quarta-feira, 29 de junho de 2011

andrei tarkovski

“Antes de abordar os problemas específicos da natureza da arte cinematográfica, creio ser importante definir o meu modo de entender o objetivo fundamental da arte como tal. Por que a arte existe? Quem precisa dela? Na verdade, alguém precisa dela? Estas são questões colocadas não só pelo poeta, mas também por qualquer pessoa que aprecie arte – ou, naquela expressão corrente, por demais sintomática da relação entre a arte e seu público do século XX – o ‘consumidor’.
Muitos fazem essa pergunta a si próprios, e qualquer pessoa ligada à arte costuma dar a sua resposta pessoal. Alexander Block disse que ‘do caos, o poeta cria harmonia’. ... Puchkin acreditava que o poeta tem o dom da profecia. ... Todo artista é regido por suas próprias leis, mas estas não são, em absoluto, obrigatórias para as demais pessoas.
De qualquer modo, fica perfeitamente claro o objetivo de toda arte – a menos, por certo, que ela seja dirigida ao ‘consumidor’, como se fosse uma mercadoria – é explicar ao próprio artista, e aos que o cercam, para que vive o homem, e qual é o significado da sua existência. Explicar às pessoas a que se deve sua aparição neste planeta, ou, se não for possível explicar, ao menos propor a questão.
Para partirmos da mais geral das considerações, é preciso dizer que o papel indiscutivelmente funcional da arte encontra-se na idéia do conhecimento, onde o efeito é expressado como choque, como catarse.
(...) É certo que todas as pessoas usam a soma dos conhecimentos acumulados pela humanidade, mas, mesmo assim, a experiência do autoconhecimento ético e moral representa, para cada um, o único objetivo da vida, e, em termos subjetivos, ela é vivenciada a cada vez como algo novo. O homem está eternamente estabelecendo uma correlação entre si mesmo e o mundo, atormentado pelo anseio de atingir um ideal que se encontra fora dele e de se fundir ao mesmo, um ideal que ele percebe como um tipo de princípio fundamental sentido intuitivamente. Na inatingibilidade de tal fusão, na insuficiência do seu próprio ‘eu’, encontra-se a fonte perpétua da dor e da insatisfação humanas.
E assim, a arte, como a ciência, é um meio de assimilação do mundo, um instrumento para conhecê-lo ao longo da jornada do homem em direção ao que é chamado ‘verdade absoluta’.
Aqui, porém, termina toda e qualquer semelhança entre duas formas de materialização do espírito criativo do homem, nas quais ele não apenas descobre, mas também cria. No momento, é muito mais importante perceber a divergência, a diferença de princípio, entre as duas formas de conhecimento: o científico e o estético.
Através da arte o homem conquista a realidade mediante uma experiência subjetiva. Na ciência, o conhecimento que o homem tem do mundo ascende através de uma escada sem fim, e a cada vez é substituído por um novo conhecimento, cada nova descoberta sendo, o mais das vezes, invalidada pela seguinte, em nome de uma verdade objetiva específica. Uma descoberta artística ocorre cada vez como uma imagem nova e insubstituível do mundo, um hieróglifo de absoluta verdade.
(...) A arte nasce e se afirma onde quer que exista uma ânsia eterna e insaciável pelo espiritual, pelo ideal: ânsia que leva as pessoas à arte. A arte contemporânea tomou um caminho errado ao renunciar à busca do significado da existência em favor de uma afirmação do valor autônomo do indivíduo. O que pretende ser arte começa a parecer uma ocupação excêntrica de pessoas suspeitam que afirmam o valor intrínseco de qualquer ato personalizado. Na criação artística, porém, a personalidade não impõe seus valores, pois está a serviço de uma outra idéia geral e de caráter superior. O artista é sempre um servidor, e está eternamente tentando pagar pelo dom que, como que por milagre, lhe foi concedido. O homem moderno, porém, não quer fazer nenhum sacrifício, muito embora a verdadeira afirmação do eu só possa se expressar no sacrifício. Aos poucos, vamos nos esquecendo disso, e, inevitavelmente, perdemos ao mesmo tempo todo o sentido da nossa vocação humana....
Quando falo do anseio pelo belo, ideal como objetivo fundamental da arte, que nasce de uma ânsia por esse ideal, não estou absolutamente sugerindo que a arte deva esquivar-se da ‘sujeira’ do mundo. Pelo contrário! A imagem artística é sempre uma metonímia em que uma coisa é substituída por outra, o menor no lugar do maior. Para referir-se ao que está vivo, o artista lança mão de algo morto; para falar do infinito, mostra o finito. Substituição ... não se pode materializar o infinito, mas é possível criar dele uma ilusão: a imagem.
(...) Além disso, a grande função da arte é a comunicação, uma vez que o entendimento mútuo é uma força a unir as pessoas, e o espírito de comunhão é um dos mais importantes aspectos da criação artística. Ao contrário da produção científica, as obras de arte não perseguem nenhuma finalidade prática. A arte é uma metalinguagem com a ajuda da qual os homens tentam comunicar-se entre si, partilhar informações sobre si próprios e assimilar a experiência dos outros. Mais uma vez, isso nada tem a ver com vantagens práticas, mas com a concretização da idéia do amor, cujo significado encontra-se no sacrifício: a perfeita antítese do pragmatismo. Simplesmente não posso acreditar que um artista seja capaz de trabalhar apenas para dar expressão a suas próprias idéias ou sentimentos, os quais não têm sentido ao menos que encontrem uma resposta. Em nome da criação de um elo espiritual com os outros, a auto-expressão só pode ser um processo torturante, que não resulta em nenhuma vantagem prática: trata-se, em última instância, de um ato de sacrifício. Mas valerá a pena o esforço, apenas para se ouvir o próprio eco?”

Trechos do ensaio “Arte – anseio pelo ideal”, parte do livro Esculpir o tempo, de Andrei Tarkovski.

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