domingo, 27 de dezembro de 2009

notas dispersas

Consenso pela aniquilação da diferença. Ou nem tão drástico assim: propostas de homogeneização distribuídas pelos mais diversos meios das mais variadas formas. Violência indireta, se é que isso é factível [uma discussão sobre se a violência em algum momento deixa de ser ativa/direta fica para a próxima], contudo, não resolve com tanta freqüência, ainda mais dependendo dos objetivos almejados pela situação, ou melhor, por aqueles que primeiro organizam e utilizam a força para a concretização de seus anseios.
Não estou indo para lugar algum aqui. Não estou propondo uma interpretação explicativa para um contexto delimitado em um tempo específico. Não convenço a mim mesmo e não quero convencer possíveis leitores. Penso, ultimamente, em arregimentar meios de usar a violência, destrutiva e traumática, contra indivíduos ou grupos de indivíduos e tenho, para isso, uma consecução de exemplos enormes pelas mais variadas histórias dessa coisa pusilânime denominada humanidade. Mas mantenhamos a tranqüilidade de uma vida confortável e respeitosa ao sistema: não matarás. E não matarei. Quem acaba mais agredido é o agressor?
A sociedade é boa professora de modos: modos para educar: desmembrar, desarticular e, depois, reconstruir consciências. Mas às vezes as coisas desmancham-se mais do que o planejado. Ultrapassar a dimensão da castração, agredir o trauma [não vejo, no momento, possibilidades de superá-lo], a si próprio e aos outros. Auto-destruição coletiva. Algum dia.


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Série B
[...]
Caso nº 1 – Assassinato, por dois jovens argelinos, de 13 e 14 anos, de um colega europeu

Trata-se de uma perícia médico-legal. Dois jovens argelinos, de 13 e 14 anos, alunos de uma escola primária, são acusados de ter matado um de seus colegas europeus. Reconheceram ter cometido o ato. O crime foi reconstituído e foram feitas fotos. Nelas, vê-se um dos meninos segurando a vítima, enquanto o outro a esfaqueia. Os pequenos acusados não modificam suas declarações. Temos longas entrevistas com eles. Reproduzimos aqui alguns trechos:

a) Menino de 13 anos
‘Não estávamos com raiva dele. Todas as quintas-feiras, a gente ia caçar juntos, com atiradeira, na colina, perto da aldeia. Ele era um bom companheiro nosso. Não ia mais à escola, porque queria ser pedreiro como o pai. Um dia, a gente decidiu matar ele, porque os europeus, eles querem nos matar todos nós argelinos. Mas a gente não pode matar os grandes. Mas ele, da nossa idade, a gente pode. A gente não sabia como fazer. A gente queria jogar ele numa fossa, mas talvez ele ficasse só ferido. Então, a gente pegou uma faca em casa e matou ele.
-- Mas por que vocês o escolheram?
-- Porque ele brincava com a gente. Outro não teria subido lá com a gente.
-- Mas ele era um amigo.
-- É, mas por que eles querem nos matar? O pai dele é miliciano e diz que tem que cortar a nossa cabeça.
-- Mas ele mesmo disse isso a vocês?
-- Ele? Não.
-- Você sabe que agora ele está morto?
-- Sei.
-- O que é a morte?
-- É quando tudo acaba, a gente vai para o céu.
-- Foi você que o matou?
-- Foi.
-- Isso mexe com você, porque você o matou?
-- Não, eles querem nos matar, então...
-- Ir pra prisão te chateia?
-- Não.’

b) Menino de 14 anos.
Este jovem acusado contrasta nitidamente com o seu colega. Já é quase um homem, um adulto, por seu controle muscular, pela fisionomia, o tom e o conteúdo das respostas. Também não nega ter matado. Por que matou? Não responde, mas pergunta-me se eu já vi um europeu na prisão. Algum dia um europeu foi preso por ter matado um argelino? Respondo que, efetivamente, não vi europeus na prisão.
-- E no entanto, tem argelinos que são mortos todos os dias, não é?
-- Sim.
-- Então, por que só se vê argelinos nas prisões? O sr. pode me explicar?
-- Não, mas diga-me por que você matou esse menino que era teu companheiro?
-- Vou explicar... O sr. ouviu falar do caso de Rivet [Rivet é uma aldeia que, a partir de certo dia do ano de 1956, tornou-se célebre na região. Uma noite, a aldeia foi invadida por milicianos franceses que, depois de tirar da cama 40 homens, os assassinaram.]?
-- Sim.
-- Dois parentes meus foram mortos nesse dia. Na nossa terra, disseram que os franceses juraram matar todos, um a um. Algum francês já foi preso por causa de todos esses argelinos que foram mortos?
-- Não sei.
-- Pois é, ninguém foi preso. Eu queria ir pra montanha, mas sou pequeno demais. Então, falei com o X que a gente tinha que matar um europeu.
-- Por que?
-- O quê o sr. acha que a gente devia fazer?
-- Não sei. Mas você é uma criança e essas são coisas de adultos.
-- Mas eles também matam crianças...
-- Não é uma razão para matar o teu amigo.
-- Pois é, matei ele. Agora, pode fazer o que o sr. quiser.
-- Esse amigo tinha feito alguma coisa contra você?
-- Não, não fez nada.
-- E então...
-- É isso aí...”

Frantz Fanon. Os condenados da terra. Juiz de Fora, RJ: Editora da UFJF, 2005, p. 311-313.

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Nem tudo tão sério, alguma música:




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