segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Variação: Caetano, José Antonio e sangue a escorrer e alguma música

Começou aos poucos, mas quando dei por mim a situação já era grave. Sussurros distantes de início, hoje são gritos que parecem querer estourar minha cabeça para escapar ao mundo: incompreensíveis, em um primeiro momento. Escutei essas vozes com muita preocupação durante um longo tempo, hoje não me importo mais com isso, nem com nada, contudo, desejo dar testemunho de alguns acontecimentos prosaicos de tempos em que eu ainda preocupava-me, tenho que aproveitar enquanto ainda possuo fôlego e gastá-lo na esperança de morrer de estafa de tanto falar ou pensar, mesmo que para isso eu perca toda articulação da fala ou do pensamento, pois preciso de uma solução final que sobressaia ao ato final, pois a ação foi-me negada, várias vezes, pois minha escolha não é mais minha, pois se nada der certo espero perder-me.

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Era dia de folga. Acordei mais tarde do que o normal e fui comprar um jornal, deixei o café da manhã para ser suprido pelo almoço. Nesse dia comecei a ouvir sussurros que pareciam expandir com leveza do fundo, seja lá onde este fique, da minha cabeça. Passavam despercebidos, caso eu desejasse, e até proporcionavam algum prazer contemplativo enquanto eu ficava deitado em minha cama a observar a imobilidade constante do teto e pensar em qualquer coisa que agora não mais rememoro.

Nos primeiros dias de volta ao trabalho com essa condição patológica – não sei se essa a melhor definição, espero explicar porque até o fim deste relato – não tive problemas, nem no relacionamento com os colegas do escritório – trabalhava em um escritório de contabilidade –, nem no rendimento do trabalho. Apenas dia a dia as vozes preenchiam cada vez com mais presença o meu ser e eu continuava sem compreender significado algum em sua progressiva balbúrdia.

Consultei um psicólogo recomendado pelo meu chefe após ter-lhe explicado minha situação. Stress: esse foi o diagnóstico. Ganhei uma dispensa de três dias do trabalho. O chefe sorriu, o psicólogo sorriu, eu ensaiei um sorriso, mas não consegui pari-lo. Fiquei em casa no primeiro dia. Coloquei fones de ouvido e tentei ouvir música, tentei ler um livro, tentei assistir televisão, tentei dormir. As vozes mantinham presença constante, pareciam conversar em idiomas desconhecidos para mim e mesmo assim não conseguia parar de atentar para elas. Segundo dia. Saí. Simplesmente saí. Andei e andei, sem mais. Não recordo mais quanto nem por onde. Apenas eu e as vozes, o mundo ao largo, impassível, estéril, mas pretensamente cheio de vida. Não sei onde dormi, ou se consegui dormir. Terceiro dia. Estava em um sanatório e descobri ao indagar o médico diretor do estabelecimento que eu havia chegado lá durante a madrugada, requisitado auto-internação e entrado em estado de histeria ao tentar explicar os motivos: fui sedado e assim fiquei durante umas boas doze horas ininterruptas até o momento em que despertei e fui descobrir onde eu e meus milhares de conversadores incógnitos estávamos. Aceitei os termos da situação. Aproveitei para realizar alguns perfis dos internos presentes no estabelecimento, com a ajuda das vozes, e penso ser interessante relatar o resultado final desse escrutínio, a meu ver, tão bem embasado.

Primeiro enfermeiro: insensato, comia formigas quando criança, possuía, em seus sonhos, a irmã que nunca teve, vestia branco, mancava levemente com o braço esquerdo ao andar de ponta cabeça, poucas palavras, não era carinhoso nem rude.

Segundo enfermeiro: olhos pareciam bolas de gude verdes e causavam uma ótima impressão com seu bigode que, ao sol, parecia brilhar com um azulado fosco, causava-me grande impressão tal aparente contradição, gostava de jogar cartas, vestia branco, sorria para mim, desgostava-se, era um pai exemplar.

