quarta-feira, 23 de junho de 2010

semáforos cotidianos.

"décio, você tem certeza que anotou isso direito? não acho o documento pelo número de tombo que você anotou." - foi como ela me interpelou com um olhar que misturava desafio e dúvida. "Quem ela acha que é para falar assim comigo? Porque se ele acha que eu vou deixar isso como está, ele está totalmente enganada!"

Peguei novamente o livro em cima da mesa marrom de pernas verdes, verdes como as folhas da árvore cortada para a confeção da cadeira na qual me sentei novamente, enquanto tentava lançar um olhar que sustentasse minha provocação, porque naquele momento eu já tinha certeza que ele havia inventado as fontes. Ela ficou folheando as páginas finais do livro de capa vermelha e páginas amareladas pelo tempo que passaram na estante do armário vitoriano de mogno que minha tia havia nos deixado quando morreu e eu fiquei imaginando se ela já sabia que toda a história que tinha feito minha fama não passava de uma farsa que ele usou pra ganhar dinheiro e não calculou na época que fosse ter tanta repercussão.

"Sim, tenho certeza. Os caracteres eram de máquina de escrever, não posso ter me confundido." Fechei o livro e o atirei na mesa que nos separava a uma distância um pouco mais curta do que aquela que o tempo estipulou como o máximo aceitável de aproximação sem um olhar constragedor. Para evitar o constrangimento, tomei o livro e o ergui até a altura dos olhos, como quem quer ver de perto um texto e me pus a folhear as mesmas últimas páginas com os números fictícios. Fiquei pensando se ele realmente achou que ninguém descobriria enquanto olhava para as costas do livro cuja capa tinha um tom de vermelho desbotado que lembrava a odiosa cara do sacerdote que nos casou em minha inocente juventude. Agora eu penso que foi um erro, mas na época eu tinha certeza de que era o certo a se fazer. Eu não poderia deixá-la destruir minha carreira construída basicamente por esse livro que, pesando em minha mão insegura, caiu na mesa com um barulho de fruta podre que cai na grama seca, tão verde como as pernas dessa pobre mesa. Sempre considerei o "olho no olho" a hora de corrigir um erro, a hora de tomar a coragem para se fazer algo que já devia ter sido feito há muito tempo.

"Quero o divórcio."

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