sexta-feira, 4 de junho de 2010

anton tchékhov

"Dias atrás mandei chamar a governanta dos meus filhos, Iúlia Vassílievna, ao meu gabinite. Precisávamos acertar as contas.
-- Sente-se, Iúlia Vassílievna! - eu disse. -- Vamos acertar nossas contas. A senhora provavelmente necessita de dinheiro, mas tem cerimônia demais para pedir... Vamos lá... Nós combinamos trinta rublos por mês...
-- Quarenta...
-- Não, trinta... Eu tenho aqui escrito... Eu sempre paguei trinta para as governantas... Então, a senhora ficou aqui dois meses...
-- Dois meses e cinco dias...
-- Dois meses exatos... Eu tenho aqui anotado. Portanto, a senhora tem a receber sessenta rublos... Temos que descontar nove domingos... pois a senhora não estudou com Kólia nos domingos, somente passearam... e houve ainda três feriados...
Iúlia Vassílievna ficou vermelha e começou a repuxar os babadinhos de sua roupa, mas não disse uma só palavra...
-- Três feriados... Consequentemente, vamos tirar doze rublos... Durante quatro dias Kólia ficou doente e não teve aulas... A senhora estudou só com Vária... Três dias a senhora teve dor de dente e minha esposa permitiu que a senhora não desse aula depois do almoço... Doze mais sete - dezenove. Subtraindo, restam... hum... 41 rublos. Certo?
O olho esquerdo de Iúlia Vassílievna ficou vermelho e cheio d'água. Seu queixo tremeu. Ela deu uma tossida nervosa, assoou o nariz, mas - nem uma palavra!
-- Na véspera de ano-novo a senhora quebrou uma xícara de chá e um pires. Vamos tirar dois rublos... A xícara custa mais do que isso, era herança de família, mas... deixa pra lá! Não vamos fazer questão disso! Adiante: devido à sua falta de atenção, Kólia subiu numa árvore e rasgou seu casaquinho. Vamos tirar dez... A arrumadeira, também devido à sua falta de atenção, roubou umas botinas de Vária. A senhora deveria cuidar de tudo. É para isso que recebe um salário. Então, vamos tirar mais cinco... No dia sete de janeiro a senhora pegou adiantado comigo dez rublos...
-- Eu não peguei! - sussurou Iúlia Vassílievna.
-- Mas eu tenho aqui anotado!
-- Então, está bem... Que seja.
-- De 41 vamos subtrair 27 - restam catorze.
Os dois olhos de Iúlia Vassílievna encheram-se de lágrimas... No seu belo e alongado narizinho apareceram gotas de suor. Pobre menina!
-- Eu só peguei uma vez - disse ela com voz trêmula. -- Peguei com a sua esposa três rublos... Não peguei mais...
-- É mesmo? Ora, mas isso não está anotado! Tirando três de catorze, sobram onze... Aqui está o seu dinheiro, caríssima! Três... três... três... um... um... Tenha a bondade de receber!
E lhe entreguei onze rublos... Ela pegou o dinheiro e com os dedinhos tremendo meteu-o no bolso.
-- Merci - sussurou ela.
Levantei-me de um salto e comecei a caminhar pelo gabinete. Estava indignado.
-- Merci por quê? - perguntei.
-- Pelo dinheiro...
-- Mas eu a roubei, com os diabos, eu a assaltei! Acabei de roubá-la! Por que merci?
-- Nos outros lugares eles não pagavam nada...
-- Não pagavam? Então não é de se estranhar! Eu estava brincando com a senhora, estava lhe dando uma lição cruel... Vou lhe pagar todos os oitenta rublos! Estão aqui preparados, neste envelope! Mas é possível ser assim tão pateta? Por que a senhora não protesta? Por que fica calada? Será que neste mundo é possível não ser atrevido? É possível ser tão palerma?
Ela deu um sorriso azedo e eu li no seu rosto: 'É possível!'.
Pedi desculpas pela cruel lição e, para sua grande surpresa, entreguei-lhe todos os oitenta rublos. Ela disse um merci tímido e saiu... Fiquei olhando quando ela se afastava e pensei: 'Como é fácil ser poderoso neste mundo!'.

19 de fevereiro de 1883"

Anton Tchékhov, "A Palerma", Tradução de Maria Aparecida Botelho Pereira Soares

5 comentários:

  1. lindo!

    se pá, tbm é fácil ser palerma. mas não sei, preciso pensar..

    ResponderExcluir
  2. Trecho bem interessante.

    Se pah é sim Arthur, talvez, até mais fácil do que ser poderoso. A questão gira em torno de honestidade. Se você tem facilidade/gosto pela mentira, se tornar Poderoso é fácil. Se você é honesto e tem asco pelo falso se tornar palermo é fácil.
    Mas sei la. Esse meu comentário me parece muito liçãozinho de moral. Precisaria pensar melhor.

    ResponderExcluir
  3. Conversei com o RCMA e tenho que concordar que, no comentário acima, não levei em conta a posição de poder do Mentiroso. Ou seja, nem todas as mentiras ditas tem o poder de se tornar verdade. A posição de quem a diz, com certeza, é um dos elementos que consegue dar tal poder.

    ResponderExcluir
  4. Humm..então, qdo eu pensei q pudesse ser fácil ser palerma, não pensei sobre inclinações morais - qto à honestidade etc -(aliás, inclinações morais são socialmente determinadas...)
    Pensei na inércia q leva a palerma a dizer merci e aceitar - seja por falsa consciência ideológica, ou por adotar racionalmente a postura de defender e garantir, direitos restritos, mas possíveis nas condições dadas. Então, a inércia de aceitar ao invés de correr o risco de matar o patrão. Mas sei lá, né...

    ResponderExcluir
  5. a inércia da palerma pode ser entendida como "lógica" em uma sociedade claramente dividida; ela aprendeu a viver na divisão, dentro desta reconhece as relações de poder e tenta sobreviver, mesmo que na merda.
    romper a divisão, matar o patrão, seria contestar não só um mando individual, mas a ordem como um todo, "crime injustificável".
    no fim, sei lá também.

    ResponderExcluir