Primeira enfermeira: sorriso moderado, boa-fé, algum descaso vez ou outra, conversava comigo quase todo dia, amava sua mãe e cuidava dela com muito carinho, quando esta morreu ficou triste por dias, manejava injeções como ninguém e adorava o barulho da chuva em dias quentes, vestia branco.

Médico chefe: austero, boa-pinta, sapiente e levemente intransigente, gostava de jogar bafo nos intervalos da escola primária e até hoje guarda com carinho suas memórias de infância, vestia branco, lia muito, romances, poesias e artigos científicos, confidenciava comigo assuntos variados quando íamos para o banho de sol.

Havia ainda outros personagens peculiares dos quais não consigo encontrar o resultado de nossas observações. A equipe da qual eu fazia parte – se esqueci de mencionar antes, desculpe-me, montei um grupo de pesquisa já no segundo dia de estadia no sanatório: somados éramos em torno de trinta: eu, oito catatônicos, onze considerados dementes genéricos, seis com distúrbios constantes de personalidade, quatro senhores idosos abandonados por seus familiares e mais a multidão de milhares em minha mente – tinha o intuito nobre de elaborar um diagnóstico preciso dos indivíduos tão problemáticos, coitados, que pensavam estar tratando de nós. O resultado foi ótimo, apesar das reuniões geralmente não serem realizadas com todos os membros da equipe e, ocasionalmente, serem presenciadas por algum enfermeiro(a) ou visitante. Acabado o trabalho, agradeci todos meus colegas de pesquisa e informei com total certeza meu interesse de abandonar o sanatório ao médico chefe. Após duas semanas recebi permissão para sair do recinto. E assim saí. Mesmo. São, com o sentimento de trabalho realizado com sucesso e satisfiz, pensei naquele momento, as companhias que vociferavam na minha cuca.

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Contudo, o tempo continuou passando e passando. Não sei onde estou e o barulho é tanto na minha cabeça que já não sei bem: penso compreender o que se passa aqui dentro de mim. Mas não consigo mais compreender o que se passa fora de mim: o mundo e suas personagens, seus atos, suas construções, suas palavras, seus desejos, agora, não possuem significado algum. Se ao menos pudesse expor minhas vozes para todos, mas não posso, são só minhas, elas dizem. Como comecei dizendo: falo e penso, falo e penso, só comigo e com muitos em mim mesmo. Tentei diversas vezes expandir-me ao mundo: verti o sangue de diversas partes do meu corpo, diversas vezes: toda vez que sentia minha consciência esvaindo, o sangue começava a refluir e quando eu me dava conta as feridas estavam fechadas. Minha vida prolonga-se, por mais que eu intente contra. Enquanto isso, todos os outros parecem estar definhando. Mantenho monólogos com todas as vozes, agressivas ou pacíficas, retumbantes em minha cabeça e tento desaparecer em mim e vejo o mundo desaparecer em todos e todos desaparecem, espero. Espero e espero e não desejo achar coisa alguma a não ser um lugar para perder-me em definitivo enquanto falo e penso, falo e penso e o mundo desmorona.



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breve pós-escrito: recomendo ouvirem as composições presentes no álbum "actios", conduzidas e executadas por krzysztof penderecki e don cherry e outros vários músicos. infelizmente não encontrei uma amostra no youtube para disponibilizar. caso tenham interesse podem encontrar com alguma facilidade em outros blog e afins.

Um comentário:

  1. Ah! A idéia da individualidade e a impossibilidade de comunicação do Ser, preso em si mesmo e as suas próprias percepções, multi-percepções de um mundo multi-cultural com multi-idéias e multi-facetado, várias faces, várias personalidades. O que requer uma fragmentação do Ser, forçado a ser como água. Adaptado a cada ambiente. Mas, no mundo frio, em que nos tornamos gelo, isso implica em quebra, fragmentação, desunião. Destruição da unidade do ser.

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