E a fome apertando. Aí ele passeou de novo entre as filas, olhando nos olhos de um por um; de vez em quando parava na frente de algum e encarava, igual general passando tropa em revista. Aí ele falou que estaria sempre no seu gabinete à disposição de quem soubesse informar o nome do culpado. Ou podiam ligar para a casa dele, número tal repetiu, número tal, a qualquer hora, não precisam se identificar, basta dizer o nome do culpado. Aí discursou de novo, explicando que não ia suspender os oitocentos porque era dar muita importância ao ato de um covarde, um desclassificado que deixava sua culpa recair sobre todos. E tornou a repetir o número do telefone, ao que muitos anotaram mentalmente e um ano depois ainda estavam telefonando às seis da manhã ou à meia-noite pra perguntar se já estavam acordados ou se já tinham ido dormir, ou perguntando se era dali que tinham encomendado um frango e um pinto, e se queriam o pinto com ou sem asa, porque pinto com asa no momento não tinham, porque se pinto tivesse asa mijava na cidade inteira. Depois de mais de hora em pé, com os pés juntos, a perna parece que não vai mais obedecer, mas o homem ainda falou mais um pouco, aí disse 'debandar', que era a palavra que os oitocentos estavam esperando, e mesmo depois de duas horas em pé a perna obedece, os oitocentos berraram -- Brasil! -- e saíram correndo. No outro dia começou a construção do mictório no pátio, com dez privadas desas de agachar, com duas solas pra botar os pés e um buraco rente o chão; não tem o que explodir.

Então o homem escreve na lousa
ATENÇÃO

eu sei quem explodiu
as privadas em 1963

E redescobre que escrever na lousa é igual comer pipoca, é só começar.

Aqui aprendi inglês
Inglaterra, I love you
Aprendi bater punheta
aprendi a comer cu

Descobre que a memória puxa pelas rimas:

Cabral em 1500
viu tanta índia pelada
que até mandou rezar missa
pra descontar os pecados
Depois falou pro Caminha
se peito fosse corneta
e xoxota campainha
já pensou a barulheira?
Ao que Caminha responde
Vou mandar carta, Cabral
Achamos por fim as índias
E viva Portugal

As buzinas chegam abafadas.
No frio, fechavam as janelas; olhava-se o mapa-múndi na parede. Equador, capital Quito. Superfície, tantos mil quilômetros quadrados, ou milhões, quem sabe, e população de tantos milhões de habitantes. E agora atenção para a última questão: Com quantos países da América Latina o Brasil faz divisa e quais são. E por favor digam qual a importância de saber que o Brasil faz divisa com Uruguai, Paraguai, Venezuela e mais sabe-se lá quantos países de merda, aí uma coisa que nunca ensinaram, que o Brasil faz divisa com um monte de países de merda, tudo fundo de fossa. Mas eles podem até dar uma aula sobre bosta e ensinar que é uma coisa perfumada que depois de um quatrilhão de anos pode até virar petróleo, e depois na prova perguntam o que é bosta? e você tem que responder com as mesmas palavras que bosta é uma coisa perfumada que depois de um quatrilhão de anos pode até virar petróleo, então o homem escreve com o toco do giz:

No oitavo dia da criação
Deus estava cansadão
deu um peido de repente
Assim criou-se a matemática
também a análise sintática
pra encher o saco da gente

Então o homem afasta um passo para olhar a lousa cheia. Nisso, sente-se vigiado. Uma presença está solta em todos os ângulos, alguém está por ali. É quando, lá fora, os carros param no sinaleiro e a tarde fica suspensa por um momento; o homem sente um olhar na nuca -- vira pra trás, é a porta do armário que abriu sozinha, o esqueleto debocha com olhos fundos.
O homem sai da sala, percorre devagar o corredor. No fim, diante da porta, pára e se volta lento, como num filme, num teatro. Lá, no outro extremo do corredor, está o menino.
Acende um cigarro, solta a primeira tragada comtra o peito, a fumaça penetra na camisa e fica se enovelando. O menino também puxa seu toco de cigarro e tosse com olhos vermelhos. O homem enxerga que o menino tem as calças encardidas nos joelhos.
O menino passa a bituca ao companheiro do lado: estão numa roda fumando o cigarro. A bituca toda até voltar ao menino, pura brasa, mas ele tenta uma última tragada e queima os lábios. O homem amassa o cigarro na parede e enfia no bolso.
Aí o homem vem andando, o menino ao seu encontro enquanto os outros meninos se esfumaçam. Um ao encontro do outro, até que se fundem; mas o homem sai sozinho pela clarabóia do mictório. Basta a agilidade de um menino pra escalar, com o pé na torneira, a meia-parede entre as privadas. Suspender a clarabóia de vidros pintados -- e o sol entra, o homem sai.
Pula o muro, olha para os lados. Acena para o ônibus. Tira o cigarro do bolso e joga fora, ginasiano culpado. Salta, planta os pés no estribo e fica vendo o muro passar. Depois o ônibus desce a avenida como se tivesse furtado o passageiro, o passageiro senta como se tivesse acabado de roubar".

"A visita", de Domingos Pellegrini Jr., presente no livro Os meninos.

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