sábado, 12 de dezembro de 2009

Uma dança

Não queria dançar, mas insistiam.

Há alguns dias, sentado no banco de uma praça qualquer, tive uma grande idéia qualquer. Esqueci-a momentos depois. Vários pombos circundavam minha existência: gordos, magros, cores variadas, todos balançavam suas cabeças em sinfonia com um som ritmado e constante. Perdi a noção do tempo. Os pombos comiam milho, pão, bolacha, sujeira e engordavam e ficavam cada vez maiores e logo, à esquerda, um cachorro foi vítima de uma bicada que lhe partiu ao meio. As crianças felizes com seus balões ensaiaram um choro, mas não conseguiram, pois os pombos atacaram-nas vorazmente enquanto mães desesperadas eram arremessadas para longe por asas fortes e de largas penas. O barulho era tamanho que acordou o padre da igreja matriz. Os pombos foram convertidos e, quando estavam para começar o churrasco com os restos humanos e de pombos – alguns foram mortos por aposentados nervosos que jogavam dominó –, caí do banco, acordei e espantei um bando de pombos curiosos que por perto ciscavam.

Outro dia consegui um bom almoço. Arroz, feijão, bife e alface e ganhei até um copo de suco. Gosto de comer sem falar, apenas comer, olho na comida e comida para a boca e estômago contorcendo de felicidade e de angústia. Algumas coisas poderiam ser repetidas mais vezes: meu corpo discute comigo e faz com que essa verdade imponha sua presença permanente. Aproveito para dormir durante a tarde.

Era noite. Observava os semáforos piscando suas luzes amarelas. Tudo estava bem quieto e tudo estava muito bem. Mas veio o barulho: buzina, vozes e mais vozes, gritos, risadas, pessoas. Viram-me, caminhavam em minha direção. Ficaram observando-me e eu fiquei observando-as. Riam e falavam entre elas. Eu não ria nem falava: sabia do pior da vida e não diferenciava os outros de mim mesmo. Um rapaz deu-me um leve chute na perna esquerda enquanto o resto ergueu a voz e esbravejavam comigo. Não queria dançar, mas insistiam.

Nota póstuma: indigente bóia com o corpo inchado em uma lagoa afastada. Não foi encontrado, apodreceu: inseriu-se na humanidade.

2 comentários:

  1. A morte pelas bicadis dos pomb cum obesidadis, ou pela escorregahdis distante na lagoa/insersão na humanidade (hominis familiae) causada pela indigência...a morte, é sempre mero detalhe.

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  2. Texto foda.
    Acho interessante a insanidade no começo revelada como sonho. Mas, ao mesmo tempo, o texto mantém esse tom, mesmo nas coisas reais.
    A percepção do personagem das coisas é até poética, embora, quando pensamos no que ocorre, é algo trágico. E até sujo. Sujo, porque a associação do personagem com um indigente é inevitável. Pelo menos da minha parte.
    E sempre o desesperancismo rodolfiano com a humanidade. A inserção na humanidade através da podridão.

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