sexta-feira, 27 de agosto de 2010

ferréz

“A capoeira não vem mais, agora reagimos com a palavra, porque pouca coisa mudou, principalmente para nós.
Não somos movimento, não somos os novos, não somos nada, nem pobres, porque pobre, segundo os poetas da rua, é quem não tem as coisas.
Cala a boca, negro e pobre aqui não tem vez! Cala a boca!
Cala a boca uma porra, agora a gente fala, agora a gente canta, e na moral agora a gente escreve.
Quem inventou o barato não separou entre literatura boa/feita com caneta de ouro e literatura ruim/escrita com carvão, a regra é só uma, mostrar as caras. Não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto.
A própria linguagem margeando e não os da margem, marginalizando e não os marginalizados, rocha na areia do capitalismo.
O sonho não é seguir o padrão, não é ser o empregado que virou patrão, não, isso não, aqui ninguém quer humilhar, pagar migalhas nem pensar, nós sabemos a dor por recebê-las.
Somos o contra sua opinião, não viveremos ou morreremos se não tivermos o selo da aceitação, na verdade tudo vai continuar, muitos querendo ou não.
Um dia a chama capitalista fez mal a nossos avós, agora faz mal a nossos pais e no futuro vai fazer a nossos filhos, o ideal é mudar a fita, quebrar o ciclo da mentira dos ‘direitos iguais’, da farsa do ‘todos são livres’, a gente sabe que não é assim, vivemos isso nas ruas, sob os olhares dos novos capitães do mato, policiais que são pagos para nos lembrar que somos classificados por três letras classes: C, D, E.
Literatura de rua com sentido, sim, com um princípio, sim, e com um ideal, sim, trazer melhoras para o povo que constrói esse país mas não recebe sua parte.
O jogo é objetivo, compre, ostente, e tenha minutos de felicidade, seja igual ao melhor, use o que ele usa.
Mas nós não precisamos disso, isso traz morte, dor, cadeia, mães sem filhos, lágrimas demais no rio de sangue da periferia.
Somos mais, somos aquele que faz a cultura, falem que não somos marginais, nos tirem o pouco que sobrou, até o nome, já não escolhemos o sobrenome, deixamos para os donos da casa-grande escolher por nós, deixamos eles marcarem nossas peles, por que teríamos espaço para um movimento literário? Sabe duma coisa, o mais louco é que não precisamos de sua legitimação, porque não batemos na porta para alguém abrir, nós arrombamos a porta e entramos.
Sua negação não é novidade, você não entendeu? Não é o quanto vendemos, é o que falamos, não é por onde, nem como publicamos, é que sobrevivemos.
Estamos na rua, loco, estamos na favela, no campo, no bar, nos viadutos, e somos marginais mas antes somos literatura, e isso vocês podem negar, podem fechar os olhos, virar as costas, mas, como já disse, continuaremos aqui, assim como o muro social invisível que divide este país.
[...]
Jogando contra a massificação que domina e aliena cada vez mais os assim chamados por eles de ‘excluídos sociais’ e para nos certificar de que o povo da periferia/favela/gueto tenha sua colocação na história, e que não fique mais quinhentos anos jogado no limbo cultural de um país que tem nojo de sua própria cultura, a literatura marginal se faz presente para representar a cultura de um povo, composto de minorias, mas em seu todo uma maioria.
E temos muito a proteger e a mostrar, temos nosso próprio vocabulário que é muito precioso, principalmente num país colonizado até os dias de hoje, onde a maioria não tem representatividade cultural e social, na real, nego, o povo num tem nem o básico pra comer, e mesmo assim, meu tio, a gente faz por onde ter us barato pra agüentar mais um dia.
Mas estamos na área, e já somos vários, estamos lutando pelo espaço para que no futuro os autores do gueto sejam também lembrados e eternizados, mostramos as várias faces da caneta que se faz presente na favela, e pra representar o grito do verdadeiro povo brasileiro, nada mais que os autênticos, é como a pergunta do menino numa certa palestra:
-- Como é essa literatura marginal publicada em livros?
Ela é honrada, ela é autêntica e nem por morarmos perto do lixo fazemos parte dele, merecemos o melhor, pois já sofremos demais.
[...]
A maior satisfação está em agredir os inimigos novamente, e em trazer o sorriso na boca da dona Maria ao ver o livro que o filho trouxe para casa.
[...]
Muitas são as perguntas, e pouco o espaço para respostas. Um exemplo para guardar é o de Kafka. A crítica convencionou que aquela era uma literatura menor. Ou seja, literatura feita pela minoria dos judeus de Praga, numa língua maior, o alemão.
A Literatura Marginal, sempre é bom frisar, é uma literatura feita por minorias, sejam elas raciais ou socioeconômicas. Literatura feita à margem dos núcleos centrais do saber e da grande cultura nacional, isto é, de grande poder aquisitivo. Mas alguns dizem que sua principal característica é a linguagem, é o jeito como falamos, como contamos a história, bom, isso fica para os estudiosos, o que a gente faz é tentar explicar, mas a gente fica na tentativa, pois aqui não reina nem o começo da verdade absoluta.
Hoje não somos uma literatura menor, nem nos deixemos tachar assim, somos uma literatura maior, feita por maiorias, numa linguagem maior, pois temos as raízes e as mantemos.
[...]
Cansei de ouvir:
-- Mas o que cês tão fazendo é separar a literatura, a do gueto e a do centro.
E nunca cansarei de responder:
-- O barato já ta separado há muito tempo, só que do lado de cá ninguém deu um gritão, ninguém chegou com a nossa parte, foi feito todo um mundo de teses e estudos do lado de lá, e do cá mal terminamos o dito ensino básico.
Sabe o que é mais louco? Neste país você tem que sofrer boicote de tudo que é lado, mas nunca pode fazer o seu, o seu é errado, por mais que você tenha sofrido você tem que fazer por todos, principalmente pela classe que quase conseguiu te matar, fazendo você nascer na favela e te dando a miséria como herança.
Afinal, um dia o povo ia ter que se valorizar, então é nóis nas linhas da cultura, chegando devagar, sem querer agredir ninguém, mas também não aceitando desaforo nem compactuando com hipocrisia alheia. Bom, vamos deixar de ladainha e na bola de meia tocar o barco.
Boa leitura, e muita paz se você merecê-la, senão, bem-vindo à guerra”.

Trechos de “Terrorismo literário”, de Ferréz, presente na coletânea Literatura marginal: talentos da escrita periférica.

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