terça-feira, 14 de junho de 2011

personagem

Tomou um soco do silêncio por não mais acreditar em suas poesias vazias. Quinze minutos depois, berrava o despertador, lembrando de forma estridente o recomeço das responsabilidades, adquiridas e impostas. Era um poeta de escritório, quase burocrático, entre encaminhar ofícios, responder emails e jogar paciência no computador encontrava algum tempo para rabiscar seus poemas em verso livre. Apesar de tentar aprender métrica, desistiu por falta de gosto, ou melhor, falta de persistência e habilidade afirmadas como predileção pela "total liberdade de criação", e assim seguia o tortuoso curso de sua intuição poética até ser requisitado para elaborar uma estimativa do consumo de papel A4 para o mês seguinte. Aconteceu de reler seus poemas em uma sexta-feira após o trabalho em que preferiu não ir ao bar com os colegas, uma falta de dinheiro disfarçada como excesso de cansaço e auto-afirmada como possibilidade de dar vazão à inspiração literária. Releu seus poemas, refletiu, encarou um caderno em branco comprado há algumas semanas e ficou praticamente imóvel e acordado, os cotovelos apoiados na mesa da cozinha com as mãos como suporte para o peso da cabeça. Assim permaneceu até o despertador iniciar seu ritual. Ao menos era sábado, e um sábado de folga, foi ao quarto, desligou o despertador, retornou à cozinha, amassou seus poemas, queimou-os no fogão, fechou o caderno, levou-o consigo até o quarto, enfiou-o na gaveta do criado-mudo ao lado da cama, deitou-se e ficou a pensar em quando conseguiria um aumento de salário.

Um comentário:

  1. Cara, que texto lindo. Lindo mesmo.
    Uma frase foda atras da outra. Essa aqui principalmente, curti demais:

    "[...] Aconteceu de reler seus poemas em uma sexta-feira após o trabalho em que preferiu não ir ao bar com os colegas, uma falta de dinheiro disfarçada como excesso de cansaço e auto-afirmada como possibilidade de dar vazão à inspiração literária."

    Mas é foda essa vida. Diante da sociedade e das responsabilidades somos forçados, mas não interamente forçados, porqeu não é algo necessariamente imposto. Condicionados? Um pouco mais ameno. Mas, o ponto é que, nós acabamos por negar, obstruir, não deixar fluir a poesia dentro de nós. Não deixamos expressar nossos sentimentos, emoções. Não vivemos uma experiência nova. Nos deixamos cair na rotina do dia, nas obrigações.

    O personagem se deixa, numa única noite, apreciar suas poesias. Num momento único, e que ele garante que vai ser único por queimas suas poesias no fim. E é engraçado, porque esse queimar suas poesias, podem envolver vários motivos, como:
    - Sentir uma falta de propósito nelas. Já que, em parte, ele não ve como elas podem se encaixar no mundo que ele vive e nem ter, talvez, quem as leia, a não ser ele mesmo.
    - Sentir que é tempo perdido dedicar-se a elas, quando tem questões mais importantes a se pensar (aumento do salário).

    E assim, o personagem nega suas emoções pela frieza do pensamento rotineiro.

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